Geral
|
7 de abril de 2016
|
18:34

Prisão preventiva para obter delação premiada é tortura, defende jurista

Por
Sul 21
[email protected]
Prisão preventiva para obter delação premiada é tortura, defende jurista
Prisão preventiva para obter delação premiada é tortura, defende jurista
Alfredo Bosi e Marilena Chaui: empenho na defesa da democracia e diálogo com a comunidade internacional. Foto: Divulgação
Alfredo Bosi e Marilena Chaui: empenho na defesa da democracia e diálogo com a comunidade internacional. Foto: Divulgação

Helder Lima

Da RBA

O jurista Marcio Sotelo Felippe disse na quarta-feira (6), durante ato em defesa da democracia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), que o juiz Sérgio Moro “suspende o Direito ao seu bel-prazer e o país assiste a isso impassivelmente”. Para Felippe, trata-se de uma forma de dominar pelo fascismo e, nesse sentido, Moro é um torturador. “Ele investiga sob tortura, põe a pessoa na cadeia até o momento em que ela resolve fazer uma delação. Que outra coisa é isso, senão uma forma de tortura?”, indagou. “O confronto não permite tergiversação, temos de ir para o confronto, há uma luta que temos de enfrentar intransigentemente”. O evento também marcou o lançamento de uma carta aberta dos acadêmicos brasileiros para a comunidade científica internacional.

Felippe afirmou ainda que Moro é um “discípulo inconsciente do jurista alemão Carl Schmitt (1888-1985), que era considerado teórico da “antinormatividade” – Schmitt defendia que o Direito passa pela decisão de “aplicar as normas ou não”, estabelecendo o Estado de exceção ao suspender essas normas. Ele considerou que a defesa do mandato da presidenta Dilma Rousseff e da legalidade é uma tarefa imediata no momento. “Mas além disso há uma luta mais ampla que é a luta contra o fascismo. Esse é o bom combate de ser travado neste momento.”

Segundo o professor, o termo “fascismo” é usado como xingamento, mas há uma concepção clássica, que é o seu surgimento nos anos 1930, como resposta conservadora à revolução bolchevique na Rússia. “Os bolcheviques aboliram a propriedade privada, e a proposta da reação foi o fascismo, uma força de dominação sobre a consciência das pessoas, com a eliminação do que é diferente”, observou. “Tudo que estivesse fora da ordem social burguesa era tratado como mal, como um vírus, uma bactéria que teria de ser eliminada.” Para Felippe, o fascismo é alimentado pelo ódio, “é a lei e ordem da burguesia branca, estamos vendo esse processo hoje”. Ele lembrou que as manifestações contra o governo têm enfatizado que a esquerda é o mal, que o petismo é uma “doença” que tem de ser eliminada: “Isso é o que meteram na cabeça dessa classe média”.

Ação articulada

O professor de Política Internacional Reginaldo Nasser disse que a ideia de que a crise é exclusivamente brasileira está perdendo força. Ele afirmou também que a crise política é alimentada por uma ação articulada de direita, mais forte do que nos Estados Unidos, “como se todos estivessem alimentando o Tea Party” – ala conservadora radical do Partido Republicano. Para Nasser, o episódio da divulgação das gravações de conversas de autoridades do governo, como a entre a presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, significa que foi ultrapassado um limite pelos meios de comunicação, em ação articulada com a Polícia Federal e o Judiciário.

“Na semana passada, houve o sucesso da manifestação da Praça da Sé, e no dia seguinte ressuscitaram o caso Celso Daniel”, disse. “É um processo em que os agentes do golpe têm aparecido de forma muito clara. Apesar disso, meu otimismo vem principalmente com a mobilização das ruas, tanto que a ideia do impeachment seguido de governo com Michel Temer acabou em uma semana”, acrescentou, referindo-se aos ataques contra o vice-presidente, cujo compromisso econômico por meio do programa Ponte para o Futuro tem sido duramente criticado por adotar ideário neoliberal.

O professor de Literatura e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) Alfredo Bosi disse que Carta Aberta à Comunidade Acadêmica Internacional tem significado ético e mantém a unidade em torno de valores democráticos. E afirmou que é preciso divulgar esse documento junto aos poderes Legislativo e Judiciário. “É preciso que o manifesto ecoe em outros ambientes que não só o acadêmico”, destacou. “Sei que na Câmara há uma surdez, mas é necessário que esses argumentos sejam repetidos com ampla difusão, já que a mídia nos sabota”, disse em referência ao noticiário da grande mídia em permanente campanha pelo impeachment.

Bosi criticou a atuação dos que querem subverter os resultados das urnas de 2014. E defendeu os blocos do Mercosul e dos Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), “que representam uma pedra no sapato do imperialismo internacional”. Ele disse que a ação desses países ainda tem potencial de promover mudanças. “As coisas ainda não estão acontecendo, mas seria muito oportuno.”

Monopólio

A professora de filosofia da USP e fundadora do PT Marilena Chaui falou sobre a importância de o manifesto ser endereçado à comunidade acadêmica internacional diante da falta de informação sobre a crise brasileira, que também existe no exterior. “O monopólio das comunicações manda para o exterior somente a notícia a seu modo e recebemos de franceses, ingleses e alemães muitas perguntas”, disse.

Entre as preocupações que a crise traz à tona, Marilena citou a “desinstitucionalização da República, por uma corja de procuradores e juízes que toma para si a potência para acuar o Legislativo e o Executivo – há um perigo nesse processo”. Como segunda preocupação, Marilena destacou a desinstitucionalização da democracia, referindo-se aos ataques à Constituição, sobretudo no que é representado por conquistas dos movimentos sociais e partidos de esquerda. “Essa corja de procuradores e juízes, mais o STF e o Parlamento, pisotearam a Constituição e querem impor a pauta do boi, da Bíblia e da bala”, afirmou, lembrando as bancadas conservadoras da Câmara, que defendem novas formas de repressão e põem a democracia em perigo.

“Com todos os erros, equívocos, limitações e críticas aos governos Lula e Dilma, eles têm uma ação que tem respeito à polarização entre o privilégio e a carência. O que falta no Brasil é o campo dos direitos frente a essa polarização”, disse a professora. Ela considerou também que “tudo isso não pode ofuscar o foco desse governo, que é a ideia da instituição dos direitos”. Para Marilena, o golpe tem entre suas causas a atuação das chamadas sete irmãs, as principais empresas petroleiras do mundo, “que querem o pré-sal”. “A primeira causa do golpe é roubar o que é esteio da nossa soberania econômica.”

Marilena também vê entre as causas do golpe questões de vaidade e ambição de setores da classe média, representadas sobretudo pelo senador Aécio Neves (PSDB-MG), a quem chamou de “moleque que quer ser presidente”, e a forma com que a mídia divulga a informação. Ela também refutou a identidade da classe média com os setores dominantes, o que tem marcado as manifestações contra o governo. “A classe média é besta, porque nunca vai ser classe dominante, pois não é a quantidade de dinheiro que define isso, mas a apropriação dos meios de produção. E as classes dominantes não estão nas manifestações contra o governo.”

O filósofo e professor emérito da USP Ruy Fausto afirmou que o momento é de confronto, mas que é preciso tomar cuidado com a retórica, com o argumento que não tenha rigor. “O momento é de reflexão”, disse. “Há uma crise mundial das esquerdas, e no Brasil é preciso uma refundação da esquerda”.

O professor refutou os modelos totalitários de poder, que segundo ele são velhos e já morreram. Ele também criticou o modelo do PSDB na política e alvejou o modelo que considera populista dos governos do PT, por conta de não atacar apropriadamente o problema da corrupção. “O PT tem a ver com isso, não vou negar os seus ganhos, mas se as razões para derrubar Dilma são falsas, a corrupção existiu mesmo, não vamos fechar os olhos. A direita usa tudo isso. Quando houve o mensalão, eu já dizia que tinha de limpar o PT e ficou por aí, fui criticado”, lembrou.

Fausto  afirmou que dentro da classe média existem segmentos progressistas, que precisam se aproximar dos debates, atacou a reputação e a legitimidade de Michel Temer e Eduardo Cunha para articular o golpe e defendeu que a luta política do campo progressista se dê com uma linguagem clara. Ele disse ainda que o programa econômico do governo deveria avançar logo no projeto de uma reforma fiscal. O problema da estrutura tributária no país é que o imposto sobre consumo é alto demais, e incide sobre todos, sem distinção. Segundo o professor, é preciso pensar em um programa de sonegação, assim como alíquotas novas para o Imposto de Renda, refletindo mais justiça fiscal.

Ao final do ato, o professor Laymert Garcia dos Santos leu o texto abaixo:

 

O Intolerável

Agora, que o governo Temer morreu antes de ter nascido;

Agora, que já sabemos que o processo de Lula não deve voltar para Curitiba;

Agora, que o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, porta-voz da Lava Jato, admitiu que “[…] os governos que estão sendo investigados, os governos do PT, […]” são os únicos que vêm ao caso;

Agora, que ficaram patentes todas as irregularidades e ilegalidades cometidas pela Força Tarefa de Curitiba desde 2006, portanto desde os mais remotos primórdios da Lava Jato, oficialmente deflagrada em 2014.

Agora, que os trabalhadores, movimentos sociais, estudantes, intelectuais e artistas deram corpo e voz ao brado de “Não vai ter golpe”, acrescentando cada vez mais intensamente o complemento “Vai ter luta”;

Agora, que já ficou patente para Deus e o mundo, tanto aqui quanto lá fora, que a democracia corre perigo e que o Estado de Exceção está se instalando e revogando o Estado de Direito, tamanhas são as recorrentes violações à Constituição de 88;

Agora, que cresce o consenso do “Fora Cunha”;

Agora, que até órgãos da grande mídia parecem desembarcar do golpe, apesar de tê-lo fomentado e defendido com unhas e dentes – não por amor à legalidade, é claro, mas por constatarem a sua impossibilidade teórica e prática;

Agora, que foi trincada a sacrossanta imagem do justiceiro Sérgio Moro, revelando a figura do arbítrio despótico;

Talvez seja chegada a hora de indagar, não se teremos paz e poderemos voltar aos nossos afazeres, mas sim que configuração tomará a estratégia da desestabilização do Brasil, a partir do ponto em que chegamos.

É preciso enterrar de uma vez por todas a ideia de que o processo desencadeado teve algum dia ou ainda tem como objetivo efetivo acabar com a corrupção. Porque um combate ultrasseletivo à corrupção, que deixa de fora uma infinidade de ladrões para gritarem livre e impunemente “Pega ladrão!”, apontando para Lula, Dilma e o PT, não pode ser levado minimamente a sério.

E se o Judiciário – particularmente a cúpula do Ministério Público Federal -, assim como setores da Polícia Federal, só aparentemente estão combatendo a corrupção, o que estão fazendo?

Diversos indícios, atos, enunciados sugerem fortemente que se trata de desestabilizar o país a qualquer preço. Preço que, aliás, a esta altura, já é altíssimo, se levarmos em conta 1) o comprometimento de ramos-chave do setor produtivo, particularmente energia, infra-estrutura e defesa, com reverberações em toda a economia; 2) a geração de uma imensa crise social, com seu cortejo de desempregados e a ameaça de regressão da parcela mais vulnerável da população a patamares infra-humanos que pensávamos definitivamente superados; 3) last, but not least, a desmoralização das instituições, a começar por um Parlamento bandido, partidos políticos venais e grotescos, juízes e procuradores que enxovalham as leis em nome de valores espúrios.

A quem interessa tal desestabilização planejada e rigorosamente executada? Seguramente, Sérgio Moro e seus procuradores são apenas operadores de um crime de lesa-pátria; tampouco os agentes da Polícia Federal são algo mais que executores. É claro que a mídia golpista, os partidos de oposição, os movimentos fascistas continuamente estimulados, a FIESP, a OAB, os inocentes úteis e os oportunistas de plantão, inclusive nas hostes governamentais, são protagonistas empenhados na produção do desastre, cada segmento operando a seu modo. E pode-se considerar que, em virtude de seu imobilismo e falta de iniciativa, o próprio governo Dilma e o PT contribuíram involuntariamente, até bem pouco tempo, com a desestabilização.

O silêncio das Forças Armadas é notável, até mesmo quando importantes interesses da Defesa, que as afetam diretamente, são feridos. Mas o que significa o seu não-protagonismo? Se for verdade que Lula não foi sequestrado e levado à força para Curitiba em virtude da discretíssima interferência da Polícia da Aeronáutica em Congonhas, haveria aí uma indicação de que seu papel como garantidor da ordem instituída segue intacto?

Resta, então, a cúpula do Judiciário. Excluindo-se as conhecidas posições de Gilmar Mendes, que dispensam comentários, é inquietante constatar que ainda não se sabe ao certo em que direção o Supremo Tribunal Federal vai se mover, tendo em vista a emissão de sinais contraditórios e as dúvidas que suscita quanto ao papel predominante da corte, se Corte Constitucional ou Corte de Apelação.

Mais graves ainda são os atos e as palavras do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. Acompanhando e mapeando o desenrolar do jogo nos diferentes tabuleiros de xadrez da crise, o jornalista Luiz Nassif percebeu nitidamente que o Ministério Público Federal era o “Alto Comando” do golpe. A designação é extremamente forte, mas há razões para o emprego do termo. Entre elas, a visita inexplicada de Janot ao Departamento da Justiça em Washington para levar às autoridades americanas documentos sobre a Petrobrás; sua inapetência para investigar Aécio Neves; sua defesa intransigente de Moro e da Força Tarefa da Lava Jato, apesar das ilegalidades cometidas;  sua demora para denunciar Cunha junto ao STF, dando a este todo o tempo para sublevar a Câmara dos Deputados contra o governo Dilma; e finalmente sua autorização para que Moro divulgasse os grampos ilegais das conversas da presidenta com Lula, do Ministro Jacques Wagner com Rui Falcão e dos advogados do ex-presidente.

A cartografia de Nassif confere inteligibilidade à desestabilização e, sobretudo, ao papel do Alto Comando. Mas ao longo do tempo, e da publicação dos posts, fica a impressão de que o jornalista se assustou com sua própria descoberta e passou a explicar a conduta de Janot e dos procuradores sob a ótica exclusiva do “corporativismo”. Assim, o Ministério Público Federal não compartilharia da lógica que move os outros protagonistas golpistas, já que estes estariam mais interessados na luta de poder do que no combate à corrupção,  obsessão que o MPF supostamente quer cumprir, “doa a quem doer”.

Voltamos, portanto, à cruzada contra a corrupção. Mas se ela é seletiva e se a sociedade brasileira inteira já está pagando um preço exorbitante pela Lava Jato, faz sentido acreditar em Janot? Se já sabemos quem perde com a desestabilização, não seria melhor indagar quem ganha com ela? Tudo se passa como se a lógica da Lava Jato obedecesse à estratégia de desqualificação absoluta do Brasil na cena global, no âmbito dos BRICS, no âmbito do Mercosul e aos olhos dos próprios brasileiros; vale dizer: à estratégia de redução do país a uma condição neocolonial. A desestabilização visa a inviabilização do Brasil como país. Mais ainda: a estratégia nem parece ter sido elaborada aqui, na medida em que repete e retoma métodos, procedimentos e tecnologias jurídicas, policiais e políticas do terrorismo de Estado norte-americano, em sua guerra contra os países “inimigos”, principalmente aqueles que detêm soberania em termos de energia e que, por isso mesmo, precisam ser “neutralizados”. A estratégia busca criminalizar o governo Dilma, Lula, o PT e todos aqueles que resistem à implementação da agenda neoliberal  e neocolonial, equiparando-os a “terroristas”, que precisam ser eliminados da cena política. A estratégia obedece à lógica da terra arrasada, de preferência levada a cabo pelos próprios autóctones, sem intervenção externa direta e sem interferência militar. Uma guerra não-declarada na chamada “zona cinzenta”, onde os justiceiros locais fazem o serviço sujo, manejando as armas do Estado de Exceção e, em sintonia com a mídia golpista, detonando bombas informacionais com impacto calculado sobre a opinião pública e sobre as instituições.

Moro e os procuradores de Curitiba são os soldados da desestabilização. Janot e os procuradores de Brasília são o Alto Comando. Eles formam a espinha dorsal de um dispositivo de destruição da política como forma de entendimento do coletivo. Treinados em seminários e colóquios pelos especialistas em “cooperação”, aprenderam as novas tecnologias jurídicas, políticas e policiais do “contra-terrorismo”, importaram e implementaram a estratégia do caos. E não podemos sequer alegar que não fomos alertados: Snowden, em 2013, havia revelado os grampos da NSA contra Dilma e contra a Petrobrás; mas não sabemos se o que a espionagem apurou na petrolífera forneceu material para a Lava Jato. Por outro lado Wikileaks nos informa que Moro e procuradores participaram entusiasticamente, já em outubro de 2009, de uma conferência no Rio de Janeiro, na qual pediram treinamento aos americanos da Coordenação do Contra-Terrorismo – treinamento multijuridicional, prático, inclusive com demonstrações sobre como preparar uma testemunha para depor. Nas palavras do próprio documento vazado: “Treinamentos futuros devem focar áreas como força tarefa sobre ilícitos financeiros, que podem se mostrar a melhor maneira de combater o terrorismo no Brasil”.

Sabemos que no Brasil não há terroristas e sabemos quem ganha com a criminalização da esquerda. Já sabemos, portanto, quem quer a desestabilização. Por isso, para além da defesa de uma Presidenta eleita e de um ex-Presidente caçado injustamente, está em questão a defesa da democracia e da soberania. Quer dizer: da construção do futuro. Daí, a pergunta: Vamos continuar tolerando o intolerável?

Laymert Garcia dos Santos


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora