Coronavírus
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19 de junho de 2020
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21:07

Coronavírus em Porto Alegre: ‘Estamos caminhando em direção ao desastre’

Por
Sul 21
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Referência na cidade, o Hospital de Clínicas corre risco de colapsar nas próximas semanas se medidas não forem adotadas para conter o avanço do coronavírus. Foto: Luiza Castro/Sul21

Luciano Velleda

É com um misto de lamento e revolta que o médico Armando de Negri Filho, epidemiologista e especialista em medicina de Emergências, observa o crescimento dos casos de contaminação e morte por covid-19 em Porto Alegre. A sensação decorre da convicção de que o agravamento da epidemia na capital gaúcha poderia ter sido evitado. De Negri é contundente ao afirmar que as atividades comerciais reabriram antes da hora e, agora, é urgente fechar tudo — o conhecido lockdown — para evitar que o sistema de saúde entre em colapso nos próximos dias ou semanas.

“É preciso fazer o lockdown agora. Estamos numa curva crescente e aumentou agora com a flexibilização. Tudo o que conseguimos acumular de bom, estamos perdendo rapidamente. Estamos caminhando, invariavelmente, em direção ao desastre”, afirma Negri Filho.

Ao contrário de países europeus, como Espanha e França, que foram rígidos em medidas de isolamento e impuseram pesadas multas para quem descumprisse, no Brasil e no Rio Grande do Sul nada disso ocorreu e o isolamento foi sempre um ato de consciência individual. O resultado então está sendo o esperado, com recordes de contaminação e mortes. “Era inadequado suspender o isolamento sem conseguir ‘quebrar’ o processo de transmissão. Me pareceu uma coisa insana, do ponto de vista epidemiológico”, analisa o médico, um dos fundadores do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em Porto Alegre, em 1995. A cidade foi a primeira do Brasil a criar o serviço de emergência.

Armando de Negri destaca que é preciso os governantes agirem olhando para frente, antes de perder completamente o controle da situação. Para ele, esse é o atual momento de Porto Alegre: o aumento desenfreado de novas contaminações e a iminência do sistema de saúde colapsar. É para evitar o cenário dramático já ocorrido em outras cidades brasileiras que ele defende a urgência em paralisar tudo por, no mínimo, 15 dias, mantendo abertos apenas os serviços essenciais.

Segundo o médico, com 85% de ocupação dos leitos de UTIs, tecnicamente se considera um quadro de saturação do sistema, e a partir de 90%, de superlotação. Nesta sexta-feira (19), Porto Alegre tem 80% dos leitos de UTIs ocupados, índice que chegou a 82% durante a semana.

Nesse contexto, as últimas medidas de restrição no comércio anunciadas pelo prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB), diz Negri Filho, são insuficientes, “uma perda de tempo”. Para ele, é um erro a Prefeitura ter a lotação das UTIs como único parâmetro para a tomada de decisão, sem considerar os indicadores da circulação do vírus na sociedade.

Negri Filho recorda o “princípio da precaução” que deve nortear as decisões médicas. Por esse princípio, a primeira regra da medicina é não causar dano. Um pressuposto que, para ele, está sendo violado. “É muito delicada a situação em que estamos. O governo está fazendo um experimento social, cujo resultado é incerto.”

A internação em hospitais da Capital de pacientes com covid-19 vindos da região metropolitana tem sido um tema debatido entre Marchezan e os prefeitos das cidades vizinhas. Tal fluxo é mais um fator de pressão sobre o sistema de saúde da Capital. O tema, todavia, não tem nada de novo, pelo contrário, é um problema antigo. “Sempre tivemos fila de espera, sempre tivemos pessoas esperando por um leito de UTI. Quando se pega essa história, é sobre essa base que agora chega o impacto da epidemia”, analisa o médico Armando de Negri.

A diferença, ele avalia, é que a partir de agora o sistema de saúde da capital gaúcha será “golpeado” constantemente. Não só em 2020, mas tudo indica que assim será em 2021 e talvez até 2022. Tudo dependerá da descoberta da vacina para o novo coronavírus e da capacidade de produção e aplicação em escala planetária.       

Armando de Negri reconhece ser difícil manter o isolamento sem uma rede de proteção econômica, mas diz não haver outro caminho para evitar o colapso. Foto: Divulgação

A ânsia pelo normal

Coordenador-geral da Rede Brasileira de Cooperação em Emergências (RBCE), o médico Armando de Negri Filho tem consciência das dificuldades da maior parte da população brasileira em cumprir o isolamento social. A criação de uma rede de proteção social e econômica para garantir renda, empregos e evitar a quebradeira de pequenas e médias empresas, seria vital para o sucesso do isolamento — a única medida realmente eficaz até o momento para evitar a propagação do novo coronavírus.

A responsabilidade por tal proteção cabe principalmente ao governo federal, que tem os instrumentos para transferir renda e criar programas de apoio às pessoas e empresas. No Brasil, porém, quatro meses após o início da crise sanitária, enfrentar o novo coronavírus continua não sendo prioridade para o governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Os estados têm alguma condição de influir no tema, enquanto os municípios bem menos. Sem proteção social e econômica, o isolamento social perde força dia após dia.

“Os países que conseguem proteger a população, conseguem manter o isolamento sem criar uma bolha de pressão. A desproteção social é muito severa e está sobrecarregando muito os municípios. E vai se agravar com o tempo”, projeta Negri Filho.

Ao problema econômica soma-se ainda um elemento psicológico. Nas ruas da cidade, o que se vê são pessoas ávidas por retornarem à sua rotina, um certo desespero em voltar para uma normalidade que, porém, não existe mais. Ao menos não por enquanto. “Do ponto de vista psicológico, há a necessidade de volta à normalidade”, avalia o especialista em medicina de Emergências.

Por mais duro e difícil que seja, Armando de Negri afirma que Porto Alegre precisa parar. As evidências para embasar tal necessidade já são conhecidas e suficientes. “O colapso da rede de saúde metropolitana vai terminar com o maior centro de atendimento do estado”, acredita.


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