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4 de agosto de 2015
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17:31

‘Bancos éticos’ defendem compromisso social e ganham força na Espanha pós-crise econômica

Por
Sul 21
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Juliana Sada e Rodrigo Valente

Do Opera Mundi 

Para além dos produtos básicos oferecidos por instituições financeiras, como poupanças, aplicações e investimentos, muitos correntistas não têm ideia de onde vai parar o dinheiro guardado nos bancos. Caso vá atrás de descobrir, o cliente pode acabar em desgosto ao ver que seu patrimônio está sendo usado para financiar iniciativas controversas, como indústria de armas, produção de agrotóxicos ou especulação imobiliária. Sem critérios éticos no momento de conceder crédito, as instituições financeiras podem ainda apoiar empresas e projetos que, por exemplo, violam de diversas formas os direitos humanos ou agridem o meio ambiente.

Se comumente os bancos são vistos de maneira negativa, algumas iniciativas ao redor do mundo pretendem apresentar um contraponto: são os chamados bancos éticos ou “com valores”. Ainda que, em um primeiro olhar, a combinação entre as duas palavras gere um desconforto, algumas experiências vêm desafiando essa percepção. Já com uma sólida presença em alguns países europeus e no Canadá, as entidades financeiras que também se pretendem éticas vêm ganhando cada vez mais espaço — e clientes —, embora no Brasil o tema ainda seja praticamente desconhecido.

Campanhas que denunciam linhas de investimento de bancos convencionais ganharam força nos últimos anos. Reprodução
Campanhas que denunciam linhas de investimento de bancos convencionais ganharam força nos últimos anos. Reprodução

Há dois grandes princípios fundamentais para os bancos éticos. O primeiro é a transparência: tornar pública e facilmente acessível toda informação da instituição, como balanços, modo de funcionamento e linhas de investimento. O segundo é financiar projetos socialmente responsáveis, aplicando critérios éticos para a concessão de crédito. Para além da viabilidade econômica, os bancos analisam, por exemplo, impacto ambiental, inserção trabalhista de pessoas com deficiências, geração de desenvolvimento local, entre outros itens, que variam segundo cada instituição financeira.

Além destes princípios, grande parte das instituições vê a política de crédito como uma ferramenta poderosa para transformar a realidade. Esta ideia está plasmada na própria definição da GABV (Global Alliance for Banking on Values), entidade que conta com 28 membros, presentes em cinco continentes e com 20 milhões de clientes e se define como uma rede de bancos que partilham “a missão de usar as finanças para difundir desenvolvimento econômico, social e ambiental de maneira sustentável”.

Para o representante na Catalunha do espanhol Fiare Banca Etica, Albert Gasch, a economia “deve estar a serviço das necessidades das pessoas e não para que o capital se faça maior à custa dos trabalhadores”. Já o professor da Universidade de Valência, Joan Ramon Sanchis Palacio, autor do livro “La banca que necesitamos” [“O banco de que precisamos”, em tradução livre], defende um modelo “com carácter social, muito vinculado às necessidades das famílias, das pequenas e médias empresas e que financie a economia real e não especulativa”.

Cidadãos críticos, mercado em expansão

A Espanha é um dos países europeus que mais tem experimentado uma expansão das entidades financeiras que se colocam como éticas. Tal crescimento tem como pano de fundo a profunda crise econômica que atinge o país desde 2008, na qual os bancos foram apontados como grandes vilões.

“Nós, cidadãos, estamos muito zangados com os bancos”, aponta o acadêmico Palacio. “A imagem destas instituições se deteriorou muito na crise: receberam muito dinheiro público e houve cortes em setores como saúde e educação”. A opinião é partilhada pelo diretor-executivo da GABV, Marcos Eguiguren. “A crise, de alguma maneira, beneficiou nosso modelo de banco, que é muito mais próximo ao cliente normal e muito sensato, ou seja, só fazemos os empréstimos normais, que geram valor agregado”.

Albert Gasch, na sede do Fiare Banca Etica, na Catalunha: “Nosso objetivo principal é transformar as coisas através do crédito” Juliana Sada/OperaMundi

Além das críticas ao papel desempenhado pelos bancos durante a crise, se destacaram nos últimos anos grandes movimentos de contestação, como os indignados e organizações que se dedicam a explicitar no que é utilizado o dinheiro dos clientes. Como é o caso de campanhas como “Finanças éticas” e “Somos clientes, não cúmplices”. As denúncias se centram no financiamento da indústria de armas e de projetos que destroem o meio ambiente e atingem comunidades locais, além de investimentos que geram especulações com preços de alimentos e imobiliária.

O crescimento das entidades éticas pode ser observado em dados reunidos pelo Barômetro Estatal das Finanças Éticas, produzido pela associação FETS (Finançament Ètic i Solidari). De 2007 a 2014, a cifra de dinheiro depositada nas entidades aumentou onze vezes (ou seja, mais de 1.000%), indo de € 133 milhões para €  1,5 bilhão. Já os empréstimos concedidos cresceram cinco vezes, de € 163 milhões para €  821 milhões. Apenas entre 2013 e 2014, o crescimento em número de clientes foi de 18%. “É um setor que cresce muito, mas, apesar disto, ainda é muito pequeno e não chega a 1% do mercado”, contextualiza o coordenador da Oikocredit Catalunya, David Barbero.

Administrações públicas também vêm buscando aproximar-se dos bancos éticos. É o caso de duas prefeituras próximas à Barcelona que aderiram ao banco Fiare. A cidade de Sabadell começou a operar com instituições que aplicam critérios éticos em 2009. Já o município de Vilanova i la Geltrú relata a “vontade de incorporar a perspectiva ética na gestão pública municipal através da gestão econômica”, segundo comunicado.

Modelo cooperativo, horizontal e sem fins lucrativos

Atualmente, são dois os principais bancos éticos na Espanha: o Triodos Bank, de origem holandesa, e o nacional Fiare Banca Etica. “Já se pode ter todos os serviços financeiros cobertos por entidades éticas com condições iguais, ou inclusive melhores, que as dos bancos convencionais, além da transparência e critérios éticos e sociais”, relata Barbero.

Apesar de conjugarem transparência e critérios éticos para a concessão de créditos, estas instituições possuem estruturas e modos de funcionamento distintos. O primeiro modelo, no qual se encaixa o banco holandês, é estruturalmente muito parecido com um banco convencional, tendo fins lucrativos e funcionando como sociedades anônimas, ou seja, sob controle de acionistas.

Já o segundo modelo se diferencia de um banco tradicional também pela sua estrutura de funcionamento. São iniciativas em forma de cooperativa, sem fins lucrativos e que funcionam horizontalmente. “Uma pessoa significa um voto, independente do capital aportado, esta é a definição sagrada de uma cooperativa”, explica Gasch, que é responsável por clientes na seção catalã do Banco Fiare.

A principal referência deste modelo é o italiano Banco Popolare Etico, fundado em 1999 e que em 2014 se fundiu ao o espanhol Fiare, que segue a mesma estrutura. A iniciativa espanhola foi criada em 2003, no País Basco, quando 52 organizações se reuniram para criar um banco ético na forma de cooperativa sem fins lucrativos.

Dentro da estrutura do Fiare uma pessoa ou instituição pode se tornar não apenas cliente como sócio do banco. Para isto, deve-se investir um valor mínimo de € 300, mas praticamente sem retorno financeiro. Tornar-se sócio significa obter um direito político de participar das instâncias de decisão do banco, que vão desde uma base territorial com diversos espaços de participação até a assembleia geral. Atualmente, a instituição espanhola Fiare conta com 5.500 sócios e cerca de 6 mil clientes.

Na entrada da agência do Triodos Bank, uma frase conta a motivação para fundar o banco: “utilizar o dinheiro de maneira responsável para construir um futuro melhor. Juliana Sada/OperaMundi

Além do Triodos Bank e Fiare Banca Etica, a Espanha conta ainda com duas grandes cooperativas de crédito: a Oikocredit, cuja seção no país é de 2000, e a Coop 57, de 1995. Apesar de não serem bancos, oferecem serviços financeiros como concessão de créditos e financiamento, e ambas funcionam de forma cooperativa. Juntas, as quatro instituições detêm 99% do mercado de finanças éticas na Espanha, segundo o mesmo levantamento do Barômetro.

O caminho à frente

Mesmo com experiências sólidas, as entidades éticas ainda enfrentam desafios para se expandir. O primeiro deles é tornar-se conhecido. “É uma porcentagem relativamente reduzida da opinião pública que sabe que existe esse modelo, apesar do crescimento”, explica Marcos Eguiguren. Outro ponto é a ampliação do atendimento presencial, já que apesar de oferecerem serviços pela internet, as agências seguem sendo ferramentas importantes para atrair clientes. O Triodos, por exemplo, tem agências em 18 cidades espanholas, número relativamente pequeno.

Mesmo com os desafios ainda a serem enfrentados, os bancos éticos têm demonstrado sua viabilidade, defende o professor Joan Palacio. “O objetivo não é a maximização dos lucros, diante disto estão as pessoas e os objetivos sociais. Há que se buscar este equilíbrio.” A ideia é reforçada por Barbero, da Oikocredit Catalunya: “Estamos demostrando que se pode fazer economia e finanças de outra forma, sem renunciar a um mínimo de rentabilidade econômica”.

O panorama global entre 2003 e 2013 reforça esse ponto de vista. “Os bancos com valores cresceram em média, em ativos e depósitos, algo entre o dobro e o triplo do que os convencionais”, apresenta Eguiguren citando um estudo produzido pela GABV. “Há uma demanda por entidades deste tipo e estamos criando esta oferta”, completa. Para além dos números, Palacio destaca a mobilização social em torno do projeto. “Acredito que estamos vivendo uma revolução silenciosa, com a sociedade civil, frente à exclusão financeira, se mobilizando e construindo bancos éticos”, conclui de forma otimista.


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