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10 de fevereiro de 2021
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11:40

‘Vacina boa é vacina no braço’: Falta de planejamento impacta ritmo de imunização contra covid-19

Por
Sul 21
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‘Vacina boa é vacina no braço’: Falta de planejamento impacta ritmo de imunização contra covid-19
‘Vacina boa é vacina no braço’: Falta de planejamento impacta ritmo de imunização contra covid-19
Equipes da Prefeitura de Porto Alegre têm vacinado em casa idosos acamados, enquanto vacinação nos postos de saúde começa nesta semana.  Foto: Cristine Rochol/PMPA

Luciano Velleda

O ritmo ainda lento da vacinação contra a covid-19 no Rio Grande do Sul tem origem bem anterior ao ato de aplicar a dose no braço da população. O processo de sucateamento do Sistema Único de Saúde (SUS) em curso desde o ano de 2016, e a omissão do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em adquirir vacinas e organizar o Plano Nacional de Imunização (PNI) têm reflexo direto no ritmo da imunização no RS e no Brasil.

Ao menos essa é análise de Alcides Silva de Miranda, professor de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Miranda pondera ser difícil avaliar os primeiros 20 dias de vacinação no Estado sem considerar, como premissa, o não planejamento anterior que deveria ter sido feito pelo governo federal. “Omissão criminosa” e “negligência” são as palavras que o professor usa para definir a postura do governo Bolsonaro. Sem o planejamento central, característica das campanhas de vacinação no Brasil, estados e municípios ficaram na situação de “cada um por si”. O resultado, claro, não poderia ser bom.

À falta de organização soma-se a pouca quantidade de doses, ainda insuficientes para vacinar os grupos prioritários na velocidade desejada. Até esta terça-feira (9), o Rio Grande do Sul recebeu 704.400 doses e distribuiu 697.803 aos municípios, que por sua vez aplicaram apenas 239.391. Até o momento, em Porto Alegre foram vacinadas 64.708 pessoas, representando 58,7% dos profissionais de saúde, 91,1% dos idosos residentes em instituições de longa permanência e 67,9% indígenas e quilombolas.

“Continuamos em compasso de espera. Ainda aguardamos uma produção mais massiva (de doses) para agilizar esse processo”, afirma o professor Miranda, também coordenador da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Ele acredita que a produção e entrega de doses para estados e municípios deva aumentar nas próximas semanas, mas talvez ainda insuficiente para agilizar o ritmo da imunização dos grupos prioritários.

O professor de Saúde Coletiva da UFRGS estima que a circulação do novo coronavírus só terá queda brusca quando 60% ou 70% da população gaúcha estiver vacinada. Considerando o contexto de desarticulação do governo federal e de poucas doses, ele diz que o Rio Grande do Sul até que tem feito “o dever de casa”, na medida do possível.

Miranda ainda destaca os efeitos na vacinação contra o coronavírus do “desmonte” do Sistema Único de Saúde (SUS) posto em prática desde 2016, com a chegada de Michel Temer (MDB) à presidência da República. Aquela rede de imunização que já foi exemplo para o mundo, num país de dimensão continental como o Brasil, não é mais como outrora.

“Essa excelência é identificada até 2016. Dali em diante, com a aprovação da PEC do teto de gastos, houve mais cortes e há um comprometimento dessa rede desde 2016”, explica o professor de Saúde Coletiva da UFRGS. “Estamos pagando um preço que não é de agora. Passado o período crítico da pandemia, vai acontecer de novo o desmonte do SUS de modo geral, com a rede de serviços de atenção básica e um conjunto de iniciativas públicas que começaram a ser desmontadas”, projeta Miranda.

Sem cronograma

A rotina de Tani Ranieri, chefe da Divisão de Vigilância Epidemiológica do Estado, tem sido agitada. Com quase um ano da crise do coronavírus no RS, o trabalho agora tem abrangido também a responsabilidade de receber e distribuir para os municípios as doses das vacinas CoronaVac e de Oxford/AstraZeneca, as duas usadas por enquanto no Brasil. Pouco mais de 20 dias depois do início da vacinação no Estado, ela conta ainda não ter recebido um cronograma com novas remessas por parte do Ministério da Saúde. A falta de datas para a chegada de novos lotes de vacinas complica toda a logística de distribuição. “Fica muito difícil tentar fazer qualquer projeção sem conhecer essas informações”, reconhece.

Por sua vez, com todo o atraso da chegada dos insumos vindos do exterior para que o Instituto Butantan e a Fiocruz comecem a produzir no Brasil as vacinas CoronaVac e de Oxford, respectivamente, o Ministério da Saúde depois de tanto postergar o planejamento agora colhe os frutos de seus próprios erros. “Infelizmente, o país ainda está com dificuldades”, diz a chefe da Divisão de Vigilância Epidemiológica do Estado.

Apesar de todos os problemas e da coordenação falha do governo federal, Tani avalia que as cidades gaúchas estão bem preparadas para aplicar as doses que recebem, que ainda são poucas. “Os municípios têm expertise pra aplicar muito mais doses por semana”, afirma. Ela pondera que o início mais lento da vacinação também tem relação com a vacina direta em instituições de longa permanência para idosos e em hospitais para imunizar os trabalhadores da saúde, o que demanda uma logística diferente daquela usualmente praticada nos postos de saúde. “O número de vacinados reflete a realidade nacional com poucas doses, o que mostra porque ainda não conseguimos fechar 100% dos grupos prioritários. Ainda está baixo.”

Tani acredita que o ritmo da vacinação deve melhorar quando as aplicações começarem nos postos de saúde. A partir dessa semana, muitas cidades iniciam a imunização de idosos acima de 85 anos e ela confia que a população está aguardando e irá aderir à vacinação.

Outro elemento apontado pela chefe da Divisão de Vigilância Epidemiológica do Estado para a dificuldade logística deve-se ao número de 10 doses em cada frasco das vacinas.  Segundo Tani, o frasco da CoronaVac tem 6h de validade depois de aberto e a de Oxford  10h. “Temos que ter um planejamento para que a gente otimize e não desperdice dose. É mais uma dificuldade para a organização desse processo e o planejamento dos municípios”, explica.

Em algumas cidades, diz ela, o número de pessoas do público prioritário é reduzido e, por isso, tem sido necessário realizar agendamentos para não haver desperdício de dose depois de aberto o frasco da vacina. Segundo Tani, são questões práticas que, aliadas às poucas doses e à falta de cronograma, têm dificultado o ritmo da vacinação no Rio Grande do Sul.

‘Vacina boa é vacina no braço’

Integrante do comitê de combate ao coronavírus da UFRGS, Mariur Gomes Breghetto,  professora de Enfermagem de Saúde Coletiva, concorda que a falta de planejamento do governo federal impacta na aplicação das vacinas na ponta do processo, ou seja, nas cidades. Apesar de toda a experiência do Plano Nacional de Imunização (PNI), chegando nas mais diversas localidades do País, sem coordenação central o processo fica comprometido.

“Está havendo diferenças entre as cidades, umas com cobertura vacinal mais adiantada e outros com cobertura muito pequena. Algo está acontecendo no nível local e a comunicação pode ser um dos entraves, na medida em que tudo está acontecendo ‘em cima do laço’”, diz Mariur. “Muitas gestões dos municípios ainda estão incapazes de fazer a aplicação de modo célere.”

Com formação em Enfermagem, Mariur tem aplicado a vacina em idosos que moram em asilos e também participa do treinamento de cerca de 80 alunos da UFRGS que irão atuar na imunização. O conhecimento teórico e prático tem lhe deixado inconformada com a lentidão da vacinação. A professora da UFRGS concorda com a imunização dos trabalhadores da saúde nos hospitais, mas critica o fato de a Prefeitura de Porto Alegre ainda não ter iniciado a vacinação nos postos de saúde e nem ter feito a imunização das pessoas dentro de automóveis, o chamado drive-thru.

“Está sendo feito de uma forma diferente do que fazíamos em outros momentos. O drive é capaz de rapidamente aumentar a cobertura vacinal, embora também tenha uma desigualdade em função do carro, mas desonera a unidade de saúde. A gente poderia estar mais célere e priorizar com ação estratégica de governo”, afirma Mariur.

Ela destaca que a cidade de Caixas do Sul já fez vacinação no formato drive-thru enquanto Porto Alegre planeja a primeira ação do tipo somente para o próximo final de semana. “É um jeito muito efetivo, se consegue de uma forma muito segura e dinâmica atender a população. É uma saída para os grandes centros urbanos, até na medida de que não podemos causar aglomeração”, justifica, citando a possibilidade do modelo para vacinar os idosos acima de 85 anos.

A questão das 10 doses em cada frasco, alegada como uma dificuldade adicional pela chefe da Divisão de Vigilância Epidemiológica do Estado, também não a convence. Com experiência em gestão no âmbito hospitalar e emprego de indicadores clínicos, epidemiológicos e de desempenho, Mariur afirma que as 10 doses por frasco não é uma limitação mesmo em cidades pequenas e que o PNI é claro ao orientar para não haver desperdício.

“Se chegar no final do dia e tiver dose, se chama alguém do grupo prioritário. Não vamos embora enquanto não terminar”, explica. Para ela, ritmo lento significa falta de organização.

A professora de Enfermagem de Saúde Coletiva calcula que um bom ritmo de vacinação seria imunizar, num prazo de duas semanas, em torno de 90% de cada público prioritário. A projeção, diz ela, seria semelhante com o prazo de novas remessas e a aplicação da segunda dose da vacina. O surgimento de novas cepas do coronavírus é outro elemento de preocupação e que reforça o entendimento de que é necessário acelerar a vacinação. Enquanto a epidemia não for controlada, novas variantes do vírus vão surgir. “Vacina boa é vacina no braço e não dentro da geladeira”, ensina a professora da UFRGS.


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