Coronavírus
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28 de dezembro de 2020
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16:56

Retrospectiva: como Porto Alegre viveu a pandemia e chega ao fim de 2020 sob alto risco

Por
Sul 21
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O inusitado varal de frascos de álcool gel no Parque Moinhos de Vento Foto: Marco Weissheimer/Sul21

Marco Weissheimer

No dia 17 de março, uma inusitada cena no Parcão (Parque Moinhos de Vento) indicava que 2020 modificaria radicalmente paisagens exteriores e interiores. No começo da chegada da pandemia do novo coronavírus a Porto Alegre, vendedores ambulantes saíram correndo para oferecer um dos produtos mais procurados então pela população: álcool gel. Em março, havia inclusive um temor de que poderia faltar álcool gel no mercado ou que o preço iria às alturas devido à alta demanda pelo produto, necessário para procedimentos básicos de proteção contra o contágio do coronavírus. O ambulante do Parcão relatou que foi a São Paulo para comprar algumas caixas de álcool gel e vender na capital gaúcha. Ele instalou um varal de embalagens na esquina da Goethe com a Mostardeiro. O preço era salgado, muito acima do valor de mercado: R$ 25,00 cada.

O Sul21 preparou uma retrospectiva sobre como a pandemia afetou Porto Alegre em 2020, estruturada a partir das imagens que nossa repórter fotográfica Luiza Castro captou neste período, a partir de março, quando começaram a ser tomadas as primeiras medidas de distanciamento social.

Nas primeiras semanas do regime de distanciamento social imposto por governos municipais e estaduais (não pelo governo federal que, desde o início, nas palavras do presidente Jair Bolsonaro, tratou a chegada da covid-19 como uma gripezinha e criticou as medidas de distanciamento social), o álcool gel foi um personagem central. A procura pelo produto gerou inclusive ocorrências policiais, como a que ocorreu, por exemplo, no dia 19 de março, em São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, onde o Procon do município interditou uma farmácia que vendia uma embalagem com 5 litros de álcool gel 70% a R$ 300. Hoje, dezembro de 2020, ao olhar para março, alguém poderá dizer: saudade do tempo em que uma das nossas principais preocupações era o álcool gel.

Água sanitária foi outro produto que passou a ser muito disputado nos corredores de supermercados. O que, para muitos, poderia ser caracterizado como obsessão pela limpeza, virou uma regra do cotidiano. Lavar as mãos com cuidado a cada saída à rua, passar álcool gel, desinfetar calçados e roupas que fossem para a rua e tudo o que viesse da rua, como alimentos, material de trabalho, livros, aparelhos eletrônicos e tudo o mais.

Corredor da água sanitária virou roteiro concorrido nos supermercados. Foto: Luiza Castro/Sul21

As máscaras foram outro item que foi sendo progressivamente incorporado à vida de todos os dias. No início, ainda houve uma certa polêmica sobre quem deveria efetivamente utilizar as máscaras de proteção. Aos poucos, porém, foi ficando claro que todos deveriam passar a usá-las. No início da pandemia, uma corrida mundial em busca de máscaras de proteção fez com que elas sumissem das prateleiras. No dia 3 de abril, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se mostrou favorável ao uso de máscaras caseiras pela população diante da pandemia de coronavírus. O Ministério da Saúde anunciou o lançamento de uma campanha digital pela mobilização da população para fabricar as próprias máscaras de pano.

Um dos principais obstáculos ao processo de convencimento da população sobre a importância do uso de máscaras partiu da autoridade máxima da nação, Jair Bolsonaro, que, por inúmeras vezes, fazia aparições públicas, em meio a aglomerações, sem utilizar a máscara. Em junho, o juiz Renato Coelho Borelli, da 9ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, determinou que Jair Bolsonaro e todos os funcionários públicos do Palácio do Planalto fossem obrigados a usar máscaras de proteção contra o coronavírus.

Máscaras foram incorporadas à vestimenta nossa de cada dia.Foto: Luiza Castro/Sul21.

As aulas foram suspensas, os corredores e salas de aula das escolas foram se esvaziando, cuidados por funcionários, professores e professoras que seguiram exercendo funções de manutenção e administrativas. Não se tinha uma ideia precisa, então, de quantos dias duraria a quarentena. Dois ou três meses? Logo depois do inverno? Acreditava-se, de modo geral, que o inverno seria um período crítico, mas que, com a primavera, viriam as primeiras medidas de relaxamento.

Bebedouros desligados na escola Paula Soares em prevenção a proliferação do coronavírus. Foto: Luiza Castro/Sul21

As ruas de Porto Alegre, assim como ocorreu em outras tantas cidades brasileiras, começaram a ficar vazias. Distanciamento social, isolamento social, quarentena, home office… Essas palavras passaram, não só a fazer parte do nosso cotidiano linguístico, como alteraram o regime de trabalho e de mobilidade social de milhões de brasileiros. Nem todos, é verdade, conseguiram mudar o seu regime de trabalho para dentro de casa, o que deixou evidente que a quarentena e os cuidados necessários para evitar o contágio pelo novo coronavírus não seriam iguais para todos. Os trabalhadores de aplicativos de entrega, por exemplo, foram uma categoria que praticamente não parou durante toda a pandemia, de março até dezembro.

Ruas de Porto Alegre esvaziadas devido ao coronavírus. Av. Independência. Foto: Luiza Castro/Sul21

O primeiro caso de covid-19 foi registrado em Porto Alegre no dia 11 de março. No dia 18 de março, o prefeito Nelson Marchezan Júnior decretou situação de emergência na capital gaúcha, determinando o fechamento de shoppings centers e galerias comerciais por 30 dias. No dia 1o de abril, Marchezan decretou estado de calamidade no município, prorrogando as medidas de isolamento social até o dia 30 de abril. Porto Alegre tinha, então, 190 casos de covid-19 confirmados e dois óbitos.

Comércio de Porto Alegre, na rua Voluntários da Pátria, fechado no início da pandemia. Foto: Luiza Castro/Sul21

No entanto, a pressão de setores empresariais fez com que o prefeito anunciasse, no dia 22 de abril, a retomada dos trabalhos da construção civil. “Não podemos ficar eternamente no isolamento social. Essa liberação parcial vai servir para fazer outras avaliações”, afirmou o prefeito na ocasião, quando a cidade tinha 400 casos confirmados e 12 óbitos. No dia 25 de abril, Marchezan decretou a reabertura das atividades industrias e, no dia 1o de maio, liberou a retomada de atividades de autônomos e microemprendedores. Outra flexibilização ocorreu no dia 20 de maio, quando, a prefeitura liberou a reabertura de shoppings, restaurantes, igrejas e outros setores do comércio em Porto Alegre.

Comércio de Porto Alegre fechado devido pelo coronavírus. Foto: Luiza Castro/Sul21

Os resultados dessa flexibilização feita mais por pressões empresariais, em um ano eleitoral, do que por motivos sanitários, não tardaram a aparecer, com a elevação do número de contágios e mortes. No dia 8 de junho, a Prefeitura suspendeu a flexibilização do distanciamento social em Porto Alegre. A velocidade de crescimento da taxa de ocupação da UTIs levou a Prefeitura a acender o “sinal amarelo”, disse Marchezan. Porto Alegre tinha, então, 1.672 casos confirmados e 45 óbitos. Quatro dias depois, em 12 de junho, a Prefeitura retomou restrições para shoppings e comércio. No dia 3 de julho, o prefeito anunciou o fechamento da Orla do Guaíba e, nos dias seguintes, outras medidas para restringir a circulação de pessoas pela cidade.

Café Chocólatras, da Cidade Baixa, passou a funcionar apenas com ‘delivery’ e ‘take away’. Foto: Luiza Castro/Sul21

No dia 17 de julho, Marchezan fez um apelo dramático à população para que retomasse o isolamento social, dizendo que faltava muito pouco para a decretação de um lockdown na cidade. “Já fizemos praticamente tudo o que era possível. Falta muito pouco para faltar apenas o lockdown. Ou diminuímos a circulação drasticamente, não a partir de amanhã, mas a partir de hoje, a partir de agora, ou nos encaminhamos para o lockdown na próxima semana”, disse o prefeito. Apesar de o apelo não ter sido atendido, o lockdown não foi decretado.

Em meio ao processo sanfona de abre e fecha, que opunha (e segue opondo até o final do ano) interesses econômicas e as recomendações de autoridades sanitárias, os setores da população desassistidos por políticas de Assistência Social e de Saúde no município e pelo discurso negacionista repetido incessantemente pelo presidente Jair Bolsonaro, começaram a sair às ruas para protestar. No dia 4 de junho, um ato público realizado em frente à Prefeitura denunciou o abandono das comunidades quilombolas, assentamentos urbanos e população em situação de rua de Porto Alegre em meio à pandemia do novo coronavírus.

Ato, dia 4 de junho, em frente à Porto Alegre, denunciou desmonte de políticas de assistência social para os setores mais fragilizados da população. Foto: Luiza Castro/Sul21

Uma pesquisa elaborada por estudantes da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), e divulgada no informe de setembro da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul (FQ/RS), mostrou que 77% dos moradores de quilombos de Porto Alegre tiveram que sair de casa para trabalhar em meio à pandemia. Além disso, 50% disseram não ter condições de praticar o isolamento em casa em caso de contaminação e cerca de 70% disseram não ter mais de um banheiro em casa para dedicar exclusivamente à pessoa infectada. Sobre a situação econômica durante a pandemia, quase 80% disseram estar inscritos no Cadastro Único do governo federal, cerca 75% disseram estar recebendo auxílio emergencial e mais de 40% disseram ter perdido o emprego durante a pandemia.

No dia 1º de julho, entregadores de alimentos que trabalham por aplicativos, em Porto Alegre, se uniram à paralisação convocada em todo o Brasil, o chamado #BrequedosApps. Os trabalhadores reivindicavam aumento do valor pago pelos aplicativos por quilômetro rodado, aumento da tarifa mínima, fim dos sistema de pontuação e restrição de local, fim de bloqueios indevidos, oferta de seguro contra roubos, acidente e vida para os trabalhos e auxílio com equipamentos de proteção e licenças durante a pandemia.

‘Breque dos Entregadores’ reuniu trabalhadores de aplicativos por melhores condições de trabalho. Foto: Luiza Castro/Sul21

Na metade de agosto e no início de setembro, Marchezan promoveu uma nova rodada de flexibilização de restrições ao comércio, restaurantes e shopping centers, autorizando a abertura aos sábados, entre outras medidas. Até então, esses estabelecimentos só podiam funcionar durante a semana. A medida, publicada em uma edição extra do Diário Oficial, ocorreu no dia em que a cidade registrou recorde na ocupação de leitos de UTI por pacientes que testaram positivo para covid-19, com 344 internados simultaneamente, além de outros 29 considerados como suspeitos.

Os meses de agosto e setembro foram marcados por uma série de flexibilizações e retomada de atividades econômicas em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21.

De fato, ao longo de setembro, o efeito sanfona produziu um novo processo de abertura generalizada de atividades na capital. No dia 25 de setembro, um novo decreto publicado no Diário Oficial de Porto Alegre ampliou o horário de funcionamento de restaurantes, bares, padarias, lojas de conveniência, lancherias e similares, permitindo a abertura para atendimento ao público de segunda a sábado, das 6h às 23h, com restrição ao número de clientes simultâneos e observação de protocolos sanitários para o enfrentamento do coronavírus. A medida valia, inclusive, para estabelecimentos localizados dentro de shopping centers. Além do setor de alimentação, o decreto também trouxe mudanças para outras áreas, ampliando a capacidade permitida no transportes coletivos para 15 passageiros em pé nos ônibus comuns e 20 nos ônibus articulados. A medida coincidiu com o início da campanha eleitoral e com o aumento das pressões de setores empresariais sobre a Prefeitura em favor do fim de restrições.

Essa pressão também se manifestou no terreno da educação, levando tanto a Prefeitura de Porto Alegre quanto o governo do Estado a anunciar a retomada das aulas presenciais, mesmo com os alertas de professores, entidades da sociedade civil e associações de pais e mães alertando para os riscos e o caráter prematuro dessa decisão. No dia 14 de setembro, a Prefeitura anunciou o calendário de retorno às aulas em Porto Alegre, garantindo que “o vírus não foi embora, mas há segurança para voltar”. Na verdade, não havia tal segurança. Era mais um desejo do que uma realidade.

Protesto de diretores e diretoras de escolas contra o retorno às aulas presenciais. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Em outubro, o governador Eduardo Leite determinou que as escolas estaduais deveriam se preparar para o retorno das aulas presenciais. Professores e funcionários de escolas, porém, contestaram tal decisão, apontando a inexistência dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) prometidos pelo governo e uma série de problemas estruturais para garantir uma retomada segura. O CPERS exigiu que Eduardo Leite assinasse um termo de responsabilidade, assumindo a responsabilidade pelo que vier a acontecer com o retorno das aulas presenciais. No dia 2 de outubro, diretores e diretoras de escolas estaduais realizaram um ato público de protesto contra a retomada das aulas presenciais.

Eleições 2020: ruas da Cidade Baixa em dia de votação. Foto: Luiza Castro/Sul21

Os meses de outubro e novembro foram marcados tanto pela retomada praticamente generalizada de atividades e circulação da população na capital quanto pela campanha eleitoral para a escolha de quem assumirá a Prefeitura do município em 2021. A própria política da Prefeitura em relação à pandemia foi um dos principais temas da campanha. O prefeito eleito Sebastião Melo (MDB), passou toda a campanha eleitoral prometendo que “reabriria” a cidade, caso fosse eleito. A aliança de Melo com os críticos do “fechamento” dos negócios da cidade em função da pandemia do novo coronavírus ignorou a possibilidade de um recrudescimento da situação, seja por meio de uma segunda onda de contágio ou de um repique da primeira, que já está acontecendo.

A cidade foi sendo progressivamente “reaberta” ao longo do segundo semestre, especialmente no período da campanha eleitoral. Em novembro, diante do aumento dos casos de contágio e das taxas de ocupação de leitos de UTI na cidade, o prefeito Nelson Marchezan editou novo decreto, freando, ainda que timidamente, a abertura que estava em curso. O que o novo prefeito fará a partir do dia 1o de janeiro, quando assumir? Marchezan já deu a dica. “Prefiro um prefeito que mude de ideia, que descumpra sua promessa, do que um prefeito eleito irresponsável”, afirmou em entrevista à uma rádio da capital.

Apelo de festas de Natal e Ano Novo preocupam autoridades sanitárias. Foto: Luiza Castro/Sul21.

Solidariedade em ação e como chegamos ao final do ano

Os nove meses de pandemia em Porto Alegre também foram marcados por gestos de solidariedade. Centrais sindicais, sindicatos, movimentos sociais e entidades da sociedade civil se mobilizaram e doaram centenas de toneladas de alimentos para comunidades da periferia de Porto Alegre, da Região Metropolitana e de diversas cidades do Estado. As cooperativas e assentamentos de Reforma Agrária do MST desempenharam um papel fundamental neste processo, doando sua própria produção para essas doações. O MST estima que, ao longo da pandemia, já doou, até a metade de dezembro, mais de 282 toneladas de alimentos no Rio Grande do Sul.

O MST doou mais de 280 toneladas de alimentos produzidos em seus assentamentos e cooperativas. Foto: Maiara Rauber

Todo o processo de flexibilizações do distanciamento social e da retomada descontrolada de aglomerações contribuiu para que o cenário do final de ano fosse similar, ou mesmo pior, dos mais graves momentos da pandemia em Porto Alegre, vividos na metade do ano. No dia 11 de dezembro, pela primeira vez desde que o modelo de Distanciamento Controlado foi adotado pelo governo do Estado, duas regiões, Bagé e Pelotas, foram classificadas sob bandeira preta, apontando altíssimo risco de contágio. As demais regiões ficaram sob bandeira vermelha, “só” com um alto risco de contágio.

No dia 16 de dezembro, a Prefeitura de Porto Alegre anunciou o cancelamento da Festa da Virada na Orla do Guaíba que, nos últimos anos, reuniu algumas dezenas de milhares de pessoas na capital. Prefeitos do Litoral Norte, de cidades da Serra, de Rio Grande e de Pelotas também anunciarem os cancelamento das festividades de fim de ano. As festas de Natal e Ano Novo em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul, caso a população respeite os alertas e determinações sanitárias, deverão ficar restritas ao círculo de cada lar. O temor das autoridades, médicos e pesquisadores é que a carga de um ano pesado, triste e depressivo acabe fazendo com que muita gente não resista ao apelo de se reunir com amigos e familiares. Caso isso aconteça, a retrospectiva de 2021 já deverá começar com um janeiro dramático.


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