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23 de abril de 2020
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18:10

‘Não tem essa ideia de que vai tudo voltar ao normal. Não existe mais o normal’

Por
Sul 21
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Moradores do Queens, em Nova York, onde o uso de máscara na rua já se tornou obrigatório. Foto: Cibele Vieira

Marco Weissheimer

A dimensão das perdas, dores e tragédias vividas pela população de Nova York e de outras cidades dos Estados Unidos com a pandemia do novo coronavírus, repetindo o que já ocorreu e segue ocorrendo em outras partes do mundo, deveria ser suficiente para servir de alerta para a população brasileira do que pode ocorrer aqui. Deveria, mas parece não ser. A pressão pelo “retorno à normalidade”, exercida desde a Presidência da República e reforçada especialmente por empresários de diferentes setores pressiona a sociedade a “voltar ao trabalho” e a acreditar que tudo vai ficar bem, que, aqui, não vai acontecer o que já se viu na Itália, na Espanha, nos Estados Unidos e em tantos outros países. Nem as primeiras imagens de covas coletivas, abertas em Manaus, para enterrar pessoas mortas pela covid-19, parece abalar essa crença que vê no “retorno à normalidade” o caminho para a superação da pandemia.

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O Sul21 ouviu uma artista porto-alegrense que vive nos Estados Unidos há 22 anos, morando atualmente no Queens, em Nova York, e um professor de literatura numa universidade pública de New Jersey, nascido nos EUA, mas filho de pai e mãe brasileiros, sobre como estão vivenciando a pandemia e o regime de distanciamento social. Do alto da experiência pela qual estão passando, Cibele e Johnny não expressam nenhuma confiança nesse “retorno à normalidade”.

“É um cenário meio apocalíptico”

É assim que Cibele Vieira sai de casa para ir no mercado em Nova York. Foto: Arquivo pessoal

“Não existe mais o normal. A ideia de que vai tudo voltar ao normal não existe. Sem a realização de exames em massa e sem uma vacina, não existe o normal”. Artista natural de Porto Alegre, Cibele Vieira resume assim o que sente nesta metade de abril, em meio à quarentena que está vivendo com o filho Samuel na casa onde mora no bairro do Queens, em Nova York. Ela não é otimista sobre a perspectiva de “volta à normalidade” e manifesta preocupação com as notícias que lê sobre a maneira como o governo brasileiro e parte da sociedade vem se comportando em relação à pandemia de coronavírus. Cibele iniciou seu processo de quarentena ainda no dia 17 de março, antes da mesma ser adotada formalmente pelas autoridades. Um mês depois, no dia 16 abril, o governador de Nova York anunciou que a quarentena seria mantida pelo menos até o dia 15 de maio.

Cibele fazia trabalhos de arte terapia em dois hospitais de Nova York junto a pacientes de quimioterapia e também com internados para fazer transplante de medula. Esse trabalho tornou-a treinada em usar materiais de proteção como luvas e máscaras. Ela envia uma foto de como tem saído de casa para uma das raras incursões ao mundo exterior feitas nas últimas semanas: ir ao mercado comprar alimentos e outras coisas para a casa. Coberta dos pés à cabeça, com botas, calça, moletom, luvas e máscara. E tudo isso não entra depois para dentro de casa. “É um cenário meio apocalíptico, todo mundo com luvas e máscaras. Os preços estão aumentando e não há mais desconto nos mercados”, relata.

Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump, como seu seguidor Jair Bolsonaro no Brasil, assumiu uma postura de relativização da gravidade da pandemia do novo coronavírus. Foi obrigado a um brusco recuo quando as mortes começaram a acontecer exponencialmente, especialmente em Nova York. Cibele destaca o papel que o governador de Nova York, Andrew Cuomo, desempenha no enfrentamento de Trump. “A liderança de Cuomo é muito forte. Como Trump, Cuomo também é de Nova York, então sabe como falar com o presidente. Trump ameaçou construir uma barricada em torno de Nova York e New Jersey. Cuomo respondeu no mesmo dia dizendo que isso não iria acontecer. No dia seguinte, Trump recuou em sua proposta”. Para ela, essa capacidade de liderança é fundamental para educar a consciência das comunidades e trabalhar para o enfrentamento das dramáticas conseqüências da pandemia.

“Preços estão aumentando e não há mais descontos nos mercados”. Foto: Cibele Vieira

Os impactos da falta de liderança

Cibele avalia que essa falta de liderança capaz de fazer esse trabalho, de forma conjunta com as comunidades e é um dos principais problemas que o Brasil está enfrentando e poderá trazer graves conseqüências para o país. Ela vê como medida acertada, no caso brasileiro, o fechamento das escolas públicas. “Isso é fundamental. Aqui, já há escolas e universidades pensando em cancelar o ano todo”. Ela confirma que as mortes por covid-19 em Nova York estão atingindo principalmente a população afrodescendente e latina, mas também grupos como o dos judeus ortodoxos hassídicos. Uma reportagem de 21 de abril do New York Times resumiu o impacto do coronavírus nesta comunidade como uma “praga em escala bíblica”. Bairros como o Brooklyn e o Queens, que têm uma grande população de judeus ortodoxos hassídicos, apresentam alguns dos níveis mais altos de casos confirmados de covid-19 em Nova York.

Segundo a reportagem do NYT, o novo coronavírus atingiu essa comunidade judaica ortodoxa de Nova York com força devastadora, matando líderes religiosos influentes e destruindo grandes famílias a uma taxa que, conforme alguns dados de saúde pública sugerem, podem exceder os de outros grupos étnicos ou religiosos. As autoridades de Nova York não fazem estatísticas de óbitos por religião, mas o NYT cita que meios de comunicação da comunidade hassídica reportaram cerca de 700 mortes na cidade por covid-19. A reportagem assinala ainda que essa comunidade ficou vulnerável por uma série de fatores sociais, incluindo altos níveis de pobreza, a dependência de líderes religiosos que, em alguns casos, demoraram a agir para evitar aglomerações, e uma desconfiança histórica em relação a autoridades seculares.

“A vida continua, mas há muito stress e insegurança”, diz professor de Literatura

Johnny Lorenz, professor de Literatura em New Jersey. (Foto: Arquivo pessoal)

Professor de literatura numa universidade pública em New Jersey e tradutor para o inglês do poeta gaúcho Mário Quintana e de outros poetas brasileiros, Johnny Lorenz, teve que cancelar as aulas no dia 16 de março. A partir dessa data, as aulas passaram a ser completamente “online”. “Assim, a vida continuou, o trabalho continuou, mas a energia humana e o clima intelectual sofreram muito. Os alunos, que já estavam estressados, pensando nas notas, nas tarefas de casa, no futuro, na falta de emprego e nas dívidas, passaram a ter uma nova fonte de preocupação com o vírus. “Todo o estresse envolvido, a falta de contato humano e a perda dos rituais cotidianos, tudo isso influencia a atitude do aluno, cria uma certa confusão e insegurança, afetando a própria vontade de estudar”.

“De um lado, a minha aula de literatura pode ter um valor terapêutico, mas não posso me iludir, porque, por outro lado, para muitos alunos, a minha aula é simplesmente mais um estresse. Estou tentando modificar a minha maneira de ensinar, estou tentando ser mais flexível, não criar estresses desnecessários neste momento tão delicado.  A administração universitária está nos avisando que – por causa da realidade econômica, por causa das novas prioridades de muitos dos nosso alunos – muitos deles não voltarão no semestre que vem, e a universidade vai enfrentar uma nova realidade com menos alunos, menos dinheiro, e (tudo indica) a continuação de uma pedagogia completamente online”, relata Johnny, que nasceu nos Estados Unidos, filho de mãe e pai brasileiros.

Ele conta que vive uma situação privilegiada no contexto da pandemia. “Devo dizer que reconheço o privilégio, ou sorte, que tenho. Sou professor de uma universidade estadual, com um contrato permanente e um plano de saúde muito bom. Posso ficar em casa, seguir as regras da quarentena, sem perder o meu trabalho. Tenho uma esposa, um filho e uma filha, e a minha filha tem diabetes desde a infância. Sem o meu plano de saúde, que muitos cidadãos não têm, como eu pagaria o preço absurdo de insulina? O preço de insulina é criminoso”.

Johnny relata ainda que, na sua cidade, a população está tentando ajudar pequenos restaurantes e padarias. “Restaurantes que não estavam fazendo tele-entrega agora estão, ou colocam a comida numa sacola na calçada de frente do restaurante, e o freguês pode parar o carro e, muito rapidamente, pegar a sacola. A economia está em frangalhos, com um número de desempregados subindo a cada semana, aponta, o que deixa o governo Trump muito impaciente por se tratar de um ano eleitoral. “O presidente não tem o poder para abrir a economia (ele acha que tem, mas não tem) pois os governadores têm muito mais poder neste contexto”.

A população, destaca ainda, vive um dilema: “Uma parte da população prefere, com certeza, voltar para o trabalho agora porque está sofrendo com a crise econômica, e a ajuda federal é coisa pequena, não vai longe, e vai demorar pra chegar. Mas pessoalmente acho que a maioria da população tem medo, muito medo do vírus, e quem pode ficar em casa vai ficar respeitando as regras, e quem não pode suportar a crise econômica está à beira do abismo, porque ou não tem trabalho e não vai receber ajuda suficiente do governo, ou até vai voltar para o trabalho mas numa situação de insegurança de renda e de saúde. Quem não tem contrato permanente, não tem plano de saúde nenhum”.

“Maioria da população tem medo, muito medo do vírus”. (Foto: Cibele Vieira)

Questionado sobre se a pandemia está mudando a percepção na sociedade sobre a importância de um sistema público de saúde, Johnny Lorenz responde com um enorme “depende”. “É uma pergunta complicada e a resposta pode ser diferente mês que vem. Uma pesquisa do New York Times mostrou que a parte mais republicana do país (que, em sua maioria, vive fora dos grandes centros urbanos) não se preocupa muito com o vírus e desconfia muito da imprensa. Já a parte mais democrata acha que a situação é urgente, que a crise é verdadeira e expõe problemas fundamentais do país”.

Mas, contra essa visão, ressalta, há uma certa ideologia que vai explicar tudo isso como exagero da grande imprensa, ou vai dizer que tudo é obra da Providência e que o verdadeiro patriota vai tentar por obrigação “voltar à vida normal.” “Eu acho o seguinte: se o vírus continuar a matar pessoas, se uma nova onda da praga voltar a nos atingir depois do nosso verão, se o vírus continuar a mostrar a incapacidade e a cegueira do nosso governo federal, daí o público vai enxergar melhor a realidade e essa situação vai se tornar insuportável”.

Neste cenário de distanciamento social, Johnny Lorenz expressa uma preocupação que é a de muita gente hoje: o país não está preparado para uma eleição federal dentro desse contexto de distanciamento social. “A administração Trump só vai se beneficiar se a maioria dos eleitores ficar em casa. Cada estado vai ter que criar novas maneiras para o eleitor registrar o seu voto – por correio, por exemplo, ou votando muito mais cedo, dar mais tempo para o eleitor, fazendo o ato de votar mais fácil nestes tempos difíceis. Mas há muitos governos estaduais que preferem ver menos votos emitidos e não têm vontade nenhuma de modernizar o ato constitucional de votar.


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