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6 de março de 2021
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12:21

Na linha de frente da covid: ‘Nós estamos na iminência de viver Manaus’

Por
Sul 21
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O enfermeiro Ismael Miranda da Rosa, que trabalha no Hospital São Camilo, de Esteio, cidade onde mora, e na UPA de Sapucaia do Sul. Foto: Arquivo pessoal

 Luís Eduardo Gomes

O Rio Grande do Sul enfrenta neste início de março o período mais trágico da pandemia de coronavírus. Diversos hospitais de Porto Alegre estão com todos os leitos de UTI ocupados e a fila de pacientes à espera de internação não para de crescer. As Unidades de Pronto Atendimento também estão superlotadas e os depoimentos dos profissionais de saúde são de adoecimento e angústia. Neste grave momento, o Sul21 publica relatos de quem atua na linha de frente sobre como está sendo trabalhar nestas condições.

O enfermeiro Ismael Miranda da Rosa, que trabalha no Hospital São Camilo, de Esteio, cidade onde mora, e na UPA de Sapucaia do Sul, diz que a situação mais grave é a da unidade de pronto atendimento. “A UPA sempre foi um serviço de baixíssima complexidade. Nós não internávamos pacientes, o regramento era que, após 24 horas aqui, nós encaminhávamos eles para o hospital ou referenciávamos para as unidades básicas, se fosse o caso. Para o SAMU, por exemplo, a orientação nunca foi trazer pacientes graves para a UPA. E nunca ocorreu. Agora, nesses últimos dias, nessas últimas duas semanas, fisicamente houve uma mudança. Até 20 dias atrás, nós tínhamos seis leitos na área de observação, nós tínhamos duas macas que eram para atendimento da sala vermelha [pacientes graves], com dois respiradores, e três leitos pediátricos. Ou seja, as pessoas ficavam aqui, a gente estabilizava elas e fazia os encaminhamentos. A sala vermelha era usada, quando muito, uma vez por semana, não tínhamos tantos casos. Agora, mudou. Hoje, segunda-feira, 1º de março, nós temos na UPA só com covid-19, sob observação, dez leitos e todos eles lotados. Temos três leitos de vermelha e 11 pessoas numa outra ala em que os pacientes permanecem aqui por um tempo, 24 horas ou mais, permanecem sentados, porque não tem mais como botar deitados, dependentes de oxigênio”, afirma.

Segundo Ismael, o grande problema relativo ao oxigênio é que a UPA de Sapucaia não tinha a estrutura necessária para suprir a atual demanda de pacientes pelo suporte respiratório. “De oito leitos que havia, a gente tem 13 leitos e mais 11 pessoas permanentemente aqui. São 24 pessoas permanentemente e nós tínhamos antes, quando muito, 11. Então a gente mais do que dobrou o número de leitos na UPA, sendo que era uma unidade que não tinha essa estrutura. E não ter essa estrutura significa que nós não temos, por exemplo, oxigênio para manter essas pessoas todas. Nós não temos uma central de oxigênio, os torpedos [de oxigênio] são trocados a cada 3 horas, um jogo de três torpedos, o sistema não suporta fazer mais conexões, e a cada 2h30 cai a pressão do oxigênio da oferta. Então, se tu tem um respirador com um volume para receber, ele vai cair, porque não vai ter pressão na rede e rapidamente alguém vai ter que ir lá trocar esses torpedos. Eu até comento que nós estamos na iminência de viver uma situação que os colegas de Manaus viveram, que é a falta de oxigênio. Não por falta de produto, mas por falta de estrutura. Se adaptou um sistema a uma estrutura que não tinha como comportar e não tem. Hoje, essa situação é latente e muito preocupante para nós. Os gestores estão cientes disso, de que precisam ampliar, de que precisam adaptar alguma situação”, diz [a reportagem conversou com Ismael na sexta-feira, 5, e ele confirmou que a situação do oxigênio continua preocupante].

O enfermeiro diz que essa situação faz com que os trabalhadores estejam atuando no limite de suas capacidades. “Ontem (domingo), morreram duas pessoas na UPA e isso abala demais, porque nós não éramos uma unidade acostumada a ter óbitos, aqui era uma unidade pela vida, as pessoas não ficavam tão graves. Agora, nós temos casos graves. Essas pessoas que aguardam, são casos indicados para leitos de UTI, unidades intensiva, é muito grave um indivíduo ficar no limite de 15 litros de oferta de oxigênio e máscara e ter um padrão respiratório, com a troca gasosa de respiração, de 90%. A gente sabe do risco que isso tem. Então, a gente tá vivendo uma situação de guerra, realmente, e a gente vê a população acessando o serviço para coisa de baixíssima complexidade e percebemos que as pessoas não têm noção do que está acontecendo. Elas não sentem, evidentemente, como nós sentimos a realidade”, afirma.

Situação que se agrava pelo fato de que, apesar da estrutura de atendimento ter, de fato, sido ampliada, o tamanho das equipes não foi, segundo relata: “As soluções e propostas de ampliação das estruturas [ocorreram], tu vê que a UPA mais do que dobrou o número de leitos, mas o número de profissionais não aumentou um sequer. Aí o que faz? Quem tem que dar conta disso é quem está na assistência. Nós estamos trabalhando por três, porque a gente não consegue estar em todos os locais e isso gera um sofrimento, porque tu sabe que tu vai correr, correr, correr e as coisas não vão levar a um resultado positivo. Tu pensa estruturas, amplia estruturas, e profissional que é bom você não coloca, isso também acaba nos desgastando. Agora, mais do que no pico do inverno passado, o desgaste sobre os trabalhadores é muito grande. Nós temos materiais dessa vez, temos EPI, mas a preocupação com os pacientes e a gravidade na qual eles se apresentam é muito maior”, diz.

Para Ismael, as medidas de restrição da bandeira preta deveriam ter sido implementadas muito mais cedo, uma vez que a explosão de casos atual seria previsível. “Trabalhar na bandeira preta era algo que eu acredito que a gente já deveria estar desde antes da eleição. Não deveríamos ter exposto as pessoas no final do ano, em dezembro. O Carnaval, então, foi terrível. O verão, janeiro e fevereiro, todo mundo amontoado no nosso litoral e disseminando. Agora, a gente está colhendo os frutos. E a gente vê as pessoas jovens, que estão com adoecimento, vem com falta de ar, não entendendo o que está acontecendo, porque, até então, não tinham doença alguma, não tinham esse sentimento do que é faltar o ar. Então, para nós, profissionais, é muito preocupante e muito frustrante porque a gente sentia que isso ia acontecer e pouco se fez. Os gestores pouco fizeram. Uma guerra de desinformação, para passar a informação errada para as pessoas de que as coisas não eram tão graves, e são. Nós não sabemos para onde isso tudo vai nos levar, mas, com certeza, não será uma situação de melhora nos próximos meses”, diz.


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