Últimas Notícias>Coronavírus|z_Areazero
|
8 de agosto de 2020
|
12:08

A face menos amarga da crise: coronavírus impulsiona entrega à domicílio de alimentos orgânicos

Por
Sul 21
[email protected]
Localizada na Zona Sul de Porto Alegre, a Hortalícias quadruplicou as vendas durante a pandemia do coronavírus. Foto: Arquivo Pessoal

Luciano Velleda

Aos 70 anos de idade, a produtora Luiza Sirlei de Barcelos tem quase metade da vida dedicada a vender na feira os produtos orgânicos cultivados no Sítio da Branquinha, em Viamão. São 28 anos expondo na Feira dos Agricultores Ecologistas, na Avenida José Bonifácio, em Porto Alegre. A rotina é pesada. Quem passa pela banca e vê os produtos bonitos, limpos e embalados, normalmente desconhece a dimensão do trabalho por trás de cada alimento. A feira começa mesmo dois dias antes, com a seleção e preparo dos alimentos que estarão à disposição dos clientes no sábado.

O dia da feira tem início ainda na escuridão, às 3h da madrugada, tempo necessário para sair de Viamão e preparar tudo até as 7h, quando a feira abre. E então, é ficar de pé e bem atender até 13h. “A teoria é uma coisa, a prática é outra. É duro. Ver o saco de aipim bonito, orgânico, é uma coisa, agora até ele chegar na feira…”, comenta Luiza.

Eis que em março de 2020 a pandemia do novo coronavírus se abateu sobre Porto Alegre e a rotina de quase 30 anos teve que ser alterada bruscamente. Integrante do grupo de risco devido à idade, ela se afastou da feira. Coube ao filho e ao neto assumirem a tarefa e manter os produtos do sítio chegando ao consumidor.

Se a crise do coronavírus tem imposto o confinamento de Luiza e seu marido, por outro lado abriu uma nova possibilidade de negócio. Tão logo tiveram início os dias de isolamento social, a família começou a receber pedidos de clientes conhecidos para entregar em casa os produtos cultivados. E assim foi feito. O Sítio da Branquinha passou a disponibilizar uma lista com os alimentos da semana, com entrega programada às sextas-feiras.

“Isso para nós está sendo muito bom, está sendo um complemento na renda”, afirma Luiza. Não há investimento em propaganda ou algo parecido, nada disso, a divulgação é o velho boca-a-boca. “Um vai dizendo pro outro, vai ao natural”, diz ela. Com 16 hectares — boa parte área de preservação —, os produtos do sítio são a fonte exclusiva do sustento de três famílias.   

Apesar da boa experiência com as entregas à domicílio, a produtora não sabe dizer se o novo canal de vendas continuará em vigor quando a crise do coronavírus passar e a vida voltar ao “normal”. A família ainda não decidiu. A ideia, por enquanto, é esperar e ver o que o futuro reserva. “Nada a gente imagina, tem que esperar passar. É uma incógnita, a gente não sabe o que vai acontecer. Temos que ver.”

Uma boa ideia e a parceira com produtores da Feira do Bom Fim tem consolidado o trabalho da Ecolog. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Oportunidade na crise

Continuar ou não a entrega domiciliar de produtos orgânicos depois da pandemia pode ser dúvida para os produtores do Sítio da Branquinha, mas não para os criadores da Ecolog. A iniciativa nasceu também logo no começo da crise, quando o ecólogo Felipe Amaral e produtores ligados à Feira Ecológica do Bom Fim perceberam que o problema sanitário afetaria o fluxo de pessoas e o comércio da feira. As vendas on-line e a entrega à domicílio surgiam então como um possível caminho.

Amaral se agilizou e fez contato com a Associação dos Produtores da Rede Agroecológica Metropolitana (OPAC-RAMA). A ideia era simples: recolher os pedidos dos clientes durante a semana e, no sábado, ir na feira montar as cestas com os produtores e depois fazer as entregas. A proposta teve boa aceitação junto aos feirantes, que viram na proposta uma nova possibilidade para enfrentar os dias difíceis que se avizinhavam. Naquelas semanas de março, a execução do negócio foi igualmente tão simples quanto a própria iniciativa: os interessados recebiam um link para uma planilha, onde anotavam os pedidos. Com a parceira de mais de 20 feirantes e cerca de 200 produtos, a ideia logo deu certo.

Rapidamente também a planilha se tornou um meio caótico e foi substituída. Hoje o negócio funciona por meio de um site próprio e oferece em torno de 250 produtos. Os pedidos podem ser feitos entre as 14h de terça-feira e a noite de quinta. Na sexta-feira, os feirantes recebem as listas com os pedidos e, no sábado, os produtos são recolhidos na feira. “Hoje tem produtores que nos vendem R$ 500 por semana, é uma renda garantida”, afirma Amaral, sócio-fundador da Ecolog.

Para evitar que haja desabastecimento na feira, ele explica que os alimentos são distribuídos entre os feirantes parceiros, de modo a encontrar um equilíbrio. Ocasionalmente, se houver a falta de algum produto, é feita uma compra extra com outro feirante. “Quando lançamos o site, já de saída tivemos público cativo”, conta o ecólogo.

Amaral avalia que em torno de 50% dos clientes seja um público fixo, com compras semanais. Entre estes, há os frequentadores tradicionais da feira e que, agora com a pandemia, preferem receber os produtos em casa. E há também um público novo, que não tinha o hábito de se deslocar até a feira no Bom Fim. Hoje, cerca de 50% das entregas da Ecolog são na zona sul da Capital. “São pessoas que viram a possibilidade de receber um serviço confortável, em ter produtos orgânicos entregues na porta de casa.”

O sócio-fundador da Ecolog projeta um futuro próspero para o empreendimento, mesmo após o fim da pandemia — ainda que não se saiba quando isso será. Amaral acredita que o impulso no modelo de venda on-line, ocasionado pela crise do coronavírus, veio para ficar. “É um novo entendimento das relações comerciais. Temos a ideia de consolidar o negócio, com novos dias de entrega. Nosso planejamento é se manter depois da pandemia”, diz Amaral. “Tem o componente de um serviço feito com cuidado, não tem mais volta, é uma realidade que veio para ficar. Os consumidores perceberam a facilidade”, afirma.

A relação de confiança e o vínculo que se estabelece com o cliente é outro diferencial. A venda é on-line, mas a relação é humana, pondera Amaral. “Isso é muito importante. As pessoas têm nome. Se não tiver o componente humano, fica frio’, analisa o sócio-fundador da Ecolog. E completa: “Hoje estamos realizados com o negócio”.

Os sócios Leonardo Bohn (de touca) e Lucas Silveira foram surpreendidos com o expressivo aumento das vendas durante a crise de 2020. Foto: Arquivo Pessoal

 Negócios em rede

Satisfação é o sentimento que o biólogo Leonardo Bohn não tinha mais pela profissão em 2017. Ao iniciar a carreira, o desejo era “mudar o mundo”. Uma vez nela, a prática foi aos poucos se mostrando bem diferente. Os licenciamentos ambientais em que atuava, ao invés de preservar a natureza, tinham uma conotação oposta – aval para destruir. Desiludido, resolveu abandonar a carreira. Em parceria com o também biólogo Lucas Silveira, se associou à Associação dos Produtores da Rede Agroecológica Metropolitana (OPAC-RAMA) e juntos arrendaram uma área no Lami para iniciar a produção de alimentos orgânicos.

As vendas começaram em novembro de 2017. Pouco tempo depois, em 2019, a dupla se mudou para outra área, em Belém Velho, e nasceu a Hortalícias. As vendas retomaram em agosto daquele ano, com um número de clientes e um rendimento estável, sem grandes variações. Sabedores de que o verão é um período em que o negócio costuma cair, entraram no ano de 2020 matutando estratégias para expandir o trabalho. De repente, veio o coronavírus e tudo mudou. “De uma hora pra outra, começou um monte de pessoas a nos procurar”, conta Bohn. “A gente lançava a lista de produtos e, em duas horas, estava esgotado. Foi uma loucura. Tivemos que nos adaptar.”

As vendas quadruplicaram durante a pandemia. A clientela cresceu tanto que, atualmente, o trabalho é realizado em parceria com outras oito famílias produtoras. “Tivemos que nos adaptar em logística e em produção, e então aumentamos a rede de produtos. Fomos ‘sentindo’ como é o mercado”, explica Bohn.   

Se no começo tudo funcionava por meio de uma lista no WhatsApp, agora os clientes da Hortalícias recebem a mensagem com link para um formulário, onde o consumidor escolhe os produtos. Pedidos feitos na segunda-feira são entregues na quarta, e os realizados na quinta, entregues sexta-feira. Antes da pandemia, as vendas giravam em torno de 30 cestas por semana. Hoje, os pedidos ficam entre 100 e 120.

Bohn vê o futuro do negócio com otimismo. Acredita que no pós-pandemia as vendas devem cair, mas só um pouco, nada que vá alterar o ritmo conquistado. “Para muitas pessoas, foi uma novidade e agora gostaram. As pessoas que não conheciam e hoje gostam, sabem que é mais acessível e que o preço é melhor do que o produto orgânico no supermercado.”

E há ainda a relação afetiva com os clientes, um diferencial que, diz Bohn, deve ser mantido. “A gente preza esse contato, os clientes são nossos parceiros. Não é apenas e-commerce”, afirma. Ao contrário da desilusão dos tempos de alvará ambiental, o agora biólogo-produtor esbanja otimismo com o futuro dos produtos orgânicos. “É um mercado infinito.”


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora