Últimas Notícias
|
28 de fevereiro de 2021
|
11:57

Por dentro da UTI: ‘A situação é desesperadora’, diz médico intensivista

Por
Sul 21
[email protected]
Por dentro da UTI: ‘A situação é desesperadora’, diz médico intensivista
Por dentro da UTI: ‘A situação é desesperadora’, diz médico intensivista
Equipe do Hospital de Clínicas faz a manobra de prona, deitando o paciente de bruços para melhorar a oxigenação dos pulmões. Em 11 meses, o Clínicas pronou 300 pacientes. Imagem: Reprodução/Facebook/HCPA

Luciano Velleda

Fabiano Nagel conhece o seu ofício. Há 17 anos trabalha como intensivista nas UTIs (Unidade de Terapia Intensiva) de Porto Alegre. Conviver diariamente com a possibilidade de morte dos pacientes é parte da sua rotina, uma rotina para a qual foi bem treinado, incluindo saber como dar más notícias aos familiares daqueles que não resistem. A alta capacidade técnica dele e de seus colegas, todavia, não previa segurar a barra na linha de frente da maior crise sanitária dos últimos 100 anos. Desvendar um vírus desconhecido e extremamente agressivo foi um trabalho árduo, trilhado ao longo do ano de 2020. E com resultados positivos, apesar da tragédia que assola o País.

“À medida que os meses foram passando e essa curva de aprendizado se aprimorando, hoje temos uma habilidade técnica superior pra lidar com a situação, mas isso não significa que essa habilidade técnica elimina o estresse, o desgaste e o sofrimento porque as decisões continuam sendo dramáticas”, explica Nagel, atualmente trabalhando nas UTIs do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e no Grupo Hospitalar Conceição.   

A exaustiva rotina de trabalho tem sido de 80 ou 90 horas por semana. Nem quando chega em casa o dia termina. A cabeça gira recordando o dia e toda a crise. Não há distração possível diante da lembrança daquele paciente que chorou antes de ser entubado ou do outro que fez uma vídeo-chamada com os familiares que talvez não veja mais.

Nessa entrevista ao Sul21, Nagel conta que ele e seus colegas chegaram a pensar que não aguentariam passar pelo inverno de 2020, o primeiro pico da pandemia do novo coronavírus no Rio Grande do Sul. Hoje, ao olhar pra trás, o intensivista pensa bem diferente. “Comparativamente com o período lá de julho de 2020, a situação atual é muitíssimo pior. Quem dera a situação atual ser como foi em junho, julho e agosto de 2020. A situação hoje é muito pior. A situação é desesperadora, ficamos realmente desesperados.”

A voz calma e a fala pausada retratam um profissional talhado pra lidar com situações limites. Ao usar a palavra “desespero”, Nagel pondera não ser uma pessoa dramática e explica que o intensivista, geralmente, é uma pessoa com controle grande dos aspectos emocionais por lidar com situações de risco de morte iminente todos os dias. Mas não há mesmo outra palavra que melhor defina a atual situação de colapso do sistema de saúde de Porto Alegre.

“Agora a situação é tão extrema que não existe como não ficar, de certa forma, desesperado ao longo do dia, porque não depende da minha capacidade individual técnica, depende da ausência de recurso pra atender os pacientes que estão lá esperando”, explica.

Entre as cenas e situações que o atormentam, Nagel recorda o caso de um homem que começou a chorar assim que soube da necessidade de ser entubado, caso contrário, morreria em minutos. Era um paciente que não acreditava na pandemia.

“Eu disse pra ele: ‘Vou entubar o senhor senão o senhor vai morrer nos próximos minutos, vou fazer isso agora pra não perder o momento certo’. Ele começou a chorar e disse: ‘Eu não achava que isso era tão sério, se eu soubesse, tinha agido diferente’. Isso tu leva embora pra casa, tu morre um pouco ali com a declaração do paciente. Todos nós morremos um pouquinho todos os dias e isso vai ficando em ti, isso não vai embora.”

Sul21: Depois de um ano na linha de frente da pandemia e enfrentando agora o pior momento da crise, como você se sente, mental e fisicamente?

Fabiano Nagel: A sensação no dia a dia é de esgotamento. Estamos trabalhando muito, muitas noites, dias inteiros, fins de semana, às vezes passo seis finais de semana trabalhando sem nenhum deles de folga. Trabalho 80 ou 90 horas numa semana. E isso é uma coisa que as pessoas não conseguem entender, a gente não pode simplesmente não ir. Muitos colegas adoecem ou se afastam, nem sempre por covid, às vezes por outros motivos, o nível de estresse de todos é alto, só que a UTI não pode ficar descoberta, não pode deixar os pacientes sem médico, então nós todos acabamos vindo muitas vezes pro hospital em plantões e turnos de trabalho que não são os nossos simplesmente porque precisa ter alguém lá.

Mesmo quando chego em casa, o dia não termina, a cabeça fica girando sobre esse assunto o tempo inteiro, não se consegue ligar a TV e se distrair, porque a cabeça não se distrai. Eu e muitos colegas estamos dormindo muito mal há muito tempo, não se consegue repousar porque tu sabes que assim que acordar, tudo vai recomeçar. Muito pouca coisa traz alguma satisfação no dia a dia porque nós não conseguimos nos desligar do que está acontecendo.

Sul21: Como está o ambiente das UTIs agora em comparação com outros momentos da pandemia?

Fabiano Nagel: No começo da pandemia tínhamos muito pouca informação sobre qualquer coisa, a ciência sobre o assunto praticamente não existia, então existia temores e incertezas de todas as naturezas. Estávamos enfrentando uma doença que não existia antes, com um comportamento muito agressivo e uma apresentação que não era usual mesmo para um paciente crítico de UTI. Então nossa curva de aprendizado teve que ser a duras penas, tivemos que ir apreendendo o que fazer à medida que as coisas iam se desenrolando.

Obviamente temos uma formação técnica que nos dá ferramentas pra enfrentar essas situações, mas como é uma doença nova, nós mesmos, especialistas em terapia intensiva, tínhamos muitas dúvidas e muitas angústias. Muitas vezes, pra tomar a decisão de entubar um paciente, ficava em dúvida se aquilo naquele momento seria bom ou ruim pro paciente, sendo que no passado, esse tipo de decisão era linear. Mas agora com a quantidade de doentes se apresentando e as manifestações particulares da doença, às vezes conversava com colega que estava no lado ou na outra UTI pra ver qual a opinião dele. À medida que os meses foram passando e essa curva de aprendizado se aprimorando, hoje temos uma habilidade técnica superior pra lidar com a situação, mas isso não significa que essa habilidade técnica elimina o estresse, o desgaste e o sofrimento porque as decisões continuam sendo dramáticas.

Obviamente alguém que está em insuficiência respiratória se não é entubado, vai morrer imediatamente. Se eu deixar o paciente naquele situação, ele morre em minutos. Mas nós sabemos também que o paciente que vai pra ventilação mecânica tem uma chance substancial de não sobreviver. Então às vezes temos paciente na faixa dos 30 anos…tive que entubar um colega de profissão, um cardiologista, mais jovem do que eu, e tu sabe que está entubando uma pessoa que talvez não consiga mais sair da ventilação mecânica e ir embora da UTI viva. Então mesmo que hoje nós saibamos lidar melhor, do ponto de vista técnico, com os paciente com covid-19, as angústias permanecem as mesmas.

Sul21: Há diferença na evolução da doença nos pacientes que estão sendo internados agora?

Fabiano Nagel: Lá em junho, julho e agosto de 2020, quando estávamos trabalhando num ritmo absolutamente frenético, todo mundo exaurido já naquele momento, nós achávamos que não íamos aguentar. Conseguimos passar por aqueles meses e no período subsequente, quando os casos deram uma arrefecida, respiramos e dissemos: ‘Bom, pelo menos está diminuindo e esse pesadelo vai acabar’. Comparativamente com o período lá de julho de 2020, a situação atual é muitíssimo pior. Quem dera a situação atual fosse como foi em junho, julho e agosto de 2020. A situação hoje é muito pior. A situação é desesperadora, ficamos realmente desesperados.

Nos grupos que temos de gerenciamento de leitos, não temos mais onde enfiar os pacientes, não temos mais leitos de UTI pra botar os pacientes, e a emergência não consegue receber mais ninguém. Só que a gente não pode simplesmente pensar: ‘Ah não vou mais pensar nisso e vou me desligar’. Essa é uma preocupação que é nossa, temos que dar um jeito nisso, temos que atender esses pacientes. Isso gera um nível de desgaste com os profissionais que estão lidando com isso que não consegue ser descrito em palavras.

Vejo a lista dos pacientes e das idades deles e sei que essa pessoa tem alguém, que é um ente querido, que tem uma pessoa que ela ou ele ama, que tem filho, que é o arrimo da família, e essas pessoas têm que ser colocadas pra serem atendidas, elas já deveriam  estar na UTI.

Sul21: A fila de pacientes com covid-19 na emergência esperando vaga na UTI dobrou em 48 horas essa semana

Fabiano Nagel: Isso é o exemplo do nosso desespero. Quando uso essas palavras, e não sou uma pessoa dramática, o intensivista, em geral, é uma pessoa com controle grande dos aspectos emocionais porque lidamos com situações de risco de morte iminente todos os dias. Quando chego na UTI de manhã cedo, sei que uma pessoa pode morrer se eu não atuar e isso faz parte do meu trabalho. Mas agora a situação é tão extrema que não existe como não ficar, de certa forma, desesperado ao longo do dia, porque não depende da minha capacidade individual técnica, depende da ausência de recurso pra atender os pacientes que estão lá esperando.

Sul21: Qual o impacto dessa experiência na sequência da tua vida pessoal e profissional?

Fabiano Nagel: Mesmo que nós façamos treinamento e aprimoramento em cursos de fornecimento de más notícias para os familiares, e isso é uma coisa que intensivista faz, como, por exemplo, como abordar uma família cujo familiar entra em morte encefálica, ou como dar a notícia da morte, nós treinamos isso, não é empírico, treinamos e nos aperfeiçoamos. Mas essa pandemia, com o número de doentes e o número de mortes, com a dramaticidade do quadro, isso certamente vai deixar cicatrizes permanentes. Nenhum profissional que atuou diretamente atendendo esses pacientes na linha de frente vai ser o mesmo depois. Não vai ser o mesmo e isso não é uma coisa boa. Todos vão ficar com cicatrizes que vão ser carregadas pela vida.

Teve um senhor que internou comigo e que era um desses que não acreditava na pandemia, entrou em insuficiência respiratória e eu disse pra ele: ‘Vou entubar o senhor senão o senhor vai morrer nos próximos minutos, vou fazer isso agora pra não perder o momento certo’. Ele começou a chorar e disse: ‘Eu não achava que isso era tão sério, se eu soubesse, tinha agido diferente’. Isso tu leva embora pra casa, tu morre um pouco ali com a declaração do paciente. Todos nós morremos um pouquinho todos os dias e isso vai ficando em ti, isso não vai embora.

Às vezes se está em casa e se lembra do ‘paciente x’ ou do ‘paciente y’, do que ele falou ou da vídeo chamada que ele fez antes de ser entubado. Isso fica conosco. Não é como se nós saíssemos e pronto, está tudo resolvido. Não. Nós levamos a pandemia conosco pra casa.

Sul21: E a família sofre junto…

Fabiano Nagel: Com certeza. Minha esposa sofre muito, ela vê o meu comprometimento, tenho atividade de chefia no Hospital de Clínicas então estou envolvido nisso da manhã até à noite, muitas vezes de madrugada, com frequência vou cobrir os horários dos colegas afastados… E isso prejudica a vida pessoal dos profissionais, nenhuma pessoa que está lidando com isso está com a vida normal. Quando nós falamos de distanciamento social e de ficar em casa, nós não ficamos em casa e quando voltamos, não é o mesmo lugar porque a pandemia vai conosco pra dentro de casa.

Sul21: Qual a sensação de sair do hospital e ver nas ruas de Porto Alegre o comportamento das pessoas que não se cuidam?

Fabiano Nagel: Fico revoltado com essas pessoas. Essas pessoas estão colocando em risco a si mesmas e as outras pessoas. Porque eu vejo essas pessoas do outro lado, quando estão chorando e desesperadas com insuficiência respiratória, porque sabem que vão ser entubadas ou os familiares das pessoas que estão morrendo na UTI. Tenho vontade de pegar essas pessoas e levar pra dentro do hospital e mostrar: ‘Olha aqui, olha como é a realidade!’. Na imaginação é uma coisa e a realidade muda a visão das pessoas.    


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora