Saneamento Básico|z_Areazero
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8 de outubro de 2019
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16:58

Privatização da água: Prefeitura de Uruguaiana cobra mudanças no contrato e multas por atraso

Por
Sul 21
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Foto: Prefeitura de Uruguaiana/Divulgação

Felipe Prestes

Em 2011, Uruguaiana foi a primeira cidade do Rio Grande do Sul a conceder os serviços de água e esgoto à iniciativa privada. A promessa era de universalizar o acesso a água, coleta e tratamento de esgoto em cinco anos. Passados oito anos, houve avanços, mas as obras não terminaram e a relação entre a cidade e a iniciativa privada azedou. Além dos atrasos, os problemas passam pela qualidade dos serviços e até mesmo suspeitas de corrupção. Vereadores chegaram a recomendar a quebra do contrato em 2017. 

Atualmente, Prefeitura, BRK Ambiental (empresa concessionária) e Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do RS (AGERGS) discutem um aditivo ao contrato de concessão. Em debate está o próprio reconhecimento da concessionária, uma vez que a concessão havia sido feita à Odebrecht Ambiental, que foi comprada em 2017 pela BRK. A Prefeitura aponta problemas na troca de empresa. E também pretende discutir outras questões neste aditivo, como o recebimento dos valores de multas aplicadas à concessionária, que chegam a R$ 30 milhões e melhorias nos serviços. 

As multas se devem ao atraso nas obras. O contrato previa universalização dos serviços em cinco anos, o que não ocorreu. A Prefeitura cobrou R$ 30 milhões pelos atrasos, mas nunca recebeu o dinheiro. A AGERGS concedeu um aditivo à concessionária, permitindo que o prazo para universalização passasse de cinco para oito anos. Porém, o prazo de oito anos também passou e a universalização ainda não chegou, embora tenha avançado. O esgoto coletado chega a 97% da população e o esgoto tratado a 85%. O restante do esgoto coletado ainda vai para córregos e deságua no Rio Uruguai, mas o índice já é bem mais alto que a média nacional de 52%. 

Além dos atrasos, a Prefeitura também reclama da qualidade da repavimentação das vias, após as obras da concessionária. “A gente constata que não são observados critérios técnicos na repavimentação. Algumas vias ficam com saliências. Em outras o asfalto cedeu”, afirma o secretário municipal de Administração, Ricardo San Pedro, que preside a comissão de fiscalização do contrato. “Estamos trabalhando em um aditivo que seja bom para a cidade. Nossa intenção é que a AGERGS faça uma reunião aqui na cidade, para obter sugestões de melhoria da comunidade. O aditivo anterior permitiu que a concessionária postergasse as obras, mas não tinha nenhuma contrapartida. A gente quer que neste aditivo quem saia vencendo seja a comunidade”.

O secretário conta que há lacunas no contrato, detalhes que precisam ser melhorados, como o prazo para repavimentação das vias. “O contrato hoje fala apenas em ‘prazo razoável’ para repavimentar após as obras. Nós queremos incluir o prazo de dez dias, recomendado pelo DNIT”, explica. Apesar das queixas, o secretário considera exitosa a experiência de conceder o saneamento básico à iniciativa privada. “Uruguaiana é uma cidade que se diferencia no cenário nacional”, afirma.  

Em nota enviada pela assessoria de imprensa, a BRK também comemora os resultados atingidos. “A concessão dos serviços à iniciativa privada garantiu um volume de investimentos que possibilitaram levar saneamento para milhares de uruguaianenses que, antes, não tinham acesso a serviços essenciais. Para se ter uma ideia, em 2011, apenas 8% da cidade contava com tratamento de esgoto e 13% não tinha sequer abastecimento de água. De lá para cá, R$ 168 milhões foram investidos e o resultado é que 100% da cidade conta com água e 97% já têm serviços de tratamento de esgoto. O reflexo na saúde é evidente: em 2011, o município registrou 2.375 casos de diarreia; em 2019 foram 109”, afirma a empresa. A nota, porém, confunde coleta e tratamento de esgoto. Os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento são de que o município trata 85% do esgoto. 

Comissão da Câmara vistoria trabalho da BRK. Foto: Câmara Municipal de Uruguaiana

Vereadores recomendaram quebra do contrato

Em 2017, vereadores da Comissão de Serviços Municipais fizeram um parecer sobre os serviços prestados pela iniciativa privada no saneamento. Recomendaram a quebra do contrato com a BRK Ambiental. “Ali no relatório a gente é muito claro: pela previsão que existia no contrato, eles tinham cinco anos para fazer o esgotamento e foram pedindo aditivos”, conta o secretário de Ação Social e Habitação, Elton da Rocha, que, à época, exercia o cargo de vereador e foi relator do parecer. 

Os vereadores da Comissão de Serviços Municipais encontraram regiões da cidade em que o esgoto começou a ser coletado mas, ao invés de ser levado à estação de tratamento, era jogado direto no Rio Uruguai. “E estavam cobrando dos usuários o tratamento de esgoto onde não havia”, conta o ex-vereador.  A atuação da agência reguladora também é alvo de queixas. “A AGERGS é muito defensora da empresa, o pagamento das multas não acontece, por decisões da agência”, afirma Elton da Rocha.

Para o secretário municipal de Segurança, Trânsito, Transportes e Mobilidade Urbana, José Clemente Corrêa, que presidia a Comissão de Serviços da Câmara na época do relatório, os números de extensão da coleta de esgoto são enganosos. “Esse argumento de que a cidade é saneada não é bem assim; ocorreram diversos problemas, até mesmo de o esgoto retornar para as casas; parte é coletado, mas atirado direto no Rio Uruguai, sem tratamento”. Ainda segundo o secretário, interrupções no abastecimento de água são frequentes. “Ontem mesmo (o secretário se refere ao dia 25 de setembro) interrompeu o abastecimento. Trinta mil pessoas ficaram sem água na Região Sul da cidade, por cerca de 18 horas; e assim tem ocorrido”. 

Em 2009, Clemente exercia o cargo de vereador e foi um dos poucos que votaram contra a concessão do serviço à iniciativa privada (o projeto foi aprovado por nove a dois). “Eu avalio (a concessão) como avaliei no dia 3 de fevereiro de 2009, quando votei na sessão, que começou às 9 da manhã e acabou às 3 da manhã. Era impossível cumprir o contrato em cinco anos”. 

Quanto às reclamações sobre a qualidade dos serviços, como as deformidades no asfalto, a concessionária dá uma resposta genérica. “A BRK Ambiental busca melhorar constantemente os serviços oferecidos e está em contato com o município e com a Agência Reguladora para garantir a melhor prestação de serviços para a população”, diz. 

As investigações que atingiram em cheio a Odebrecht também prejudicaram as atividades no Município. E trouxeram à tona que há suspeitas de corrupção em Uruguaiana. Em 2017, o ex-executivo da Odebrecht Paulo Welzel, em delação à Polícia Federal, afirmou que dez políticos do município da fronteira oeste teriam recebido verba de caixa 2 para campanhas eleitorais, com a finalidade de garantir os interesses da empresa no andamento do contrato de concessão do saneamento. O caso ainda está sob investigação. 

Foto: Prefeitura de Uruguaiana/Divulgação

Início do serviço privado teve tarifas mais altas

Embora siga dando dores de cabeça a políticos locais, a Odebrecht já não opera mais o serviço em Uruguaiana  A empresa vencedora da licitação, em 2011, se chamava Foz do Brasil, integrante do Grupo Odebrecht. Em 2014, seu nome mudou para Odebrecht Ambiental. E, finalmente, em 2017, a BRK Ambiental – do grupo canadense Brookfield – comprou a Odebrecht Ambiental, assumindo a operação do contrato de Uruguaiana, e, com ele, os problemas deixados pela empresa brasileira. Um detalhe curioso é que o sócio da BRK (desde a época da Odebrecht Ambiental) é o Fundo de Investimento do FGTS, que possui 30% da empresa. A expansão do saneamento em Uruguaiana (e em cerca de 180 municípios brasileiras) não é feita apenas com capital privado, mas também com capital dos trabalhadores brasileiros. 

Em fevereiro de 2018, a BRK previu, em nota enviada ao Jornal do Almoço, da RBS TV, que até julho de 2019 toda a cidade de Uruguaiana teria coleta e tratamento de esgoto  A promessa não se concretizou. “A maioria dos problemas veio da empresa anterior, e com esta empresa atual alguns serviços melhoraram, mas a gente não entende como empresa anterior e empresa posterior. Para nós, é o mesmo contrato, que não foi cumprido. E a empresa mudar várias vezes o nome, razão social, é uma questão também que apontamos no relatório”, explica Elton da Rocha. 

“Elas se transferem responsabilidades”, corrobora o secretário municipal de Segurança, Trânsito, Transportes e Mobilidade Urbana, José Clemente Corrêa. O serviço também seria ruim na repavimentação das vias, após a realização de obras. “O asfalto não fica a mesma coisa”, garante o secretário. 

Outra reclamação diz respeito às tarifas – “exorbitantes”, segundo Clemente. Ocorre que, quando a Prefeitura tentava convencer vereadores e a comunidade dos benefícios da privatização, argumentava que os valores de tarifa do serviço privado seriam mais baixos que os cobrados pela Corsan. Logo que a Foz do Brasil assumiu o serviço, porém, já na primeira tarifa muitos usuários pagaram um valor maior. A empresa cobrava um consumo mínimo de 10 metros cúbicos. Quem quer que consumisse menos, pagava o equivalente a este montante. Com a mobilização da população, foi feito um aditivo ao contrato, e a concessionária passou a aplicar um desconto nas tarifas, que se mantém até hoje.

Foto: Prefeitura de Uruguaiana/Divulgação

A BRK Ambiental afirma que “toda a política tarifária é acompanhada pela Agência Reguladora dos Serviços e, hoje, a tarifa praticada pela empresa é menor do que aquela cobrada pela empresa estadual. A BRK conta também com um programa de tarifa social, destinado às pessoas de baixa renda. Para isso, é necessário que o morador seja cadastrado nos programas de benefício do Governo Federal”. 

Para o diretor de divulgação do Sindiágua, Rogério Ferraz, a tendência é a tarifa aumentar em Uruguaiana. Ferraz explica que a BRK ainda cobra no município o mesmo percentual para o esgotamento que a Corsan, de 70% sobre o consumo de água (se a pessoa consome R$ 100 de água, paga R$ 70 de esgoto, por exemplo) mas que em outras cidades do país esse valor é maior. “A BRK cobra em outras cidades até 100%. Isto só não ocorreu em Uruguaiana porque até hoje a empresa privada não teve sossego, há pressão na imprensa, na Câmara, audiências públicas. Eles não têm espaço político para subir a tarifa. Mas no momento em que houver ambiente político, a tarifa vai subir”. 

Um dos responsáveis por esta pressão sobre a concessionária, José Clemente Corrêa acredita que a melhor solução para o município de Uruguaiana teria sido uma repactuação com a Corsan. A cidade se sentia prejudicada pelo subsídio cruzado, ou seja, quando recursos dos usuários da cidade da fronteira oeste eram utilizados para obras em outras partes do Estado. “O subsídio cruzado poderia ter sido solucionado. Com as deficiências que se tinha a Corsan investiu R$ 66 milhões em Uruguaiana. Poderia não ter alcançado o mesmo índice de expansão que a iniciativa privada, mas pelo menos próximo”. 


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