Coronavírus
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24 de junho de 2020
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20:36

‘Se o contágio continuar desse jeito, não há sistema de saúde no mundo que suporte’, alerta diretor da Santa Casa

Por
Luís Gomes
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Santa Casa de Misericórdia passou a atuar nesta semana no atendimento de pacientes de covid-19 que necessitam de UTIs | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes
Luciano Velleda

Após Porto Alegre começar o mês de junho com semanas consecutivas de significativo aumento no número de pacientes internados em UTIs por covid-19, o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) emitiu na terça-feira (23) um novo decreto impondo mais restrições à circulação de pessoas na Capital. Foi o primeiro decreto aumentando restrições desde o mês de abril. Concomitantemente, o prefeito anunciou nesta semana que a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre passará também a atender pacientes de covid-19 pela rede pública de saúde, que até então estavam concentrados no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e no Grupo Hospitalar Conceição.

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A ocupação de leitos de UTI é considerada um dos fatores mais importantes de monitoramento da pandemia porque mede o impacto no sistema de saúde. Após um primeiro momento vertiginoso de casos entre o final de março e o início de abril, hospitais da rede pública e privada da Capital atingiram um pico inicial de 43 internações simultâneas em 10 de abril. Os números se mantiveram estáveis ou em queda durante o resto do mês e todo o período de maio. Contudo, voltaram a escalar rapidamente em junho. No dia 1º, 49 pacientes de covid estavam internados em UTIs na Capital. No dia 9, eram 62. No dia 19, 89. E, no último boletim, divulgado ontem, eram 111.

Em transmissão realizada pelas redes sociais no dia 13 de junho, o prefeito Marchezan informou que, naquele momento, Porto Alegre contava com 174 leitos de UTI preparados para atender pacientes de covid-19. Na ocasião, ele salientou que, com uma reestruturação do sistema, seria possível chegar a 255 leitos para covid, mas frisou que isso significaria a suspensão de cirurgias eletivas e afetaria o atendimento de outras doenças. Acima dos 255, já não seria possível garantir atendimento adequado a todos os pacientes.

O aumento sucedeu o último grande relaxamento de restrições por parte da Prefeitura, realizado no dia 20 de maio, quando shopping centers, bares, restaurantes e a maior parte dos setores de comércio e serviços foram liberados para retomar as atividades.

Diante deste aumento, na segunda-feira (22), a direção do HCPA gravou um vídeo para ser divulgado internamente na instituição convocando membros do seu corpo clínico para agregarem as equipes de combate ao covid-19. Diretor Médico do HCPA, Milton Berger destaca no vídeo, que acabou circulando nas redes sociais, que os níveis de contaminação levaram à adoção de uma nova fase do plano de contingenciamento do hospital. “Nós vamos fazer um chamamento ao corpo clínico do hospital, residentes, contratados, professores, para que possam contribuir nesse esforço necessário. Existem áreas do hospital que vão necessitar de suporte. Vou citar três: emergência, internação e CTI. E o hospital vai oferecer capacitações para aquelas pessoas poderem atuar nessas áreas e auxiliar nas atividades dessas áreas. A gente espera um grande aumento de casos de covid no hospital. Isso vai gerar uma demanda, nós não temos todos os profissionais da área médica que nós fomos autorizados a contratar, mas que, infelizmente, não estão disponíveis no mercado. E, portanto, o hospital tem que se preparar para dar suporte a essas atividades fundamentais para que a gente consiga enfrentar essa pandemia”, disse.

Além disso, Nadine Clausell, diretora-presidente da instituição, destacou ainda no vídeo que muitos profissionais do HCPA estão sendo contaminados pelo vírus, o que também levaria à necessidade do chamamento. Na tarde desta quarta, o hospital estava com 42 leitos de UTI ocupados por pacientes que testaram positivo para covid-19 e outros 8 por pacientes com suspeita de contaminação.

Em conversa com o Sul21 nesta quarta, Berger disse que o HCPA “está lidando muito bem com a demanda”, destacando que foram criados novos leitos de CTI e destinadas áreas de leitos de internação comuns, não críticos, para atender pacientes com covid. “Nós estamos solicitando o apoio ou o suporte de outras áreas do hospital, de outros médicos do hospital, para algumas áreas que estão super demandadas. Essas áreas estão funcionando bem, mas, caso haja algum aumento posterior ainda, é possível que se necessite um suporte. Então, preventivamente, já estamos solicitando que as pessoas se ofereçam para que a gente possa ter uma maneira de alocar os profissionais em caso de uma necessidade pontual nessas áreas demandadas. Mas o hospital está bem, não existe nenhuma dificuldade maior na assistência aos pacientes”, diz.

Ampliação para a Santa Casa

Oswaldo Luis Balparda, Diretor de Operações da Santa Casa, explica que, com o registro dos primeiros casos de coronavírus em Porto Alegre, em meados de março, a instituição foi demandada pela Prefeitura para se manter como referência ao tratamento de outras doenças, já que o Clínicas e o Conceição seriam os hospitais de referência para o tratamento da covid-19. “O papel da Santa Casa era ficar de sobreaviso, digamos assim, para entrar numa fase seguinte e, enquanto isso, cumprir o seu papel da contratualização e do atendimento às outras patologias”, afirma.

Balparda diz que a Santa Casa vinha cumprindo esse papel de abril até o início de junho, mantendo de 90% a 95% dos seus atendimentos e operações, mas que já nesse momento iniciou uma preparação para o provável aumento de internações que iria obrigar a instituição a também atender pacientes de covid-19. “Olhando exemplos do resto do mundo, a gente pode notar que isso era uma questão de tempo para escalar. E aí nós começamos a nos preparar em protocolos, em modelos de trabalho, em projetos para estruturação de leitos e transformação de leitos comuns em leitos intensivos. E submetemos esse projeto para a Secretaria Municipal de Saúde, dizendo: ‘olha, se em algum momento vocês precisarem, a gente pode deixar de fazer parte desse papel que a gente estava fazendo e passar a fazer o papel também na área covid-19′”.

O Prefeito Nelson Marchezan Junior durante assinatura de contrato para operação de 28 leitos de UTI e 11 leitos de internação na Santa Casa destinados ao atendimento de pacientes com covid-19 | Foto: Jefferson Bernardes/ PMPA

Com a compreensão por parte do município de que a necessidade de ampliação da capacidade hospitalar da cidade chegou, Prefeitura e instituição assinaram na terça um convênio para a disponibilização de 28 leitos de UTI do Pavilhão Pereira Filho de forma imediata para o tratamento da covid-19 — dos quais 10 estavam ocupados na tarde desta quarta-feira (24). A Santa Casa ainda tem a capacidade de designar outros 20 leitos em caso de nova necessidade. Além disso, 11 leitos comuns, voltados para pacientes menos graves, também foram convertidos para o tratamento de covid-19.

Balparda explica que esses 11 leitos configuram um número reduzido diante do fato de que todo paciente de covid-19 que passa pela UTI deve passar para uma área de tratamento menos intensivo antes de receber alta. Ele destaca que, por isso, a perspectiva é que outras instituições da rede de saúde municipal complementem a oferta destes leitos. Além da estrutura física, a Santa Casa também mobilizará uma equipe de 34 profissionais de Medicina e 152 profissionais de Enfermagem (entre técnicos e enfermeiros), além de profissionais de fisioterapia, higienização e atendentes de alimentação para a assistência dos pacientes. Dos 28 leitos já disponibilizados na Santa Casa, 14 são novos e 14 foram adaptados de outras áreas.

Necessidade de frear o contágio

Para o enfermeiro Estevão Finger, ex-presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Sergs), a curva de contágio e mortes da Capital é um indicativo de que a estratégia da Prefeitura de relaxamento de restrições foi equivocada. “O próprio gráfico demonstra que o prefeito errou. Abrir sem atingir o pico, é um erro”, afirma Finger, funcionário de um posto de saúde no Jardim Protásio Alves, zona lesta da Capital. “Só o distanciamento consegue evitar a contaminação. Qualquer gestor deveria garantir isso. O vírus está circulando a pleno vapor e isso nos causa muita preocupação”, diz.

Para conter o avanço do novo coronavírus, Finger defende a necessidade de focar na atenção básica, afinal, o posto de saúde é a unidade mais próxima da população e deve ser estratégico. Como exemplo do que pode ser feito, ele cita a aplicação de testes rápidos e a identificação de casos, com a busca ativa de seus contatos. O uso do oxímetro — aparelho que mede o nível de oxigênio no sangue — também pode propiciar o uso mais rápido de medicamentos, sem esperar que a pessoa sinta falta de ar e só então procure o hospital.

“A saúde básica pode diminuir o uso de leitos nos hospitais e nas UTIs”, defende Finger, reclamando que Marchezan não escuta os trabalhadores da saúde e toma decisões a partir das análises de um grupo restrito. “Se ouvisse os representantes dos trabalhadores, poderia ter uma decisão mais acertada.”

Berger, do HCPA, diz que o hospital está preparado para disponibilizar mais leitos para o tratamento de covid em caso de aumento da demanda. Mas ele também frisa que a capacidade dos hospitais é limitada e que é preciso fazer o enfrentamento ao vírus com a redução para evitar uma situação de colapso do sistema. “Quanto maior o número de leitos, mais tarde chegará a saturação. Mas, por outro lado, nós temos um número de leitos que não é infinito, não tem como abrir infinitos leitos hospitalares ou de UTI em Porto Alegre ou no Estado. Nós podemos aumentar, nós estamos aumentando o nosso número de leitos, mas obviamente que tem um limite para isso. Então, se a projeção de casos continuar nessa velocidade, nós estaremos saturando o sistema em determinada data”, diz.

Berger acredita que a demanda por leitos deve aumentar, mas aponta que o hospital está se preparando para isso. “Nós estamos treinando os nossos membros do corpo clínico para situações de suporte a determinadas áreas em caso de necessidade”.

Questionado sobre como a conversão dos leitos de UTI para o tratamento de covid-19 afeta a prestação dos demais serviços de saúde, o diretor da Santa Casa reconhece que haverá áreas afetadas. “Como a gente tem que direcionar equipes para isso, é natural que a gente desacelere os outros atendimentos. Nesse sentido, até já teve portaria da SMS pedindo para que, com exceção de algumas áreas que são mais críticas, entre elas a oncologia e a cardiologia, as demais áreas menos críticas fossem desaceleradas para permitir que as estruturas hospitalares passem a direcionar os seus recursos para o atendimento da covid neste momento”, diz.” “Este movimento que está sendo feito é no sentido de reduzir cirurgias eletivas, que são aquelas que podem esperar outro momento, para podermos usar a estrutura, tanto para a covid, quanto para os atendimentos mais críticos e de urgência”, complementa.

Balparda acredita que a abertura de novos leitos para covid-19 vai ajudar a evitar que o sistema público de saúde entre em colapso na Capital. Contudo, ele expressa preocupação com a velocidade de crescimento de novas internações registrada nas últimas semanas.

“Se o contágio continuar desse jeito, não existe sistema de saúde no mundo que seja capaz de suportar. Não é só aqui no RS, não é só no Brasil. Se a gente não controlar o contágio, e a restrição é uma das formas, a outra forma acho que é a conscientização da população em relação a isso, porque a gente vê muitas pessoas agindo como se não houvesse uma pandemia e ela existe, se a gente não reduzir o contágio, não existe sistema de saúde no mundo capaz de suportar uma população com um índice de contaminação muito alto”, diz. “A gente pode botar mais 400 leitos e ainda assim vai faltar. E, quando a gente fala em leito, a gente tem que ter consciência de que o leito físico é uma coisa, que já tem sua dificuldade, nós temos que ter equipes para trabalhar nesses leitos e aí está a maior dificuldade”.

A reportagem do Sul21 solicita desde o início da semana uma entrevista com o secretário de Saúde, Pablo Stürmer, ou com algum representante da Secretaria Municipal de Saúde sobre a capacidade do sistema hospitalar da cidade para suportar o aumento de casos de covid-19. Ainda não obtivemos resposta, mas o espaço se mantém aberto.


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