Saneamento Básico|z_Areazero
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11 de outubro de 2019
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16:49

Tendência mundial: pelo menos 208 empresas de saneamento foram remunicipalizadas desde 2000 

Por
Sul 21
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Felipe Prestes

A abertura à iniciativa privada no setor de saneamento tem sido tendência no Brasil. No Rio Grande do Sul, há intenção de buscar parceiros privados tanto pelo Governo do Estado quanto pela Prefeitura de Porto Alegre, conforme o Sul21 mostrou em matérias anteriores desta série. Em outras partes do globo, a tendência é oposta. Pelo menos 208 empresas de saneamento foram remunicipalizadas desde 2000, em um total de 235 municípios, segundo levantamento feito em 2015 por cinco entidades internacionais – Transnational Institute (TNI), Public Services International Research Unit (PSIRU), Multinationals Observatory, Municipal Services Project (MSP) e European Federation of Public Service Unions (EPSU). 

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França, com 94 municípios, e Estados Unidos, com 58, foram os países em que mais ocorreram remunicipalizações, mas há casos em diversos países e em todos os continentes com exceção da Oceania. Na África, as capitais de Gana, Mali, Guiné, Tanzânia e Moçambique retomaram os serviços para o Poder Público, além de Johanesburgo, maior cidade da África do Sul. Na Ásia, há os casos de Almaty, no Cazaquistão; Jakarta, na Indonésia; e Kuala Lumpur, na Malásia. Na América do Sul, Buenos Aires, Bogotá e La Paz remunicipalizaram a atividade. Na Europa, os casos mais emblemáticos são de Berlim e Paris. 

“A razão principal é que os governos querem ter maior controle. Falta transparência sobre os mecanismos tarifários. Além disto, a gestão pública tem capacidade de reinvestir o recurso na melhoria dos serviços ou em políticas sociais”, afirma a professora da UFRJ Ana Lúcia Britto, coordenadora do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS). Recentemente, Britto entrevistou Benjamin Gestin, diretor geral da Eau de Paris, empresa pública criada em 2010, quando a Prefeitura de Paris decidiu não renovar o contrato com a concessionária privada que havia tocado o serviço de água e esgoto nos 25 anos anteriores. 

Em Paris, tarifa baixou após municipalização. Foto: CC

“O prefeito de Paris, na época, tinha a impressão de não saber mais o que faziam as empresas concessionárias, de não ter mais controle sobre um certo número de parâmetros da prestação de serviços, sobretudo sobre o parâmetro preço”, relatou Gestin. O gestor da Eau de Paris também contou que o valor da tarifa baixou 8% após a municipalização, e que, depois de dez anos, ficou 20% mais barato. A Eau de Paris também subsidia tarifas de famílias de baixa renda e possui uma rede de fontes públicas para atender à população de rua. 

Com base no levantamento internacional, a GO Associados – capitaneada por Gesner Oliveira, ex-presidente da SABESP – se debruçou sobre alguns dos casos mais emblemáticos no estudo “Remunicipalização dos Serviços de Saneamento Básico” e fez algumas objeções ao caso de Paris. “Apesar da vantagem de curto prazo proveniente da redução das tarifas de água, é possível perceber que estas foram acompanhadas de uma redução significativa nos investimentos pela companhia pública Eau de Paris. No ano de 2013, a empresa municipal investiu € 20,00/habitante, cerca de um terço da média nacional, e substituiu 0,2% da rede de água e esgoto. Mantida essa média, a troca da extensão completa da rede ocorreria em 500 anos, muito acima da vida útil da infraestrutura, que fica por volta de 50 anos para os equipamentos mais duradouros”, afirma o estudo. 

Em Berlim, a Prefeitura vendeu 49,9% da companhia de águas em 1999. O contrato garantia um lucro de 8% ao consórcio privado durante os 28 anos de vigência. O estudo da GO Associados relata que as controvérsias começaram já no entrada do setor privado, “uma vez que o presidente do Tribunal Constitucional do município, Klaus Finkelnburg, era sócio no escritório Finkelnburg & Clemm, contratado ao mesmo tempo pela municipalidade para desenhar o projeto de lei e pela companhia privada Vivendi para assessorar a transação”.

Um aumento tarifário de 15%, em 2004, aliado aos baixos investimentos, aumentou a insatisfação popular. Em 2011, um referendo foi feito para consultar a população sobre uma possível publicação do contrato entre Prefeitura e agentes privados, e 98% dos eleitores quiseram a transparência. Entre 2012 e 2013, Berlim recomprou as ações das empresas privadas, ao custo de 1,3 bilhão de euros, que serão pagos ao longo de 30 anos pelos usuários, com aumento nas tarifas. 

Em Buenos Aires, Em 2006, o Governo criou uma empresa com 90% de participação pública e 10% dos trabalhadores. Foto: CC

Em Buenos Aires, um consórcio de empresas europeias assumiu os serviços em 1993. O grupo não cumpriu as metas de investimentos e se endividou, passando a cobrar recursos do Governo argentino em tribunais internacionais. Em 2006, o Governo criou uma empresa com 90% de participação pública e 10% dos trabalhadores. A empresa tem feito os investimentos necessários para a expansão do tratamento de esgoto na capital argentina, com orçamento público, embora opere com déficit, segundo o estudo da GO Associados.  

Um dos casos que mais mostram como a busca por lucro pode ser nociva no serviço de saneamento ocorreu em Moçambique, onde o Governo fez uma PPP, em 1999, com a empresa privada Águas de Moçambique, controlada pela portuguesa Águas de Portugal para atender a capital Maputo e outras quatro grandes cidades do país africano. No ano seguinte, após uma grande enchente, a empresa portuguesa quis aumentar as tarifas para compensar suas perdas. 

Em Atlanta, nos Estados Unidos, a força de trabalho foi reduzida pela metade pela empresa privada United Water e a qualidade da água caiu drasticamente – frequentemente um líquido marrom fluía das torneiras e havia alertas para que a água fosse fervida antes de consumida. Em 2003, Prefeitura encerrou o contrato apenas quatro anos após assiná-lo (o texto previa 20 anos de serviços).   

“Onde o serviço é bem prestado, não vai ter essa dúvida”

O Brasil negligenciou durante muito tempo o saneamento básico, apenas o abastecimento de água era visto como prioridade. Para se ter uma ideia, até 2007, quando finalmente foi estabelecida uma política nacional para o saneamento, a Corsan tinha contrato de fornecimento de água com mais de 300 municípios gaúchos, mas apenas 43 possuíam contratos para esgotamento sanitário. A questão da falta de saneamento não era um problema de modelo público ou privado, pois sequer havia um modelo. 

Ana Lúcia Britto. Foto: USP Imagens

A partir do segundo governo de Lula investimentos vultosos começaram, chegando em alguns anos a R$ 14 bilhões. Parte disto não foi aproveitado. “Os investimentos nesse setor demoram mais”, destaca a professora da UFRJ, Ana Lúcia Britto. “É um prazo muito lento, não é como construir um condomínio do Minha Casa, Minha Vida”. Britto destaca ainda que “muitos recursos do PAC as obras não foram finalizadas, por má elaboração de projetos, questões ambientais e problemas de fiscalização da execução de obras”. 

“As décadas sem investimentos deixaram o setor desestruturado. Há municípios que não sabem fazer um projeto”, concorda o presidente do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos. O dirigente defende a entrada de investimentos privados. “Até 2014, 2015 o grande motor foi o investimento público, com o PAC, com FGTS. Isso foi caindo em toda a área de infraestrutura, e o setor de saneamento sofreu mais com isso. Não há mais fôlego nestes investimentos públicos. Há necessidade trazer gente nova para o setor”. 

Carlos ressalta que para o Instituto Trata Brasil – OSCIP formada “por empresas com interesse nos avanços do saneamento básico e na proteção dos recursos hídricos do país”, segundo descrito em seu site – não importa se os investimentos são públicos ou privados, desde que tenham resultados. “As cidades mais bem colocadas no nosso ranking têm empresas públicas de saneamento. Onde o serviço é bem prestado, não vai ter essa dúvida. Em Franca, onde a SABESP presta um ótimo serviço, ninguém vai discutir privatização. Em Uberlândia também. Agora, você pega uma cidade aí do interior do RS que está há 100 anos sem esgotamento, vai manter pública só pra ser pública? Tem que olhar o cidadão, o serviço tem que ser bom. E se for privada e não funcionar tem que sair também”, afirma. 

No Brasil, saneamento foi negligenciado por muito tempo, segundo analistas. Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Segundo o presidente do Trata Brasil, as empresas privadas já são responsáveis por 20% dos investimentos em saneamento no país, mesmo operando em apenas 6% das cidades brasileiras. Mas nem sempre esses investimentos se diferenciam tanto dos investimentos públicos, uma vez que são captados em bancos estatais e depois pagos com o dinheiro dos usuários, como em qualquer empresa pública. “O setor privado investe com recursos do FGTS e do BNDES, com juros baixos, e tem muito pouco de recursos privados. Há um mito sobre os investimentos privados”, afirma Ana Lúcia Britto. Há casos emblemáticos, como o que mostramos na matéria sobre o saneamento em Uruguaiana: a BRK Ambiental, maior empresa privada de saneamento do país, na verdade tem participação de 30% do Fundo de Investimento do FGTS. 

Alexandre Pessoa, professor da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, ressalta que no Rio de Janeiro já houve serviço privado de saneamento, por uma concessionária inglesa, que não atendia as cláusulas contratuais de expandir a rede. “Estão se tomando precauções para que isto não ocorra novamente?”, questiona. Para Pessoa, a falta de capacidade de gestão dos municípios pode afetar tanto os serviços públicos quanto os privados. “Temos que aumentar a capacidade de gestão dos municípios. Tem planos de saneamento de péssima qualidade. Tem que deixar muito claro os requisitos (para a entrada de uma empresa privada)”.  

O professor da Fiocruz também acredita que não é possível apostar todas as fichas na iniciativa privada. “O setor privado não dá conta da dimensão do déficit de saneamento do país. 

Temos regiões do país em que o setor privado não vai ter interesse”, ressalta. Além disto, diz que quando os governos se eximem de investir acabam gastando ainda mais. “Não ter recursos para saneamento significa que mais dinheiro será aplicado nas doenças adquiridas, é questão de prioridade”. 


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