Coronavírus
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11 de junho de 2020
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12:21

Quase 40 mil famílias gaúchas cadastradas no Bolsa Família não receberam 1ª parcela do auxílio emergencial

Por
Luís Gomes
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Levantamento aponta problemas no pagamento do auxílio emergencial | Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Luís Eduardo Gomes

A catadora de papelão Tânia Porto da Silva, mãe de dois filhos em idade escolar e moradora de Santa Maria, teve acesso à primeira parcela do Auxílio Emergencial pago pelo governo federal durante a pandemia do novo coronavírus no dia 21 de abril. Como era beneficiária do Bolsa Família desde 2018, recebeu o auxílio automaticamente, sem precisar se cadastrar através do aplicativo criado pelo governo federal. No dia 23 de maio, visitou uma lotérica da cidade para sacar a segunda parcela, mas não conseguiu efetuar a transação.

Foi então a uma agência da Caixa, que a passou de “um setor para o outro”, mas não soube resolver o problema. Por telefone, na Central do Bolsa Família, a mesma falta de respostas. Apenas depois de baixar o aplicativo do auxílio obteve a informação de que o seu benefício havia sido cancelado, tanto o auxílio emergencial, quanto o Bolsa Família.

Tânia diz que, até o momento, não recebeu nenhuma explicação oficial para o cancelamento. “Eu continuo ligando e ninguém me dá explicação nenhuma, nem o porquê cortaram. Eu procurei todos os órgãos. Central do Bolsa Família, fui no Caixa, fui no CRAS (Centro de Referência da Assistência Social), eles não têm uma resposta. Nada, nada, nada. Só que, se eles não vão pagar o auxílio, pelo menos não cortassem o Bolsa, porque fica complicado”, diz. “Eu gostaria que, pelo menos, me desse uma explicação, porque prometem que vão fazer isso, vão fazer aquilo, aí eles põem um pouquinho de açúcar na boca da gente, mas depois vão lá e cortam. E a gente fica sem uma explicação, sem nada”.

Tânia o cadastro no Bolsa Família e no Auxílio Emergencial cancelados entre a primeira e a segunda parcela | Foto: Arquivo Pessoal

Ela conta ainda que passou dois meses sem conseguir trabalhar e que retornou, aos poucos, no final do mês de maio. “É bem crítica a situação. Eu ganhei uma cesta básica da escola em que eu estudo, da escola em que os meus filhos estudam, para ir sobrevivendo e ir levando”.

Paola Carvalho, diretora de relações institucionais Rede Brasileira de Renda Básica, destaca que, apenas no Rio Grande do Sul, 39.188 famílias cadastradas no Bolsa Família, que, portanto, deveriam receber o auxílio emergencial automaticamente, ainda não tiveram acesso ao benefício. Essas famílias representam 10,5% do total de beneficiários do Bolsa no Estado.

Entre os registrados no Cadastro Único do governo federal, que abarca todos os programas sociais, o número de famílias desassistidas é ainda maior: 263.254 não receberam, o que representa 26,7% do total.

Os dados foram obtidos pela Rede Brasileira de Renda Básica através de um pedido feito pela Lei de Acesso à Informação (LAI). Paola explica que a entidade, ainda em abril, enviou um pedido de informações ao Ministério da Cidadania sobre o número de famílias que foram aprovadas para receber o auxílio emergencial, o número de famílias que tiveram o benefício negado, com a explicação para a negativa, e o número de famílias que ainda aguardam retorno. A entidade também pediu a delimitação dos dados por estados e municípios nas três categorias do auxílio: beneficiários do Bolsa Família, cadastrados no CAD Único e pedidos feitos pelo aplicativo. Além disso, solicitou a informação de quem realmente conseguiu sacar o benefício.

“A gente resolveu acompanhar a implementação do auxílio emergencial e nos demos conta que tinha muitos problemas. Começamos a ver que o número de negativas era muito expressivo e que, especialmente o público do cadastro único e do Bolsa Família não tinham onde buscar nenhuma informação. Por quê? Porque os CRAS não foram envolvidos. A rede socioassistencial, por uma opção do governo, não foi envolvida no processo, então ela está completamente por fora”, diz Paola.

Na resposta ao pedido feito pela LAI, o Ministério da Cidadania informou apenas os dados sobre as famílias aprovadas, sem informações sobre os pedidos negados ou ainda em avaliação. No entanto, a Rede Brasileira de Renda Básica conseguiu cruzar os dados fornecidos com as informações de famílias cadastradas no CAD Único e no Bolsa Família, o que permitiu chegar ao número de beneficiários dos programas que não conseguiram acessar o auxílio emergencial. Em termos nacionais, 707.706 famílias cadastradas no Bolsa Família não receberam o auxílio. “O que a gente sabe é que, em termos nacionais, um terço do cadastro único não recebe, não tem informação do porquê, e pelo menos metade das pessoas que solicitaram pelo aplicativo não receberam. Por outro lado, o CPF do velho da Havan entra”, ironiza Paola, em referência ao fato de que Luciano Hang teve o CPF aprovado para o recebimento do benefício — ele confirmou que o cadastro foi feito, mas nega que tenha sido ele.

O deputado estadual Valdeci Oliveira (PT), que lidera uma frente na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul em defesa da implementação da renda básica, acionou o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União para que os órgãos tomassem providências sobre a exclusão dessas famílias. “Até agora, não se tem nenhuma explicação. Aliás, o que se tem é muita informação de gente que precisa receber e aqueles que mais precisam acabaram sendo excluídos. Na nossa avaliação, isso é a demonstração da esculhambação total desse governo, que não consegue ter, de fato, prioridade, não consegue concentrar esforços para atender os mais vulneráveis”, diz.

Valdeci também encaminhou, no dia 2 de junho, um ofício à Secretária de Estado do Trabalho e Desenvolvimento Social, Regina Becker, reportando os dados obtidos pela Rede Brasileira de Renda Básica e pedindo providências em defesa dessas famílias. Ele também levou o tema a uma reunião da Assembleia da qual Regina Becker participou. Na ocasião, a secretária respondeu: “Essas 40 mil famílias, na verdade, foram famílias que foram incluídas no cadastro depois que foi iniciada a pandemia. Os prefeitos municipais começaram a incluir pessoas que não estavam cadastradas. Por isso, elas não receberam o benefício até agora. Mas a sinalização do Ministério da Cidadania é que elas, sim, serão incluídas”.

Em resposta a questionamentos feitos pela reportagem, o Ministério da Cidadania informou que 88,2% das famílias gaúchas cadastradas no Bolsa Família receberam o auxílio emergencial em maio, o que indica que 11,8% não receberam, percentual superior ao apontado pela Rede Brasileira de Renda Básica. A pasta destacou ainda que as famílias cadastradas no Bolsa Família precisam se enquadrar nas regras do auxílio estabelecidas na Lei 13.982/2020, que são:

– Ter mais de 18 anos de idade, salvo no caso de mães adolescentes (redação dada pela Lei nº 13.998, de 2020);
– Não ter emprego formal ativo;
– Não receber benefícios pagos pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), como aposentadoria, pensão ou Benefício de Prestação Continuada (BPC);
– Não ser beneficiário do seguro desemprego, seguro defeso ou de programa de transferência de renda federal, com exceção do Bolsa Família;
– Estar em família com renda mensal por pessoa de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou com renda mensal total de até três salários mínimos (R$ 3.135,00);
– Em 2018, não ter recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos), ou seja, em 2018 não precisou declarar imposto de renda; e
– Ser microempreendedor individual, contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social ou trabalhador informal, mesmo que desempregado.

Contudo, Paola pontua que para estar no Bolsa Família é preciso ter uma renda de até R$ 178 por pessoa da família. Ela destaca ainda que o próprio governo reconhece que o banco de dados usado para avaliação de quem pode receber o auxílio não é atualizado, pois utiliza dados de 2018, o que não computa pessoas que perderam o emprego posteriormente. “Se o governo assume que não tem dados atualizados, como é que ele decide cortar as famílias do Bolsa?”, questiona.

Ela destaca que, como no caso de Tânia, há ainda famílias que foram desligadas do Bolsa depois de receberem a primeira parcela, o que contraria portaria do próprio governo federal determinando que não seria possível desligar famílias do programa por 120 dias. “Se 40 mil não receberam a primeira parcela, a segunda parcela é muito mais grave do que isso”.

Volmir ainda aguarda resposta para o seu pedido | Foto: Arquivo pessoal

Famílias no limbo

Apesar de não ter obtido o restante dos dados solicitados, Paola diz que outro problema verificado pela Rede Brasileira de Renda Básica é que muitas famílias estão sendo mantidas numa espécie de limbo, pois não receberam ainda o pagamento de nenhuma parcela do auxílio, mas também não tiveram o pedido negado. É o caso do eletricista Volmir Bolzan Baccin, morador de Gravataí.

“No primeiro dia, às 7h da manhã, eu tava tomando chimarrão e já fiz a inscrição no site do auxílio emergencial, dia 7 do 4. Depois, eu entrei várias vezes e tava o auxílio em análise, aí entrei no site do Dataprev, que tinha recebido a minha inscrição no dia 10/4, tinha aprovado dia 12/4, tinha remetido para a Caixa dia 15/4 e nunca apareceu na Caixa. Passados 15, 20 dias, voltou para revisão e estou em revisão até hoje”.

Volmir diz que não recebeu nenhuma explicação oficial para a não aceitação, mas imagina que seja porque o governo está usando o ano base de 2018 para a concessão do auxílio, quando ele teve cinco meses de trabalho com carteira assinada, apesar de ter trabalhado como autônomo todo o ano de 2019. “Mas eles não me negam, nem me aprovam, então eu não tenho como entrar com recurso. Tô atado. Tudo que eu faço quando digito meu CPF dá que eu tô inscrito”, diz.

Ele conta ainda que, em razão da pandemia, tem conseguido realizar poucos serviços e que o auxílio seria urgente. Contudo, diz que o mais complicado é ver pessoas que “não precisam” e estão recebendo. “Por exemplo, a mulher do meu ex-patrão, que não teria direito, está recebendo. Tem casos incríveis”, diz. “Eu gostaria que alguém, a Defensoria Pública ou a Justiça, fizesse esse governo ao menos cumprir as palavras que dizem quando vão para a rádio. O Onyx [Lorenzoni, ministro da Cidadania] vai para a imprensa dizer que ‘segunda-feira vai estar resolvido’. Só que sempre esquecem de perguntar para o Onyx qual a segunda-feira, de qual mês, de qual ano”.


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