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25 de maio de 2017
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11:11

Entre o descaso e o caso de polícia: pessoas em situação de rua relatam violência e invisibilidade

Por
Sul 21
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Audiência debateu “o extermínio, as agressões e a falta de políticas públicas para o povo da rua”. Foto: Maia Rubim/Sul21

Gregório Mascarenhas

“Ana,
Pelézinho,
Paulinho,
Rita,
Zé Mauro,
Zé Orlando,
PRESENTE.”

Dezenas de pessoas, na manhã desta quarta-feira (24), subiam a rampa que dá acesso ao auditório Dante Barone, na Assembleia Legislativa do Estado, e, do outro lado da rua, na Praça da Matriz, um homem dormia em um banco. Três integrantes da Brigada Militar o interpelaram. “A gente vem pra cá tomar paredão?”, questionou Édson José de Souza Campos, um dos integrantes do jornal Boca de Rua, um periódico produzido por pessoas em situação de rua, e também integrante do Movimento Nacional da População de Rua – MNPR. Édson foi uma das pessoas que falou para uma plateia que lotou a maior sala do Legislativo para uma audiência que debateu “o extermínio, as agressões e a falta de políticas públicas para o povo da rua”. Os nomes citados no começo desta reportagem são de pessoas em situação de rua vítimas de mortes violentas nos últimos meses em Porto Alegre.

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“A audiência foi solicitada porque nos últimos meses temos vivido uma onda de justiçamento e de extermínio de pessoas em situação de rua”, disse Richard de Campos, também do MNPR. O evento, proposto pela Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (Alice) e pelo Jornal Boca de Rua, teve a presença, além dos parlamentares e moradores de rua, de representantes de movimentos sociais, de sindicatos, do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Civil. A Secretaria Estadual de Segurança Pública e a Brigada Militar, apesar de convidadas a compor a mesa, não enviaram representantes. A mediação foi do deputado Jeferson Fernandes (PT), e estavam presentes também parlamentares como Manuela D’Ávila (PCdoB), Miriam Marroni (PT) e Pedro Ruas (Psol).

Richard falou sobre a precarização das políticas de assistência no município, relatando que a Fasc (Fundação de Assistência Social e Cidadania) não consegue garantir o mínimo para a população de rua e lamentando a ausência de Solimar Amaro, presidente da instituição. “Nada está tão ruim que não possa piorar. Marchezan vem para provar isso. A população de rua não aceita mais o lugar de exclusão e invisibilidade. Se a Fasc tem medo, nós lamentamos. A mesma população que lota o Dante Barone é capaz de fazer uma grande manifestação em frente à Fundação. A população de rua é muito ativa em defender seus direitos. Que esta audiência sirva para a Fasc voltar a executar a política para a qual foi criada. Não adianta só ir ao Jornal do Almoço, atualizar fanpage e site”, criticou.

“Para além da violência física mais explícita, há também a intolerância, o ódio manifestado pela população, não só pela polícia, pelo Estado. Há preconceito, exclusão e abandono”, disse Cristina Pozzobon. Foto: Maia Rubim/Sul21

Para a diretora técnica da Fasc, Vera Ponzio, que representou a instituição, “algumas questões levantadas por Richard são verdadeiras”. Ela diz que houve um problema com pagamento de empresas, por exemplo, mas que “a Fundação é também um grupo de servidores que busca se manter em um momento de muita dificuldade. Herdamos [ela e o presidente estão há poucos meses no cargo, pontua] problemas estruturais gravíssimos”. Vera relata que há “recursos restritos” para acolher também a crianças e adolescentes.

Cristina Pozzobon, da Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (Alice), cujo trabalho com o Boca de Rua já tem 16 anos em Porto Alegre, diz que “o mais importante é ouvirmos, eles têm muita coisa para nos contar. Para além da violência física mais explícita, há também a intolerância, o ódio manifestado pela população, não só pela polícia, pelo Estado. Há preconceito, exclusão e abandono”. Ela argumenta que a imprensa tradicional dá pouco espaço às pautas das pessoas que vivem na rua: “A grande mídia não conta essa história. A Alice trabalha para mostrar isso que não está explícito na imprensa. Construção de consciência coletiva da sociedade sobre seu próprio modo de vida.”

“Também não adianta se só eu falar. Mais gente, que está na plateia, vive uma outra coisa. Vamos abrir!”, solicitou Édson, um dos integrantes do Boca de Rua. Foto: Maia Rubim/Sul21

Édson José de Souza Campos também citou a ausência de interlocutores quando se trata dessas populações. Em sua fala, criticou a desproporção do número de moradores de rua que teriam acesso ao microfone: “tem muita gente na mesa falando”, disse Édson, “e também não adianta se só eu falar. Mais gente, que está na plateia, vive uma outra coisa. Vamos abrir!”, solicitou. Ele critica também algumas posturas dos abrigos oferecidos pelo poder público, como a escassez e a separação de casais, citando o exemplo de moradoras de rua grávidas que não podem passar as noites junto a seus companheiros. Simone, moradora da Ocupação Mirabal – onde uma reintegração de posse pode ocorrer a qualquer momento –, diz que chegou a dormir algumas noites na rua, “passando por momentos difíceis e lutando para continuar”, por conta de dificuldades vividas nos albergues.

“Há gente morta porque foi assassinada e pessoas que morreram por falta de assistência de saúde ou social; mortos por fascismo e por falta de acolhida”, disse a educadora social Veridiana Machado. Ela argumenta que não é só a violência física que atinge diretamente o povo da rua. A servidora, que trabalha no abrigo Bom Jesus, conta que na instituição não há mais “cozinheiro e porteiro”, e também não há “privacidade para abrigados”, além de que “os extintores estão todos vencidos”. Existe, segundo ela, uma inviabilização do trabalho de servidores, além de uma “perseguição no Conselho Municipal de Assistência Social”, citando uma colega que foi transferida após fazer reclamações públicas. “Nossa rede é grande e vamos fazer um levante nesta cidade. A Fasc virou caso de polícia e querem acabar com o controle social. O movimento chegou pra ficar nesta cidade”, disse ela, que classificou Marchezan como “autoritário e centralizador.”

Célio Golin, representante do Nuances – Grupo Pela Livre Expressão Sexual, atribuiu à ideologia do Estado mínimo o desmonte das políticas de assistência social: “não vai ter política para negros, mulheres, indígenas, população de rua”, disse ele, que definiu as ações como “intencionais” e que “Marchezan as desenvolve de forma raivosa”. Célio argumenta que há uma política de higienização porque “morador de rua, bicha, sapatão e indígena, pessoas que eles entendem descartáveis, atrapalham o mercado. A polícia, nesse contexto, cumpre um papel sujo. A gente viu isso com Dória na Cracolândia”. Ele falou sobre a importância das questões de gênero e orientação sexual nos debates sobre o povo de rua, argumentando que travestis e gays são populações especificamente sensíveis. “A política de assistência social completamente equivocada desde outros governos”, criticou, e, sobre a rotina dos albergues, reprovou: “não pode existir regra de horário [usuários podem entrar no máximo até o final da tarde], de não tomar cachaça, há carências envolvidas, querem impor um padrão de classe média e burguês”, disse.

A BM nos abordou na Redenção, um mês atrás, ficamos 40 minutos sentados na grama. Um policial me disse que ‘a sociedade não quer mais vocês, e a nós foi dada a ordem de fazer vocês circularem’. Sou alcoólatra e dependente químico, se não fosse por isso provavelmente não estaria na rua, e acredito que 90% das outras pessoas [em situação de rua] também são. A gurizada que está na Lima e Silva, com uísque ou vodca, não tem nenhum constrangimento – e não falo isso para recriminar. Se eu tiver com a cachaça é mão na cabeça. Tenho o mesmo direito, só que isso não é colocado em prática. Isso faz tu mudar teus princípios. Deixei de procurar a Fasc há dez anos. Tem gente lá que eu adoro, são uns amores, fazem o possível, mas o sistema atrasa.

Relato de um homem que vive na rua há 12 anos.

Sobre o cotidiano das casas de acolhimento, David Duarte, que é usuário de albergue e cadeirante – ele não pode subir e falar desde a mesa por questões de acessibilidade –, diz que há abusos também por parte de funcionários e monitores, com “constrangimento e agressão verbal”. Há, segundo ele, problemas com a estrutura, mas também com funcionários: “pessoas são agredidas verbalmente ou suspensas por 90 dias às vezes por coisas que não fizeram. Usam o poder para fazer o que querem. Coisas que acontecem há oito anos, quando comecei a frequentar o albergue. Quem quer ganhar dinheiro que vá para um banco, e não trabalhar com pessoas”, disse. O deputado Jeferson Fernandes pediu desculpas em nome da Assembleia Legislativa por conta da ausência de acessos adequados.

“Morador de rua, bicha, sapatão e indígena, pessoas que eles entendem descartáveis, atrapalham o mercado, disse Célio Golin à plateia. Foto: Maia Rubim/Sul21

O diretor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil, Paulo Rogério Grillo, explicou respeito de inquéritos sobre moradores de rua que foram vítimas de homicídio recentemente: “nosso pensamento é que toda a vida humana tem o mesmo valor, seja pobre ou rico. Essas questões não importam para o Departamento de Homicídios. Há, claro, repercussão quando matam alguém no aeroporto, na rodoviária, um empresário, isso repercute na sociedade, mas posso garantir que para nós isso não importa. Como servidor público tenho que estar ao lado de vocês e recebê-los, prestar conta, atender às demandas da população”, disse à plateia. Ele salienta que 70% dos inquéritos têm esclarecimento. Disse que no caso de Paulo Ricardo Camargo de Oliveira, homem morto a tiros na Praça Matriz em março deste ano, já há autoria apurada.

Entre os encaminhamentos estão uma denúncia a ser feita aos governos estadual e municipal sobre pessoas em situação de rua; audiência com prefeito, governador e Secretaria do Desenvolvimento Social, Trabalho, Justiça e Direitos Humanos; audiência pública específica sobre assistência social; o envio de uma comitiva de deputados estaduais a locais onde normalmente ocorrem agressões a pessoas em situação de rua; uma visita ao comando da Brigada Militar para averiguar procedimentos em relação a pessoas em situação de rua; e acompanhamento dos inquéritos da Polícia Civil sobre assassinato de moradores de rua.


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