Coronavírus
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12 de agosto de 2020
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21:05

Volta às aulas presenciais proposta por Leite é alvo de críticas: ‘Vai expor as crianças como cobaias’

Por
Sul 21
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Volta às aulas presenciais proposta por Leite é alvo de críticas: ‘Vai expor as crianças como cobaias’
Volta às aulas presenciais proposta por Leite é alvo de críticas: ‘Vai expor as crianças como cobaias’
Proposta de volta às aulas com a epidemia fora de controle no RS não é bem aceita. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luciano Velleda

A divulgação da proposta de retomada das aulas presenciais no Estado pegou de surpresa tanto a comunidade escolar quanto a área médica. No momento em que o Rio Grande do Sul enfrenta o momento mais grave da pandemia do novo coronavírus, com altos níveis de contágio e mortes, o anúncio do governo de Eduardo Leite (PSDB) de que as aulas poderão retornar a partir do dia 31 de agosto, começando pela educação infantil, causou espanto e incredulidade.

Os motivos da incompreensão por parte de professores e especialistas em saúde vão desde o tema ser colocado justo no momento em que a crise não está controlada e tampouco dá sinais de ser, até não se entender porque recomeçar pelas crianças menores, que têm menos condições de manter o distanciamento e poderão, assim, ser agentes de propagação do vírus, tanto na escola como dentro de casa.

“Causa muita surpresa, vem na contramão de tudo o que foi feito pelo governo do Estado. É uma proposta fora do contexto das próprias ações do governo. Nos deixa muito confusos, dá a impressão de que a mensagem inicial não era verdadeira ou que agora quem está determinando as ações são outros interesses e não a preservação da vida”, afirma o infectologista Alexandre Zavascki, consultor do Comitê Covid-19 da Sociedade Rio-Grandense de Infectologia.

Pela proposta apresentada pelo governo estadual, o ensino infantil será o primeiro a retornar, no dia 31 de agosto, seguido pelo ensino superior, em 14 de setembro, o médio e técnico, em 21 de setembro, os anos finais do ensino fundamental, em 28 de setembro, e os anos iniciais do ensino fundamental, em 8 de outubro. Segundo o governo, a volta às aulas presenciais ocorrerá apenas nas regiões que estiverem em bandeira amarela ou laranja e serão num modelo híbrido, ou seja, combinado com as aulas on-line.

Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Zavascki diz que a proposta não é segura e pondera que outros países retomaram as aulas em situação muito diferente da atualmente enfrentada no Estado. “Vamos expor as crianças à uma doença, elas certamente vão ser infectadas. Não entendo porque expor os mais jovens”, comenta o infectologista, sem disfarçar a incredulidade com a sugestão.

Embora nas crianças a covid-19 não costume ser grave — mesmo assim há casos —, ele pondera que a volta às aulas presencias causa uma grande movimentação de pessoas, ao envolver pais, alunos, professores e funcionários de escola. “Estamos numa situação em que o Estado não conseguiu controlar a epidemia, ao contrário, vai expor as crianças como cobaias. Não é possível acreditar que isso vai adiante”, analisa Zavascki.

O infectologista destaca o significado da “mensagem” passada pelo governo. Primeiro houve o retorno do futebol, nos últimos dias, a liberação do comércio e, agora, vem a proposta de volta às aulas. “Não é uma proposta que transmite a mensagem que deve, de que a epidemia não está controlada. É uma mensagem que leva à baixa adesão do distanciamento, perdeu o sentido pedir para as pessoas ficarem em casa”, diz ele, lembrando que já há numa parcela da sociedade a ideia de que a epidemia não existe.

Membro do comitê científico que tem assessorado o governo do Estado ao longo da crise sanitária, Zavascki lamenta que o grupo não tenha sido consultado. “Infelizmente, não houve consulta. Não é algo que vai ficar sem consequências. Querem exigir das crianças os cuidados que nós, adultos, não conseguimos ter. Não existe isso…”

Irresponsabilidade

A primeira lembrança da presidenta do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (Cpers), Helenir Schurer, é a pesquisa feita pelo governo Leite, durante o mês de julho, com secretarias municipais, conselhos, sindicatos e entidades sociais para reunir sugestões sobre a retomada das aulas. O resultado da consulta pública apontou que 89,5% dos participantes escolheu o cenário B proposto pelo governo, que justamente coloca a educação infantil como a última a retomar as aulas presenciais.

“É uma irresponsabilidade ter feito a pesquisa e descartar o resultado, é irresponsabilidade colocar os mais vulneráveis na frente e trazer o tema agora no momento mais grave da crise”, afirma Helenir. Para ela, após a liberação das atividades econômicas, a proposta indica que o governo está cedendo à pressão empresarial, pois os pais, tendo que voltar a trabalhar, precisam da escola para deixar os filhos. “Não se brinca com a vida das pessoas.”

Pesquisa recente feita pelo Comitê Popular Estadual de Acompanhamento da Crise Educacional no Rio Grande do Sul e a Associação Mães & Pais Pela Democracia indicou que 89% dos pais ou responsáveis dos estudantes preferem aguardar o resultado dos estudos com vacinas antes de retornar às aulas presenciais.

Com a contaminação em alta, Helenir diz que os filhos dos trabalhadores mais pobres serão os mais prejudicados e sujeitos a pegarem o vírus. “Tenho certeza de que os pais que puderem, não vão mandar os filhos pra escola agora.” A presidenta do Cpers afirma que a entidade pretende organizar uma frente de resistência com pais, alunos e professores para que a ideia do governo do Estado não prospere.

Diretora do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS), Cecilia Farias afirma que a entidade também foi pega de surpresa com a proposta do governo. A preocupação é grande. “Consideramos que voltar numa situação de extremo contágio não deveria nem passar pela cabeça do governante. Enquanto não tiver segurança, não pode acontecer.”

Além da data próxima, o reinício começar com as crianças de 0 a 5 anos é outro elemento de surpresa para a diretora do Sinpro. Isso porque crianças dessa idade tendem a ser assintomáticas e podem ser transmissoras do vírus na família. Cecilia ainda acredita que o governo Leite pode estar influenciado por outros estados onde o pico da doença já passou, mas essa não é a situação do RS. “Se responsabilizar por isso é muito perigoso. Como pedir para a criança não tocar, não dar beijo, não abraçar?”, questiona.

Cecilia reconhece a necessidade de pais que estão voltando a trabalhar, mas pondera não ser correto resolver um problema aumentando outro. “É hora de se voltar a trabalhar? Espero que haja uma reconsideração, não acredito que em 20 dias a situação vá melhorar.” A diretora do Sinpro também é ciente da pressão das mantenedoras das escolas privadas, embora diga que muitas famílias não mandarão os filhos nesse momento da pandemia no RS. “Não é hora, não temos uma situação que permita voltar às aulas. Não temos argumento que possa justificar esse planejamento. Só podemos pensar nas pressões”, analisa.

Mensagem errada

Reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), a médica Lucia Campos Pellanda faz coro às críticas de volta às aulas presenciais nas próximas semanas. Especialista em pediatria, ela destaca o impacto na circulação geral que o retorno das atividades escolares causará, o alto risco para professores e funcionários, assim como diz entender a necessidade dos pais. “Esse não é o momento de voltar nada. Estamos com casos muito altos ainda e uma pequena mudança pode causar esgotamento do sistema de saúde”, explica.

Assim com o infectologista Alexandre Zavascki, Lucia também cita que nenhum país reabriu as escolas com a contaminação em alta. E entre aqueles que abriram, há bons exemplos e outros não, como foi o caso de Israel e, recentemente, os Estados Unidos. A reitora acredita que os adultos (professores e funcionários) correm mais riscos e, embora crianças sejam, em geral, menos afetadas pelo vírus, algumas adoecem e, em grande escala, a situação pode ser séria. “Vamos ter alguns casos de doença grave por causa dessa volta.”

Lucia ainda se preocupa com a “mensagem” que a eventual reabertura das escolas passa à sociedade. “Dá a impressão de normalidade, que não é o que está acontecendo agora. Só esqueceram de combinar com o vírus.” A reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre reconhece a complexidade da situação. Ela alerta que há crianças sendo deixadas pelos pais em situação não ideal de cuidados, ao mesmo tempo em que a sociedade gaúcha, depois de cinco meses de restrições, dá sinais de cansaço. A falta de políticas sociais que apoie os trabalhadores também é lembrada. Ainda assim, o momento não é favorável para reabrir as escolas. “Daqui a 15 dias vamos ter o resultado das aglomerações no Dia dos Pais. É muito difícil prever, mas qualquer aglomeração pode fazer com que a situação estoure.”


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