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2 de setembro de 2018
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12:16

‘Medo faz sociedade dar respaldo a práticas violentas de suposta repressão ao crime’

Por
Sul 21
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Autora do livro “O que é encarceramento em massa?” esteve em Porto Alegre na sexta-feira | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Abolicionista penal, feminista interseccional, mulher negra e pesquisadora de Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP), Juliana Borges publicou recentemente o livro “O que é encarceramento em massa?”, o segundo da série Feminismos Plurais. A autora atualmente divide seu tempo entre a pesquisa e os lançamentos conjuntos da coleção, cujo primeiro livro foi “O que é Lugar de Fala?”, de Djamila Ribeiro, e eventos nos quais é convidada a falar. Nesta sexta-feira (31), ela esteve em Porto Alegre para participar do Seminário Internacional Rotas Críticas IX: Gênero, criminalidade e corpos femininos em situação de prisão, da Escola de Enfermagem da UFRGS.

Juliana também já foi articuladora política da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), assessora da Secretaria de Governo Municipal e Secretária-Adjunta da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo. Em sua obra, ela aborda questões relativas a políticas de encarceramento da população negra, guerra às drogas e seletividade penal. Em sua palestra na UFRGS, falou ainda de raça e de reparação para o povo negro em relação às diversas violações cometidas desde a época da escravatura.

Como abolicionista penal, ela acredita em um futuro onde haja o fim das prisões como forma de punição. Em entrevista ao Sul21 após o evento, ela defendeu esse ponto de vista ao falar da seletividade penal e da categorização racial por parte das polícias. “De uma perspectiva abolicionista, achamos que a responsabilização e reparação tem que ser pensadas de uma forma não punitiva”.

Um dos caminhos necessários para se acabar com a guerra às drogas, segundo ela, é justamente a legalização destas substâncias proibidas. “Legalizar garante uma regulamentação sobre a venda, cultivo, qualidade do que está sendo produzido, que a ilegalidade não garante. Pessoas muitas vezes estão usando qualquer outra coisa que não é maconha ou cocaína”, aponta. Ela vê, ainda, uma relação entre a falta de investigação de crimes contra a vida e a sensação de medo na sociedade, a qual dá respaldo para práticas violentas em nome da repressão.

Ela também tomou parte na campanha que defendia a eleição de Conceição Evaristo para a Academia Brasileira de Letras. A derrota da escritora negra, porém, não a surpreendeu. “Não posso dizer que estou surpresa pelo resultado, eu acho que a Academia Brasileira de Letras perdeu a oportunidade de ter a Conceição Evaristo lá. [Mas] Interessa-me mais que a Conceição seja popularizada, que esteja nas escolas, nas festas literárias, nos saraus”, afirma.

Confira a entrevista completa:

Sul21 – Você diria que a questão do encarceramento em massa está sendo mais discutida na sociedade brasileira nos últimos anos?

Juliana – Eu acho que está sendo mais discutida a segurança pública, porque existe esse sentimento de insegurança, de certa impunidade, então acho que precisamos disputar essa área. As pessoas têm um viés de pedir mais punição, acho que o debate não está ganho, longe disso. Temos estudos da criminologia crítica há muitos anos no Brasil, mas a discussão ganha mais corpo de 20 anos para cá, começamos a ter mais estudos. E agora, por conta da guerra às drogas, tráfico, militarização das favelas do Rio, UPP, isso acaba tomando uma maior proporção. Então as pessoas estão falando mais, mas eu tenho medo, acho que ainda temos que fazer muita disputa para essa discussão ter um tom progressista.

“Eu tenho medo, acho que ainda temos que fazer muita disputa para essa discussão ter um tom progressista” Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Essa questão da impunidade, como a sociedade brasileira ainda acredita que exista impunidade?

Juliana – Teve uma pesquisa alguns anos atrás em que se perguntou sobre a confiança das pessoas nas instituições, e confiança no Judiciário não foi alta. As pessoas têm uma ideia de que o Judiciário não penaliza como deveria. Eu sou abolicionista penal, tenho como horizonte estratégico uma sociedade sem prisões. Mas acredito que a sensação de segurança seria maior se tivéssemos mais investigações de crimes contra a vida. Muitas vezes são essas questões que indignam mais as pessoas, e não necessariamente o garoto que foi pego com 10 gramas de maconha ou cocaína. Então acho que muito por isso a sociedade fica com esse sentimento de que não tem punição. Inclusive para atender os interesses do sistema, que se alimenta do medo, da insegurança, não se efetiva o enfrentamento de crimes contra a vida, e ao mesmo tempo, há a relação com o patrimônio. Existe muito uma preocupação com o patrimônio, isso vai dando uma sensação de insegurança e medo, e por isso as pessoas vão dizendo que precisa prender mais, punir mais. E daí a sociedade vai dando respaldo a práticas cada vez mais violentas, de suposta repressão ao crime.

Sul21 – Você mencionou a questão da legalização das drogas e que legalizar apenas a maconha não solucionaria o problema da guerra às drogas. Qual a sua posição? Acredita que a descriminalização resolveria o problema?

Juliana – É, eu acho que a legalização só da maconha não resolve, porque daí o combate seria contra as outras drogas. Historicamente, o ser humano sempre usou substâncias que alteraram suas percepções. O uso do álcool reflete isso também. A diferença é que legalizar garante uma regulamentação sobre isso, sobre a venda, cultivo, qualidade do que está sendo produzido, que a ilegalidade não garante. Pessoas muitas vezes estão usando qualquer outra coisa que não é maconha ou cocaína. Para a discussão de redução de danos, é importante saber o que se está consumindo. Então, quando se fala de legalização, estamos debatendo a criação de toda uma rede, e quando se fala em descriminalização é um viés só liberal, do uso do indivíduo, fica aberto para continuarmos nessa situação em que fica na mão de um agente definir quem é usuário e quem é traficante.

Sul21 – Muito se critica que isso acaba criando situações racistas, que os jovens brancos são considerados usuários e os negros, traficantes.

Juliana – Tem muito isso, porque se cria uma visão de quem é o criminoso. Há pouco tempo teve, inclusive, uma declaração de um policial de São Paulo de que a abordagem no Higienópolis [bairro de classe média-alta] tinha que ser diferente da de uma comunidade, depois ele tentou arrumar, mas ficou muito explícito. Ou seja, na comunidade tem que ter uma ação mais repressiva, enquanto em bairros nobres, em que tem inclusive ‘disque-droga’, não tem nenhuma política de enfrentamento. Percebemos a seletividade. Mas claro, isso não tem que ser uma discussão do individuo, daquele coronel que foi racista, mas sim de uma instituição formada a partir de premissas que são racistas, são violentas. Óbvio que tem a responsabilidade do indivíduo, não é que não achamos que não precisa ter responsabilização, mas de uma perspectiva abolicionista achamos que a responsabilização e reparação tem que ser pensada de uma forma não punitiva.

Juliana também autografou livros dos participantes do evento | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Você pode falar um pouco mais dessa questão das reparações?

Juliana – A gente faz muito o debate das reparações quando vamos discutir o pós-abolição no Brasil, que foi basicamente “toma aqui tua liberdade”, e deu. O que tivemos foi uma reforma agrária para  garantir que as elites continuassem com poder, com propriedade em relação às terras, sem distribuição. Então, nos preocupa muito quando a gente vai discutir legalização, que está ligada a um processo que nos criminaliza, como comunidade, como população negra, e não pensar numa reparação para essas comunidades. Porque vidas foram perdidas, pessoas que poderiam produzir economicamente foram mortas, em idade ativa, de estar na universidade, de estar produzindo, quando se tira aquela vida se tira um potencial de produção de conhecimento, não apenas econômico. A discussão de reparações é muito nesse âmbito. Ainda não temos fechado o que tem que ser essa reparação, mas algumas propostas são bem interessantes. Para começar a pensar o que seria esse processo, precisamos estudar quais foram os impactos econômicos e numéricos, de quantas vidas foram ceifadas por causa dessa guerra às drogas, porque a gente sempre fala que dado às vezes desumaniza, mas é só a partir de dados que conseguimos produzir alguma política. Então precisaria ter um estudo de impacto da guerra às drogas na sociedade brasileira.

Sul21 – Tem como apontarmos os motivos do contínuo crescimento do encarceramento em massa no Brasil, enquanto em outros países ele diminui?

Juliana – O fenômeno do encarceramento em massa acontece a partir de 2006, depois da aprovação da chamada nova lei de drogas, que até teve um fundo positivo, que teve uma descriminalização dos usuários. Não significa que ele não vá responder, mas não vai ser penalmente, não vai ser preso. Mas quando você não regulamenta a partir de qual quantidade a pessoa vai ser considerada usuária ou traficante, fica mais complicado. Logo que a lei foi aprovada, alguns estudos mostram que houve uma diminuição das prisões, mas de pessoas brancas, e o aumento de prisões de pessoas negras. Quando não se regulamenta as quantidades, isso abre uma brecha. O sistema se articula muito rápido.

E também durante os anos 1990 e início dos anos 2000 tivemos muitas campanhas de combate ao uso das drogas, que fortaleciam a ideia do proibicionismo, então há uma pressão sobre o poder público para combater, porque estaria tirando os filhos e filhas do caminho, se falava em epidemia das drogas, quando na verdade o ser humano usa drogas desde que o mundo é mundo. O Estado acaba se retroalimentando, a sociedade acaba demandando uma repressão maior em relação ao tráfico de drogas. E quando se esvazia as polícias de condições de combater com inteligência o tráfico, essas polícias vão focar em pequenas apreensões, de pequenos traficantes, com quantidades sempre muito pequenas. Mas como não tem regulamentação, a pessoa acaba sendo presa, e é um crime que a pessoa não pode responder em liberdade. Acaba ficando presa, muitas vezes provisoriamente. Esse é outro problema no Brasil: as pessoas ficam anos e anos aguardando julgamento, e, em muitos casos, cumprem duas vezes a pena.

Sul21 – O aumento no número de mulheres presas desde 2006 também está relacionado a isso?

Juliana – Sim, porque as mulheres, em sua maioria, são presas por associação ao tráfico ou por tráfico, seja porque estavam fazendo transporte, existe agravante quando o transporte é para dentro de presídios. E temos que casar isso também com dados estatísticos do Brasil, que apontam que há um aumento cada vez maior de mulheres chefes de família, que precisam sustentar seus filhos. Algumas acabam recorrendo a esse expediente de trabalhar no varejo do comércio das drogas e acabam sendo presas por conta disso. Mas essas mulheres, em sua maioria, não estavam cometendo violência quando foram presas, o que é também um dado interessante.

“Algumas acabam recorrendo a esse expediente de trabalhar no varejo do comércio das drogas e acabam sendo presas por conta disso” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Em geral, a violência está mais associada ao masculino. Pode-se ver isso no âmbito da socialização masculina, que faz com que eles aprendam a ser mais violentos?

Juliana – Eu acho que sim, até porque também na economia das drogas existe uma divisão de gênero. As mulheres dificilmente vão ser soldados, elas vão trabalhar mais na venda, na comercialização, o que acaba tendo também impacto em como se dá essa prisão.

Sul21 – Mudando um pouco de assunto, você fez campanha pela vitória da escritora Conceição Evaristo a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Na quinta-feira foi anunciado que ela não foi escolhida, qual o sentimento após o anúncio?

Juliana – Não posso dizer que estou surpresa pelo resultado, eu acho que a Academia Brasileira de Letras perdeu a oportunidade de ter a Conceição Evaristo lá. Muitas vezes se pontua que é um espaço privado, sem fins lucrativos, mas eu sempre digo que ela é de interesse público, porque cabe à ABL resguardar a língua portuguesa, atualizar a língua, e tem uma responsabilidade sobre a produção literária no Brasil. Então não é por ser privada que ela não deve explicações à sociedade. Essa recusa de olhar as transformações da sociedade deixa a Academia talvez muito aquém do sonho que Machado de Assis teve quando pensou em formar uma Academia Brasileira de Letras. Mas eu acho que a conceição já está imortalizada em nossas mentes, acho que é o mesmo caso de Mario Quintana, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, autores que não fazem parte deste “panteão de imortais” da ABL mas que, sinto muito, eles estão no imaginário popular. Quem não sabe que “no meio do caminho havia uma pedra”, quem não cita “eles passarão, eu passarinho”, do Mario Quintana, mesmo sem estar na ABL? Interessa-me mais que a Conceição seja popularizada, que esteja nas escolas, nas festas literárias, nos saraus, e aí a história é implacável, eles que vão ficar para trás por perderem essa oportunidade.


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