Coronavírus
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7 de julho de 2020
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20:04

Covid-19: Falta de testes em pessoas sem sintomas dificulta controle da doença em Porto Alegre

Por
Sul 21
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O Hospital da Restinga e Extremo Sul é um dos locais que realizam o teste de RT-PCR em pacientes com sintomas. Parentes e profissionais da saúde sem sintomas, não são testados.  Foto: Divulgação SMSUrb/PMPA

Luciano Velleda

O aumento de mortes e de pessoas contaminadas pelo novo coronavírus em Porto Alegre, constatado desde meados de junho, trouxe à tona o debate sobre a estratégia de testagem em vigor na Capital. Desde que a doença se espalhou pelo mundo, a principal lição oferecida pelos países que conseguiram controlar o contágio foi o uso massivo de testes seguido pelo rastreamento dos contatos de quem testa positivo. Tal combinação possibilitou que o ciclo de contaminação fosse quebrado, diminuindo então a quantidade de novas vítimas.

No dia 27 de abril, o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) anunciou que a cidade começaria a fazer até 580 testes de RT-PCR por dia para identificar casos de covid-19. O aumento da capacidade seria fruto de parcerias com a Santa Casa (30 testes), o Hospital Moinhos de Vento (100), Grupo Exame (150) e Peritos Lab (300). O teste de RT-PCR detecta o vírus ativo no corpo e é o mais indicado para diagnosticar e isolar as pessoas contaminadas. 

Naquele dia, o prefeito citou a Coreia do Sul como exemplo a ser seguido para controlar a disseminação do novo coronavírus. “A gente dividiu a população da Coreia do Sul, 51,47 milhões, pelo número de testes feitos em 70 dias. A Coreia testou 7.323 pessoas (em duas semanas). Nossa meta é testar 5,6 mil, isso dá 400 pessoas por dia”, explicou Marchezan, na ocasião.

No início de maio, a Prefeitura anunciou que começaria a testar todas as pessoas que apresentassem sintomas, independente da necessidade de hospitalização ou não. A orientação segue em vigor até hoje. Todavia, diante do aumento da contaminação na cidade, há quem pense que tal medida não é mais suficiente e que o ideal é testar toda pessoa que tenha contato com um caso confirmado. A justificativa é que mesmo pessoas sem sintomas podem estar contaminadas e então, contaminar outros indivíduos. Outra hipótese é a pessoa ser pré-sintomática, ou seja, ainda não apresentou sintomas, mas igualmente já pode contaminar outros contatos.

“Testar só quem tem sintoma é o problema”, exclama Ana Paula de Lima, coordenadora adjunta do Conselho Municipal de Saúde (CMS). “Qual seria a justificativa? Não ter testes suficientes. Mas se tem 100 mil testes não usados…então a Prefeitura está segurando os testes por quê?”, questiona.

A dificuldade em ter acesso às informações e em compreender a estratégia de testagem na cidade tem desagradado os integrantes do Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre (CMS-POA). “As informações não fecham, não tem como analisar os dados”, lamenta Ana Paula.

Ela se refere às informações divulgadas pela Prefeitura na plataforma Painel Saúde, onde o governo municipal informa haver 118.350 testes disponíveis, sem especificar quantos são RT-PCR e quantos são os chamados testes rápidos, que detectam anticorpos. A plataforma diz terem sido realizados, até esta terça-feira (6), 8.602 testes, com 6.926 resultados descartados e 1.580 confirmados. Não é possível saber quantas confirmações foram por RT-PCR e quantas por teste rápido. O número de 1.580 testes positivos também difere dos 4.093 casos confirmados de covid-19 na capital gaúcha. O que chama a atenção é a disponibilidade de mais de 100 mil testes diante de apenas quase 9 mil realizados até agora.

Somente em três dias do mês de maio, a Prefeitura realizou mais de 100 testes na rede de saúde do município. A testagem aumentou durante o mês de junho, mas ainda assim, em apenas um dia superou a marca de 300 (dia 19 de junho, com 340 testes), e somente em dois dias alcançou o patamar de 500 testes 24 de junho, com 512 testes, e 26 de junho, com 542 testes. Os dados de julho ainda não foram divulgados no boletim epidemiológico diariamente emitido pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS).

Ana Paula considera que tanto a Prefeitura de Porto Alegre quanto o Governo do Estado agiram corretamente com relação às medidas de distanciamento social no início da pandemia. A exceção tem sido a política de testes. “Não basta fazer o distanciamento se a gente não fizer o complemento da testagem”, afirma.

Ainda no início de maio, o Conselho Municipal de Saúde (CMS) enviou uma recomendação à Prefeitura apontando uma série de propostas para enfrentar a disseminação do coronavírus em Porto Alegre. Entre as recomendações, a criação de um comitê específico sobre o tema, medidas de proteção dos trabalhadores da área da saúde, a organização de um fluxo de quarentena para pessoas positivas e seus contatos, a definição de uma fila única para ocupação de leitos do SUS e da rede privada e uma estratégia de testagem que incluísse todos os casos suspeitos.

Segundo a coordenadora adjunta do CMS, o órgão defende que os testes sejam ampliados na atenção básica, aplicados nos postos de saúde da Capital. Atualmente, o teste de RT-PCR é feito em nove endereços da rede municipal de saúde, além de laboratórios parceiros: nos Pronto Atendimentos (PA) da Cruzeiro do Sul, da Bom Jesus e da Lomba do Pinheiro, na UPA Moacyr Scliar, e nos hospitais Vila Nova, Cristo Redentor, Conceição, Restinga e Restinga Extremo Sul.

“É isso que deve ser feito”, sustenta Ana Paula, destacando que já é sabido que pessoas assintomáticas ou pré-sintomáticas transmitem o vírus para outros indivíduos. “Não tem uma estratégia pra enfrentar isso. A Atenção Básica não tem um projeto para fazer esse controle. Temos um ‘exército’ de profissionais que poderiam estar nesse controle, mas tem que testar”, explica.

Ela enfatiza que controlar a lotação dos leitos de UTI é “a ponta do processo”, enquanto o controle a partir da ampliação dos testes é o que pode interromper a cadeia de contaminação. “A situação é muito crítica. A gente sabe que a estratégia não está boa, não se faz atenção básica, não se consegue controlar. A atenção básica é quem pode fazer o contato, acompanhar, monitorar, isso é possível de ser feito, deve ser feito, mas não está sendo feito”, critica Ana Paula de Lima.

Gráfico mostra a quantidade de testes RT-PCR e testes rápidos feitos em Porto Alegre. Meta de 580 testes não está sendo alcançada. Fonte: PMPA/SMS

Profissionais da saúde sem teste

O médico Rodrigo Meirelles Borba atende no PA da Cruzeiro do Sul, um dos maiores da cidade. Especializado em medicina interna e emergencista, ele conta que o atendimento evoluiu bastante desde o começo da crise sanitária na cidade, em março. Antes só eram testados pacientes com todos os sintomas ou quadro grave, orientação que acabou por não diagnosticar pessoas em situação mais leve da doença. “Hoje em dia, qualquer sintoma mais leve, é feita a coleta”, explica o médico, se referindo ao teste de RT-PCR. “Está sendo mais fácil, ainda não é o ideal, mas melhorou bastante.”

No dia a dia do PA da Cruzeiro do Sul, os profissionais de saúde passaram a compreender melhor a doença e, assim, conseguir tomar decisões mais rápidas. Já na triagem, a equipe define o quadro clínico do paciente e possíveis complicações respiratórias. Os dados são inseridos no Gercon, um sistema que analisa as informações e define ou não a realização do teste, seja RT-PCR ou teste rápido. O médico Rodrigo Meirelles destaca que, dependendo dos sintomas, os profissionais já “olham com outros olhos” e fazem os encaminhamentos necessários, que pode ser desde procedimento para melhorar o quadro respiratório até o encaminhamento para internação.

No caso dos contatos e familiares de quem testou positivo, entretanto, se não houver sintoma, a orientação segue sendo a de não testar. “Se não tem sintomas, não está se coletando. A orientação é se isolar da família e, se tiver sintoma, aí sim voltar para fazer o teste”, explica o médico emergencista.

O cenário ideal, ele pondera, é mesmo testar os parentes, mesmo sem sintomas. A situação precisa ser igual com os profissionais da saúde quando algum colega é contaminado. Mesmo para quem está na linha de frente do enfrentamento ao coronavírus, se tiver contato com um positivo, mas não tiver sintoma, o teste não é feito. “Acaba passando para outras pessoas sem saber e assim continua espalhando”, explica o médico do PA da Cruzeiro do Sul. “Só se testa se está sintomático, infelizmente. Tomara que mude.”

Dificuldades de estrutura

Além de não testar os parentes e contatos sem sintomas de pessoas positivas, há dúvida se os laboratórios da rede privada conveniada informam corretamente a Prefeitura sobre os testes feitos. A reportagem do Sul21 teve acesso ao caso de uma mulher que, em junho, testou positivo no laboratório da Unimed, localizado na zona sul da cidade. Nos dias seguintes ao diagnóstico e durante todo o período em que ela se colocou em isolamento dos familiares, não recebeu nenhum contato por parte da Prefeitura. O monitoramento e rastreamento dos familiares é considerado fundamental para evitar a disseminação do vírus. 

De acordo com Bruno Kilpp, coordenador de Assistência Laboratorial da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), todos os laboratórios devem fazer a “notificação compulsória para a vigilância sanitária” de casos positivos de covid-19 e outras doenças. Entre a coleta do exame e o resultado, o tempo médio em Porto Alegre tem sido de quatro dias.

Kilpp explica ser “complicado” realizar o teste de RT-PCR em todos os postos da Capital e que a Prefeitura tem trabalhado para ampliar a estrutura de testagem. É nesse sentido, diz ele, que os nove locais da rede municipal de saúde hoje disponíveis tentam abranger todas as regiões da cidade, evitando que o paciente precise de longos deslocamentos.

“Não é uma coleta simples. Há uma questão ambiental, de estrutura física para a coleta, além da higienização”, afirma. Kilpp diz que os testes em Porto Alegre são realizados de acordo com a demanda, e por isso o número de 580 testes por dia não tem sido alcançado. O coordenador de Assistência Laboratorial da Secretaria de Saúde enfatiza que não há falta de testes, e admite a importância de ampliar a testagem. “Nesse caso, quanto mais, melhor.”     

MPE cobra transparência da Prefeitura

A ausência de resposta por parte da Prefeitura levou os integrantes do Conselho Municipal de Saúde a acionarem a Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos de Porto Alegre, do Ministério Público Estadual (MPE). No dia 12 de junho, o MPE entrou com uma ação civil pública contra a Prefeitura, cobrando a precisão e a confiabilidade nos dados do município sobre testes para pacientes covid-19.

“Para que o Modelo de Distanciamento Controlado seja eficaz, indispensável é que as informações utilizadas para a flexibilização ou endurecimento do sistema sejam precisas e confiáveis, sob pena de colocar em risco milhares de vidas”, justifica a Promotoria. A ação do MPE questiona o uso da Prefeitura de um sistema próprio de monitoramento dos casos de covid-19 (o Gercon), em detrimento dos sistemas usados pelo Governo do Estado e pelo Ministério da Saúde, o e-SUS. Segundo o MPE, o uso de um sistema próprio tem causado confusão na notificação dos testes positivos.

“Em que pese os comandos normativos apontados, a Recomendação Ministerial, as advertências emanadas e reiteradas pelo Estado do Rio Grande do Sul e a inquestionável obrigação do Município demandado de fornecer os dados indispensáveis ao combate à pandemia, tal dever não vem sendo cumprido, como determinado na já citada Lei 13.979/20, que implantou o compartilhamento obrigatório dos dados entre órgãos e entidades da administração pública”, enfatiza o Ministério Público Estadual.

Em outro trecho, a ação do MPE afirma: “não há a menor dúvida de que o Município de Porto Alegre, insistindo em aplicar sistema próprio, está a descumprir o dever de informar correta e plenamente os dados alusivos à pandemia pela via disponibilizada — e que reúne as informações de todos os Municípios do Estado do Rio Grande do Sul —, tal situação, além de flagrantemente ilegal, está a ocasionar grave e potencial risco ao enfrentamento da doença”.


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