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28 de novembro de 2015
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22:40

Especial FSM – 2005: O ano em que Chávez foi ovacionado

Por
Sul 21
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Representantes indígenas brasileiros também participaram do evento | Foto: Repositório FSM
Representantes indígenas brasileiros também participaram do evento | Foto: Repositório FSM


Todas as sextas-feiras, o Sul21 publica a série de artigos relembrando os 15 anos do Fórum Social Mundial. Toda semana relembraremos uma edição e seus momentos mais marcantes. O próximo FSM acontecerá em agosto de 2016, no Canadá, mas para celebrar a data, a cidade de Porto Alegre receberá uma edição comemorativa entre os dias 19 e 23 de janeiro de 2016.

Fernanda Canofre

Em 2005, o Fórum Social Mundial voltou para Porto Alegre para sua última edição mundial no lugar onde tudo começou. Depois de acampar em Mumbai, em 2004, o evento já havia crescido e se tornado itinerante demais para ser só de um chão. E a capital gaúcha entendeu o recado. O governo Olívio Dutra, que havia sido uma das razões para abrigar o Fórum por aqui, com sua experiência do Orçamento Participativo, também já não estava mais no Piratini e os tempos eram outros.

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Ainda assim, como chamou a escritora e ativista canadense Naomi Klein, na primeira edição, em 2001 – o FSM seguia “um movimento de um não e muitos sims”. O que se revelou ainda mais forte em 2005. A renúncia ao imperialismo e ao modelo global imposto por ele seguia, ao mesmo tempo em que os debates sobre os milhares de outros mundos possíveis se multiplicavam. O retorno de nomes que marcaram importantes momentos em edições anteriores como Hebe de Bonafini, líder das Avós da Plaza de Mayo, Aleida Guevara, Antonio Negri, Boaventura de Sousa Santos e Mustafá Barghouth, defendendo a resistência palestina, dividiram atividades com temas como economia solidária, comunicação alternativa e o movimento de mulheres.

Segundo Rita Freire, representante da rede Ciranda no Conselho Internacional do FSM e integrante do Grupo Facilitador do Fórum Mundial de Mídia Livre, em 2005 outra vez o evento bateu as expectativas de público.

Conexão com a juventude e o conhecimento livre

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos | Foto: Repositório FSM
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos | Foto: Repositório FSM

Desde que começou a trabalhar com o Fórum em 2001, Rita esteve envolvida na relação entre comunicação e lutas sociais, especialmente no debate do direito de uso coletivo da informação. Para ela, a edição de 2005 foi um marco também neste aspecto, possibilitando pela primeira vez o compartilhamento de contribuições entre participantes de todo o mundo. Depois da experiência na Índia, o Fórum no Brasil abriu a possibilidade de organizações externas participarem dos comitês organizadores. “A lista chegou a ter mais de 100 participantes ativos, do Brasil e de fora, trazendo propostas de mídias alternativas, rádios comunitárias e também de redes associativas e movimentos”, lembra Rita.

O produto desta interação foi a criação de quatro projetos autogestionados, uma rede de mídias alternativas gerada dentro do próprio FSM que incluía: um fórum sobre televisão, com produção diária que produzia conteúdo para a Radiobrás, um fórum de rádios, a rede Ciranda, integrando projetos da África e América Latina, e o Laboratório dos Conhecimentos Livres, reunindo midiativistas, hackers e participantes do Acampamento da Juventude.

“Naquele ano, o FSM se posicionou mais concretamente contra a privatização do conhecimento. Toda plataforma do Fórum na internet precisou migrar para o software livre, para ser condizente com a luta global contra as patentes, os códigos fechados, o controle da comunicação. Este era um componente importante do clima do FSM em 2005”, explica Rita. “Essa convivência deixou frutos. Exigiu debates sobre a própria comunicação e cultura, como intervir contra monopólios e políticas elitistas; contribuiu para um movimento de comunicação no Brasil, e para um processo internacional que vem se desdobrando desde então”. Um destes frutos estará presente inclusive na edição mundial programada para agosto de 2016, no Canadá, com o V Fórum Mundial de Mídia Livre.

O debate em torno da comunicação compartilhada e conhecimento livre, num mundo onde internet não era de fácil acesso e envolvia fios por todos os lados, era novidade. E vinha integrado com a consciência de outras lutas por outro mundo. Rita lembra que em 2005 parte da cidade do Fórum, em Porto Alegre, foi construída em barro para que depois fosse embora com a chuva e não causasse impacto ao meio-ambiente. O laboratório hacker estava entre essas casas. “Por meio do barro passavam fios levando eletricidade e conexão – nada de wirelless à época –  e todo resto ficou por conta dos ocupantes que chegavam de outros estados carregando seus próprios equipamentos. Alguns pesados computadores de mesa. Saiu um ônibus da cidade de Campinas, que, no caminho, já era o laboratório funcionando, com atividades, debates nas paradas”, conta ela.

Gilberto Gil durante o show de abertura do FSM 2005 | Foto: Repositório FSM
Gilberto Gil durante o show de abertura do FSM 2005 | Foto: Repositório FSM

Rita Freire destaca também a importância de relacionar a política que estava em construção, na área da Cultura, sob liderança de Gilberto Gil como Ministro da Cultura. Boa parte dos hackers incluídos na lista do FSM, por exemplo, auxiliaram na elaboração da proposta dos pontos de cultura que se tornariam uma das marcas da gestão de Gil. O compositor baiano também esteve em Porto Alegre naquele ano, apresentando uma conferência e não foi poupado de críticas por uma política ainda “muito tímida na expansão do acesso à cultura”.

Além disso, como lembra Rita, se em outros anos a juventude sempre fora presença forte e catalisadora de grandes questões do Fórum, em 2005, isso se tornou ainda mais forte. “Penso nesse Fórum como um evento em que se articulavam expressões da juventude que só se tornariam mais visíveis mais recentemente. O Movimento do Passe Livre, por exemplo, que desencadeou os protesto de junho de 2013, foi fundado em uma assembleia do FSM 2005”, diz.

Lula & Chávez 

Hugo Chávez durante o FSM 2005 | Foto: Repositório FSM
Hugo Chávez durante o FSM 2005 | Foto: Repositório FSM

O FSM sempre tentou se manter como uma plataforma horizontal, que dava voz a nomes conhecidos como Noam Chomsky ou Adolfo Pérez Esquivel da mesma forma que a grupos desconhecidos do interior da Índia. Porém, não há como negar que eram os “nomes” que atraíam um bom número de participantes ao evento. E assim foi em 2005 com a confirmação da presença de duas “estrelas” da esquerda: Luis Inácio “Lula” da Silva e Hugo Chávez.

Lula, naquele ano, iniciava o terceiro ano de seu primeiro governo. Chávez, cada vez mais inflamado em seus discursos, estava no sexto à frente da Venezuela. Embora os dois sempre tenham se tratado por “hermanos”, no Fórum, os participantes os trataram como integrantes de dois pólos opostos da esquerda. Enquanto Chávez saiu ovacionado, Lula foi vaiado e enfrentou protestos.

No Gigantinho lotado, onde Chávez falou para uma multidão que o aguardava, o próprio presidente da Venezuela tentou conter os gritos de “Chávez Sí, Lula No” que ecoavam no ginásio. Como Roger Burbach escreveu sobre o evento para a rede ALAI, no Brasil o governo Lula enfrentava críticas a seu programa de combate à fome, que havia abandonado a discussão da reforma agrária desagradando inclusive seus aliados do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), isso piorou quando ele anunciou que no dia seguinte a sua participação em Porto Alegre partiria para Davos, rumo ao evento que era a antítese para a qual o FSM havia sido criado. Nas palavras de Lula, ele queria tentar ser uma “ponte” entre os dois fóruns. Nos olhos do público, ele havia se tornado um “traidor”. “Lula enfrentava questionamentos pela demora nas reformas (a começar pela agrária), pela liberação dos transgênicos, por uma política econômica que não rompia com o neoliberalismo”, analisa Rita.

Vinte pessoas chegaram a ser detidas por protestos realizados do lado de fora do Gigantinho, enquanto o então presidente dava sua conferência. Lá dentro, Lula interrompeu sua fala e tentou explicar a situação para os 15 mil presentes dizendo: “Para aqueles de vocês que não são daqui, não tenham medo. Essas pessoas que não querem ouvir são filhos e filhas do PT que se rebelaram. Isso é típico da juventude e um dia eles irão amadurecer e nos os receberemos de braços abertos”.

Segundo Rita Freire, de fato, muitas pessoas foram ao Fórum naquele ano “especialmente para protestar contra Lula”. “Mas não apenas isso. “Havia a crítica à lentidão do governo dentro de casa. Mas havia de outra parte do FSM também o reconhecimento por sua politica externa de orientação Sul-Sul, que pela primeira vez respeitava e valorizava as relações com a África, e contra as políticas anti-terroristas de Bush, como o Patriotic Act, que estigmatizava muçulmanos e imigrantes de modo geral”, nota ela. No ano anterior, por exemplo, quando cidadãos latino-americanos entrando nos EUA começaram a relatar constrangimentos nos procedimentos de imigração dentro dos aeroportos, Lula ordenou que o mesmo tratamento fosse empregado a estadunidenses entrando no Brasil. “Eram gestos simbólicos contra a submissão que repercutiam no FSM”, diz Rita.

Chávez foi cercado por milhares de pessoas e saiu ovacionado do evento | Foto: Repositório FSM
Chávez foi cercado por milhares de pessoas e saiu ovacionado do evento | Foto: Repositório FSM

Três dias depois do tumulto em torno da participação do petista, o mesmo Gigantinho, como reportou Burbach, “estava aos pés de Chávez”. Quanto mais ele subia as notas de seu discurso contra a hegemonia dos EUA e a favor do socialismo, mais o público o alentava. Apesar de toda sua excentricidade, nos seis anos em que ocupava o cargo de governante da Venezuela, Chávez havia liderado de sua maneira uma revolução para o país. “Chávez concorreu contra um sistema partidário corrupto e as oligarquias locais apoiadas pelos EUA. Ele aumentou os gastos sociais e nacionalizou o controle sobre os lucros da indústria petrolífera. Foi rapidamente retirado do cargo por um golpe civil-militar em 2002, apoiado pela administração Bush, mas voltou ao poder dois dias depois graças a setores leais do Exército e ao levante popular”, escreveu Burbach.

Pouco antes da participação oficial no FSM, Chávez aproveitou para conhecer um acampamento do MST no município de Tapes, a 100 km de Porto Alegre. Rita Freire, assim como boa parte das pessoas que algum dia cruzaram os caminhos com o líder venezuelano, também guarda suas anedotas sobre ele. “Uma companheira do MST mal dormiu naquela noite, encarregada de providenciar o café da manhã de Chávez. Além de preparar os quitutes da terra saiu no assentamento em busca das xícaras mais bonitas que não tivessem rachaduras. Mas para sua decepção, o presidente venezuelano era cercado por esquemas de segurança que incluíam o serviço de alimentação feito e servido por sua própria equipe. Acho que essa dívida de Chávez ela não esqueceu”, lembra ela.

Chávez também tinha outro objetivo em sua visita ao Brasil: queria levar o Fórum à Venezuela. O que conseguiu no ano seguinte, quando pela primeira vez o evento descentralizou e aconteceu em três continentes simultaneamente. Além da América do Sul, a África – com Bamako, no Mali – e Ásia – com Karashi, Paquistão – também tiveram seus eventos. Caracas, no entanto, conseguiu a maior mobilização.

Saramago, o não-utopista

Mantendo a tradição de outros anos, em 2005, o Fórum Social Mundial voltou a reunir nomes conhecidos da esquerda em uma mesma mesa para debater. Dessa vez, o uruguaio Eduardo Galeano e o português José Saramago se viram um apoiando e outro combatendo o mesmo moinho: a utopia.

Intitulada de “Quixote Hoje: Utopia e Política” a mesa contou com a presença dos dois escritores, além do diretor da Le Monde Diplomatique, Ignácio Ramonet, Mayor Zaragoza e Roberto Savio, para discutir o ideal dentro de um Araújo Viana que ainda tinha filas e filas do lado de fora. Saramago começou sua fala avisando: tenho uma má notícia para vos dar.  O público que o aplaudia ininterruptamente aguardou o que vinha a seguir: “A má notícia é que não sou utopista” – largou ele para em seguida continuar – “Pior notícia ainda: considero a utopia, não só o conceito de utopia, inútil, como também tão derretido, mesmo que ponham umas aspas, como a ideia de que quando morrermos vamos todos para o paraíso”.

O auditório Araújo Viana lotou para ouvir a mesa sobre "Os novos Quixotes" | Foto: Repositório FSM
O auditório Araújo Viana lotou para ouvir a mesa sobre “Os novos Quixotes” | Foto: Repositório FSM

A conferência serviu como síntese das utopias e não-utopias que circulavam o mundo então. “Enquanto Ramonet se concentrava em medidas práticas para mudar o mundo, e Zaragoza combatia a indiferença dos silenciosos, Galeano e Saramago se concentravam, um em ressituar e outro em demolir a importância da utopia. Para Galeano, mesmo na loucura, valia a vitória moral de  Quixote em sua aventura de liberdade. Para Saramago, a utopia nos tirava da necessidade de transformar o hoje e nos levava a fazer planos para uma geração de séculos à frente que poderia não estar interessada. E todas essas falas energizavam de fato a plateia para a vontade de fazer outro mundo possível já”, recorda Rita.

A Marcha das Mulheres

E houve ainda outro momento importante acontecendo longe das filas a espera de nomes reconhecidos. No Fórum Social Mundial de 2005, a Marcha Mundial de Mulheres aprovou em assembleia e lançou sua “Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade”, “com um alcance que provavelmente nem o conjunto dos eventos do FSM conseguiria nos 10 anos seguintes”. O documento, redigido por mulheres de 60 países em forma de colcha de retalhos, percorria quatro continentes carregando seu recado.

O espaço da Tenda Feminista viu adiantar naqueles dias temas e discussões que agora, no Brasil de dez anos depois, parecem ainda mais atuais e urgentes. Durante a semana do Fórum mulheres ativistas de todas as partes do mundo dividiam suas experiências de luta sobre direitos reprodutivos, descriminalização do aborto, políticas públicas voltadas a LGBTs, entre outros temas da agenda feminista. “A Articulação das Mulheres Brasileiras trouxe ao FSM uma luta feminista diretamente associada à luta anti-racista, que é outra agenda dificil de inserir nos movimentos da sociedade brasileira que não reconhece seu próprio racismo”, conta Rita.

Ao mesmo tempo que o debate deixou herança nas ruas de 2015, as pautas atuais do Congresso Nacional também revelam que muitos dos temas planteados pelas feministas há dez anos ainda não foram assimilados. E muitos Fóruns ainda teriam de vir.

Espaço da Tenda Feminista durante o evento | Foto: Repositório FSM
Espaço da Tenda Feminista durante o evento | Foto: Repositório FSM

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