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29 de agosto de 2020
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12:15

‘Não damos conta de tudo’: a exaustão de mães que trabalham em serviços essenciais na pandemia

Por
Sul 21
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Annie Castro

No final de março, quando o novo coronavírus começou a avançar no Rio Grande do Sul, mulheres que são mães e trabalham em serviços considerados essenciais no Estado e em municípios, como saúde e segurança pública, por exemplo, viram suas rotinas serem drasticamente afetadas. A suspensão das aulas e do atendimento em creches que seus filhos costumavam frequentar, junto com a continuidade de seus trabalhos de forma presencial ou remota, fez com que suas demandas diárias aumentassem ainda mais.

Em muitos casos, principalmente ao se tratar de mães solo, a nova rotina fez com que essas mulheres dependessem da ajuda de familiares ou até mesmo de conhecidos. Antes da pandemia, enquanto a fiscal estadual agropecuária Beatriz Ferreira Scalzilli trabalhava, no período das 8h30 ao meio-dia e das 13h às 18h30, seu filho, de cinco anos, ficava na escola. Ela relata que, desde março, quando as aulas foram suspensas, a maior dificuldade que ela enfrenta é ter que estar diariamente em busca de pessoas que possam cuidar dele durante seu horário de trabalho.

Por ser mãe solo, Beatriz precisou começar a pedir ajuda de terceiros, como uma vizinha que também tem um filho e está em teletrabalho, sua afilhada e sua irmã. “Só que às vezes eu não tenho ninguém pra cuidar dele nesse horário. É uma situação desesperadora e eu não consigo proporcionar para meu filho uma rotina estável. Também acaba não dando nem tempo de pensar muito no coronavírus em si, porque a gente tem que acabar se virando para contornar essa situação”, afirma.

O mesmo é enfrentado pela policial civil Bianca Rodrigues Feijó, que também passou por mudanças drásticas na rotina com a chegada do coronavírus e, desde então, precisa da ajuda de familiares para poder ir trabalhar. Desde o início da pandemia, a delegacia da mulher em que a servidora trabalha, em Bagé, no interior do Rio Grande do Sul, está funcionando com revezamento da equipe, que segue uma escala de horários.

“Mesmo com escala eu sigo trabalhando, então, quando eu preciso estar na delegacia, tenho que deixar o meu filho com meu pai, que é idoso e grupo de risco, ou com minha irmã. Só que às vezes a família tem alguma coisa pra fazer e não pode, então todos os dias tenho que estar ligando e procurando alguém para ficar com ele. A gente tinha uma rotina que acabou mudando totalmente em relação ao filho e não mudou muito em relação ao trabalho”, relata a policial civil.

A enfermeira Cristiane e o filho. Foto: Arquivo pessoal

O coronavírus também impactou diretamente a rotina da servidora Cristiane Regini Silva da Silva Mor, que trabalha no Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre, e é mãe de um menino de 10 anos. Ela, assim como o marido que também trabalha no mesmo Hospital, presta serviço no turno da noite e costumava descansar pela manhã, quando o filho estava na escola. “A pandemia mudou nossa rotina em vários aspectos. Trabalhávamos de noite, no plantão, e de manhã o Pedro, meu filho, ia para a escola e a gente conseguia dormir. De tarde, a gente fazia com ele alguma atividade ao ar livre, auxiliávamos ele em algum dever de casa. Com a pandemia, a gente chega no plantão de manhã e não conseguimos descansar, porque ele tem aula online e temos que dar toda uma atenção para ele, estar junto com ele, acompanhando, revisando as atividades, gravando os vídeos que ele precisa fazer”, relata. “Embora a gente auxiliasse ele nas tarefas antes, eram tarefas curtas, que a gente tinha um envolvimento de uma hora, e agora é um envolvimento de um turno inteiro”, complementa. A enfermeira relata que, além da divisão entre trabalho e auxílio com as atividades escolares, ela, juntamente com o marido, também precisa encontrar tempo para proporcionar alguma atividade de lazer ao filho.

Elisa Santanna Oliveira, diretora da Escola de Ensino Fundamental Estado do Rio Grande do Sul, localizada em Porto Alegre, é mãe de gêmeos de dois anos de idade e uma adolescente de 17. Com a chegada do coronavírus, ela tem trabalhado duas vezes por semana de modo presencial e nos outros dias a distância. Porém, a pandemia fez com que seu marido precisasse se mudar para outra cidade para trabalhar. Desde então, nos horários em que Elisa está na escola, ela precisa que a filha mais velha cuide dos irmãos e tem trabalhado também durante a madrugada, quando eles estão dormindo. “Para mim, é menos pior porque consigo flexibilizar meus horários e trabalhar enquanto eles dormem, só que, durante o dia, afeta a minha filha que também precisa estudar”, relata.

Andreza Costenaro, agente socioeducativa da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (Fase-RS) e mãe de uma menina de 1 ano e 8 meses, relata que, por sorte, ela vive no mesmo prédio que a babá que costumava cuidar de sua filha antes da pandemia. Por isso, ela e seu marido, que também trabalha na Fase, conseguem ter com com quem deixar a filha durante seus turnos de trabalho. Porém, a servidora estadual afirma que a rotina diária se tornou ainda mais cansativa, uma vez que a filha estava acostumada a conviver com outra pessoas e crianças, assim como frequentar a escola. Para ela, a maior dificuldade tem sido manter a menina longe do convívio com os familiares que moram em uma cidade próxima. “A gente não se vê mais, desde março ela viu a vó uma vez só, sendo que eu ia todos os meses para lá. Minha filha não vê mais outras crianças, os priminhos da idade dela”, relata.

A mudança de rotina é sentida também nas situações em que o serviço está funcionando de modo remoto, como no caso da educação, por exemplo. Karina Sassi, que é professora na Escola Medianeira e também vice-diretora na Escola Rio Grande do Sul, afirma que viu seu horário de trabalho aumentar mais de dez horas. Se antes da pandemia ela trabalhava das 7h às 19h, agora ela trabalha das 7h até a meia-noite, já que precisa estar disponível para auxiliar os alunos com as atividades escolares.

A professora Karina e a filha Nina. Foto: Arquivo pessoal

Mãe de uma menina de oito anos, Karina tem dividido sua rotina entre trabalhar e, juntamente com o marido, auxiliar a filha e cuidar da casa. “Tem sido bem complicado e um aprendizado. É um trabalho infinito que não acaba nunca e, enquanto isso, a gente dá aula, a gente cuida da casa, e fica essa incerteza de tudo que está acontecendo. As pausas são bem breves e parece que dentro de casa tudo se torna mais exaustivo”, relata.

Muitas mulheres trabalhadoras, além da mudança na rotina, enfrentam ainda os problemas financeiros trazidos pela pandemia. É o caso da técnica de enfermagem Aline*, que trabalha no Hospital da Criança Conceição (HCC), em Porto Alegre, que tem um filho de um ano e sete meses e não conta com o suporte de familiares na cidade. Diante do fechamento momentâneo da escola em que o menino ficava, ela precisou trazer a mãe, que vive no interior, para morar com eles durante esse período e cuidar do bebê nos horários em que Aline trabalha.

“Eu tenho uma irmã de 17 anos que mora junto com a minha mãe, então, ela teve que vir junto. Minha vida mudou totalmente e meu custo mudou muito”, relata a técnica de enfermagem. Devido a essas mudanças, ela conta que está com o cartão de crédito estourado e que também precisou fazer um empréstimo para conseguir arcar com os custos de uma família mais numerosa.“Quando chego em casa preciso higienizar todas roupas que uso para ir até o hospital, higienizo o banheiro com álcool, lavo as narinas com soro fisiológico e tudo isso é um custo maior que tá saindo diretamente do meu bolso”, complementa.

A pandemia também afetou a renda da família de Elisa, o que fez com que ela não conseguisse continuar pagando a escolinha que seus dois filhos gêmeos frequentavam. “Eu não consegui vaga na pública, então, mesmo que as aulas voltem agora, os meus não iriam. Um dos motivos é que eu não teria condições de pagar a escolinha novamente e o outro é que tenho medo do coronavírus”, diz a trabalhadora da educação.

‘A gente vive com medo diariamente’

As pressões psicológicas também se repetem nos relatos de mulheres que são mães e trabalham em serviços considerados essenciais durante a pandemia. O medo de se contaminar com o vírus e passar para seus filhos e os familiares que cuidam das crianças – e que em muitos casos integram o grupo de risco – é o principal deles. “O meu psicológico está muito abalado, porque eu tenho medo de trazer esse vírus para casa, passar pro meu filho ou para a minha mãe, que é grupo de risco”, desabafa Aline*, que trabalha em uma ala de infectologia, diretamente com pessoas com suspeita ou com confirmação de covid-19. Na esteira dos acontecimentos, precisou começar a tomar medicação para ansiedade. “Eu não estava mais conseguindo dormir à noite”, explica.

O mesmo sentimento descrito pela técnica de enfermagem é relatado por outras mulheres. Para a enfermeira Cristiane, “o medo é a palavra-chave que define o coronavírus” na vida dela. Embora não atue diretamente em uma ala específica de covid-19, Cristiane diz que frequentemente pacientes internados por outros problemas acabam testando positivo para a doença durante a internação. “Tudo que a gente faz é com medo, porque a gente tá exposto. A gente vai trabalhar sempre pensando ‘é hoje que eu me contamino’”.

Cristiane também diz temer colocar a saúde do filho em risco, mesmo seguindo todo protocolo de higienização ao voltar para casa: “Por medo de causar mal para alguém que eu amo, tenho me mantido longe dos meus pais, mas não estou preservando o Pedro. A gente faz todas as higienizações, mas ele é uma criança, e a gente tem que aconchegá-lo. Como que não vamos dar um beijo ou um abraço nele? Então, tem essa preocupação de acabar fazendo mal para ele”.

A fiscal agropecuária Beatriz ressalta que o medo e a mudança de rotina impactam diretamente na saúde mental das mulheres, o que se reflete em seus filhos. “É muito angustiante, porque a gente não tem ideia do que vai acontecer. Estamos preocupadas com a doença, com não ficar doente, com não passar pras pessoas, em não contaminar meu filho e, além disso, tem a preocupação do dia a dia. De alguma maneira, a criança sente toda essa preocupação, acaba refletindo nele”.

Segundo Elisa, a nova rotina causada pelo coronavírus modificou as demandas que ela tinha pré-pandemia com o trabalho e com os cuidados com os filhos, já que, em muitos casos, os horários de trabalho não estão mais tão delimitados quanto costumavam ser. “Tu não dá conta de tudo, nem do trabalho e nem de ficar com os filhos. Estamos em casa com eles, mas o celular não para e tu segue precisando trabalhar em horários bem inapropriados. Tu tá com os filhos, mas tá ali trabalhando. Gera muita ansiedade, nunca estamos completas no local”, desabafa.

A professora Karina exemplifica como a rotina de trabalho remoto afeta a relação com as crianças e a saúde mental de todos. “É tanta demanda que um dia a Nina, minha filha, disse ‘mãe, o que é mais importante para ti, o trabalho ou a família?’. Ela vê eu e o pai trabalhando tanto, que fica se perguntando o que está acontecendo, vocês estão em casa, mas não param’”.

 

 


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