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7 de abril de 2020
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12:00

‘Agora, a instituição que não quebra é o governo, por isso é o principal agente para amenizar a crise’

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Sul 21
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‘Agora, a instituição que não quebra é o governo, por isso é o principal agente para amenizar a crise’
‘Agora, a instituição que não quebra é o governo, por isso é o principal agente para amenizar a crise’
Nelson Barbosa diz que o governo deve ampliar a proteção aos trabalhadores e oferecer crédito para as empresas honrarem parte da folha de pagamento. Foto: Agência Brasil

Luciano Velleda

O economista Nelson Barbosa conhece os caminhos e descaminhos da Esplanada dos Ministérios. A experiência vem dos diversos cargos ocupados durante os governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), entre eles o de secretário de Acompanhamento Econômico (2007-2008) e secretário de Política Econômica (2008-2010). No governo de Dilma Rousseff (2011-2016), foi secretário-executivo do Ministério da Fazenda (2011-2013), ministro do Planejamento (2015) e depois ministro da Fazenda (2015-2016). Esteve, inclusive, no centro da polêmica sobre as “pedaladas fiscais” que viriam a ser a justificativa oficial para o impeachment da ex-presidente.

Tal qual gato escaldado, sabe o que significa ser peça da enorme engrenagem de um governo federal em dias de crise. É com esse olhar que Barbosa define como “relativamente incompletas” as medidas adotadas até aqui pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido) diante da pandemia do novo coronavírus. Para ele, enquanto o País perde tempo debatendo se deve ou não adotar o isolamento social, o que deveria mesmo ser discutido é como adotá-lo e como planejar a sua saída. “Não há dicotomia entre economia e saúde, porque, se você não combater a pandemia, o efeito econômico será pior ainda”, afirma.

Nesta entrevista ao Sul21, o doutor em economia pela New School for Social Research, de Nova York, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade de Brasília (UNB) avalia como pequena a compensação proposta pelo governo para proteger os trabalhadores. Para ele, a proteção deveria ser maior, pelo menos até três salários mínimos, ao contrário do limite de um salário mínimo apresentado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

“Os partidos de oposição apresentaram projetos nesse sentido, que cobre até 100% do salário de quem ganha até três salários mínimos. Você divide os trabalhadores em dois grupos: quem ganha até três e quem ganha acima de três salários mínimos”, defende Barbosa. O custo, ele reconhece, seria maior, mas a crise é gigante e a maior proteção se faz necessária, tanto para os trabalhadores como para os empregadores. Nesse sentido, ele acredita que o governo deve oferecer linha de crédito para que a empresa possa financiar o restante da folha de pagamentos.

“Nesse momento, a instituição que não quebra é o governo, e é por isso que o governo é o principal agente para amenizar a crise. Não quer dizer que o governo pode fazer tudo, mas ele pode absorver uma grande parte dessa crise, aliviando o impacto no setor privado”, pondera Nelson Barbosa.

Com os olhos no futuro próximo, o economista adianta discussões que já estão ocorrendo sobre o pós-crise. Enquanto uns defendem que as medidas adotadas têm que ser temporárias e que a economia vai voltar ao normal já em 2021, Barbosa avalia isso como uma ilusão. “O setor privado vai perder renda e aumentar seu endividamento, então, quando as coisas começarem a voltar ao normal, dificilmente o setor privado, com menos renda e mais dívida, vai ser capaz de sozinho levantar a economia brasileira.”

Para pensar o momento em que o País precisará se reerguer, ele desde já afirma que serão necessárias políticas de reconstrução, baseadas no investimento e na criação de emprego para que o Brasil se recupere o mais breve possível. “Apostar que o setor privado vai se recuperar rapidamente, com o governo fazendo nada, é um dos motivos que levou à estagnação dos últimos três anos.”

Sul21: Como o senhor avalia a condução do governo na crise do coronavírus?

Nelson Barbosa: O governo inicialmente foi na direção errada. Quando a crise começou nos outros países e não tinha chegado ainda ao Brasil, o governo disse que a melhor maneira de enfrentar a crise era aprovando reformas de longo prazo. É sempre bom lembrar que o governo mandou uma lista de reformas prioritários para o Congresso. Há várias reformas que são necessárias, mas uma crise de curto prazo, exige medidas de curto prazo. Quando a situação piorou, então o governo mudou de posição, corretamente, e começou a adotar medidas emergenciais nas últimas três semanas, mas, ainda assim, essas medidas estão saindo relativamente incompletas. Em parte porque não é fácil montar rapidamente uma rede de transferência de renda, de crédito e de proteção ao emprego, mas em parte também por incertezas jurídicas do próprio governo e do Congresso.

Sul21: Quando o senhor fala em “medidas incompletas”, o que poderia ser feito e que não está sendo feito?

Nelson Barbosa: Acho que as principais medidas têm sido tomadas. Primeiro, a questão do isolamento social acabou sendo feita por prefeitos e governadores e não por uma coordenação federal. O ideal teria sido uma iniciativa federal, que pudesse se adaptar a realidade de cada região, porque nem todo mundo está sendo afetado da mesma forma. Mas o fato de ter sido descentralizado criou muito ruído. A gente ainda perde muito tempo nessa discussão se deve ou não adotar o isolamento social, quando na verdade a discussão é como adotá-lo e como planejar a saída. Para mim, não há dicotomia entre economia e saúde, porque, se você não combater a pandemia, o efeito econômico será pior ainda. Na parte da saúde, o Ministério da Saúde está até adotando as medidas de coordenação nacional, mas na parte econômica poderia ter mais planejamento.    

No caso das medidas de assistência, elas são necessárias e a maioria delas só o governo federal pode fazer, como transferência de renda, proteção de emprego, dar crédito para empresa que precisa…governador e prefeito não tem capacidade de fazer. O governo inicialmente lançou um programa de proteção do emprego que não tinha nenhuma compensação ao trabalhador, o próprio presidente depois revogou. E agora o governo lançou um programa que tem lá uma compensação ao trabalhador, mas acho que essa compensação ainda é muito pequena e só está protegendo o salário até um salário mínimo. Vários especialistas, eu inclusive, acham que é necessário uma proteção maior, pelo menos até três salários mínimos. É o que outros países fazem, onde o governo cobre 70% ou até 80% da perda salarial por determinado tempo. Então essa medida é melhor do que nada, mas pode ser aperfeiçoada.   

Sul21: E o Brasil tem condições de aumentar a proteção até três salários mínimos?

Nelson Barbosa: É preciso ampliar. Obviamente o custo vai ser maior, mas é um custo necessário. Os partidos de oposição apresentaram projetos nesse sentido, que cobre até 100% do salário de quem ganha até três salários mínimos. Você divide os trabalhadores em dois grupos: quem ganha até três e quem ganha acima de três salários mínimos. Quem ganha até três salários mínimos, o governo vai cobrir 100% do salário nas micro e pequenas empresas, e 75% do salário nas grandes. Quem ganha até três salários mínimos, o governo vai cobrir 75% do salário nas micro e pequenas, e 50% do salário nas grandes empresas. É um custo bem maior, mas é um suporte necessário. O melhor exemplo é o auxílio para uma população afetada por um desastre, como uma barragem que ruiu ou uma enchente, e aquela população, de uma hora pra outra, tem uma perda súbita de renda. O fato novo dessa crise é que é toda a população brasileira. Então é possível e é preciso fazer.

Outra medida importante, para as empresas, é que uma parte da folha de pagamentos o governo pode temporariamente assumir, com compromisso de que as empresas não vão demitir, e a outra parte que fica com a empresa. Pode haver linha de crédito para que a empresa possa financiar o restante da folha de pagamentos. A Alemanha faz isso, o banco KFW (análogo ao BNDES) já sinalizou que dará o crédito necessário de curto prazo para as empresas atravessarem a crise. Então, são medidas de crédito, transferência de renda, além das medidas de saúde pública, que são necessárias agora.

Sul21: A crise fez, inclusive, voltar o debate sobre o papel do Estado.

Nelson Barbosa: A única instituição que pode dar assistência, neste momento, é o governo. Então isso está recuperando o entendimento de que é preciso o papel do governo federal neste tipo de situação, de coordenação, de absorção do impacto inicial da crise. Para que você proteja o emprego e a renda, o governo vai emitir mais dívidas, aqui e em todo lugar do mundo, então nossa dívida pública vai crescer algo entre 5% e 10% do PIB. Depois essa dívida terá que ser enfrentada, mas isso num momento posterior à crise. Nesse momento, o governo vai emitir dívida como se ele estivesse, em nome da sociedade, tomando recursos emprestados do futuro para combater uma crise no presente. E depois, no futuro, quando a sociedade sair disso, voltar a capacidade produtiva e a trabalhar normalmente, aí pode se discutir de que maneira se vai enfrentar esse aumento de dívida, com rolagem (da dívida), com absorção monetária, com taxa de juros maior ou menor, mas isso num momento posterior. Nesse momento, a instituição que não quebra é o governo, e é por isso que o governo é o principal agente para amenizar a crise. Não quer dizer que o governo pode fazer tudo, mas ele pode absorver uma grande parte dessa crise, aliviando o impacto no setor privado.

Sul21: É possível tirar algo positivo dessa crise grave e histórica?       

Nelson Barbosa: Acho que sim. As pessoas vão valorizar mais a colaboração, vão valorizar mais coisas esquecidas, como a interação, a empatia e a solidariedade, isso se a resposta do governo for numa direção, porque, se a resposta for mal feita, aí vira um vale tudo e a gente volta à idade da selva. Crises como essa, inevitavelmente, até pelo exemplo do seu combate, abrem espaço pra discussões sobre novas formas de atuação e novas necessidades que a sociedade têm. Por exemplo, acho que essa crise já gerou a discussão sobre o seguro de renda para todos, não só para quem tinha emprego, que nessa caso acessa o seguro desemprego, mas também para trabalhadores informais, que não têm uma fonte de renda garantida. Essa discussão da renda mínima já existe entre os economistas há muito tempo, ou seja, se todo mundo tem direito a uma renda mínima simplesmente porque existe. Então, estamos promovendo transferências emergenciais, mas essa discussão vai continuar depois.

Outra discussão é o papel do Banco Central. Já na crise de 2008, ficou claro que o Banco Central pode evitar a quebradeira do sistema financeiro dando liquidez para os bancos, só que não necessariamente essa liquidez dos bancos chega no setor produtivo. Então é preciso garantir crédito às empresas e às famílias, não só para os bancos. Há uma discussão no exterior de que o Banco Central tem que atuar diretamente, criando fundos para dar empréstimo direto às famílias e empresas com necessidades. Se os bancos não quiserem, que seja feito diretamente. É uma discussão que já vinha ocorrendo e tende a ganhar força agora.

E, por fim, penso que essa crise prova para o mundo inteiro a importância de ter um sistema público de saúde. Um sistema público bem aparelhado, com médicos suficientes, com sistema de prevenção, rede de distribuição de medicamentos e equipamentos necessários para combater esse tipo de problema. Acho que a saúde pública vai ganhar uma importância muito maior nas políticas públicas no mundo inteiro e no Brasil também.

Sul21: O SUS estaria melhor preparado sem a emenda do teto de gastos, aprovada em 2016 durante o governo de Michel Temer?

Nelson Barbosa: Com certeza. Já há estudos que mostram que a emenda do teto de gastos, quando comparada a regra anterior, representou menos recursos para o SUS hoje, algo entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões. Antes dessa crise, eu e outros economistas já defendíamos que era necessário mudar esse teto de gastos. O governo deve ter uma meta de gastos sim, mas não a meta estabelecida pelo governo Temer, que é o congelamento do gasto no nível real verificado em 2016. Ao manter o gasto real congelado, significa que o gasto real por habitante está caindo, porque a população continua a subir. Então a saúde perdeu recurso per capita, a educação tem perdido recursos per capita, e os investimentos como um todo têm sido muito sacrificados. Acho que após essa crise, provavelmente vamos mudar a regra do teto de gastos para uma abordagem mais racional. Gasto com saúde e educação, assim como infraestrutura, beneficia a geração de hoje e a geração futura, então tem que ter metas próprias. O teto de gastos diminuiu a imunidade da economia brasileira diante de choques como estamos vendo hoje. Agora, o teto de gastos está temporariamente suspenso, o que foi uma medida acertada, o governo vai gastar o que for necessário, porque a crise tem risco de vida para milhões de brasileiros. Após a crise, se o governo quiser voltar ao teto de gastos, isso vai causar uma grande recessão, que vai gerar demandas via Congresso ou da própria sociedade para aperfeiçoar o teto de gastos.

Sul21: Como o Brasil deve se preparar para o pós-crise?

Nelson Barbosa: Hoje estamos tendo as medidas emergenciais, como se tivéssemos tido uma inundação e estamos preocupados em fazer o alimento e a assistência chegar até a população afetada que, nesse caso, é a população de todo o Brasil. Só que há uma discussão entre economistas de que as medidas adotadas têm que ser temporárias e que a economia vai voltar ao normal talvez ano que vêm. Acho isso uma ilusão. O tamanho dessa crise, provavelmente, vai exigir medidas que durem mais de um ano. Então elas podem ser temporárias, mas isso não quer dizer que vão durar só um ano e que em 2021 tudo está de volta ao normal. O setor privado vai perder renda e aumentar seu endividamento, então, quando as coisas começarem a voltar ao normal, dificilmente o setor privado, com menos renda e mais dívida, vai ser capaz de sozinho levantar a economia brasileira.

Por isso, também serão necessárias políticas de reconstrução, além das políticas de auxílio agora. Políticas de investimento, de geração de emprego, para que a gente possa se recuperar mais rapidamente. Apostar que o setor privado vai se recuperar rapidamente, com o governo fazendo nada, é um dos motivos que levou à estagnação dos últimos três anos. Todo mundo esperando que o setor privado fosse puxar a recuperação sozinho e o setor privado não fez isso, porque não havia estímulo e nem razões objetivas para ele aumentar o seu investimento. Agora o mesmo vai se repetir depois dessa crise. Então vários países do mundo já estão pensando no pós-crise, com medidas de reconstrução, na Inglaterra do Boris Johnson, nos Estados Unidos do Donald Trump, que são governos de extrema-direita, mas nem por isso acham desnecessário uma política de reconstrução. Pelo contrário, tanto o Trump como o Jonhson já anunciaram que, na saída da crise, haverá um programa de aumento do investimento e geração de emprego para poder se recuperar mais rapidamente. No Brasil, a gente ainda está na ilusão de que isso não será preciso. Acho isso um problema, e isso vai ficar mais claro quando a economia voltar a funcionar.   


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