Saneamento Básico|z_Areazero
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12 de outubro de 2019
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17:22

Educação, saúde, emprego: como o saneamento e a falta dele afetam as pessoas 

Por
Sul 21
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Comunidade Fazendinha, no bairro Restinga. Foto: Luiza Castro/Sul21

Felipe Prestes

Localizada em área ocupada, a comunidade Fazendinha, na Restinga, existe há 20 anos e o esgotamento sanitário ainda não chegou por lá. Logo na primeira via em que ingressamos um pequeno filete d’água cava um sulco na rua de chão batido e vai descendo ladeira abaixo. A água sai de um fino cano de PVC vindo de uma das casas da comunidade. “No verão, imagina o cheiro”, reclama João, morador local. 

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Ao contrário do vizinho que despeja o esgoto na frente de casa, João e a esposa Geneci fizeram complexas obras. Os dejetos vão para uma fossa no terreno de casa e, de lá, para um córrego que fica em outra rua da comunidade. Foi preciso pedir autorização aos vizinhos para enterrar dezenas de metros de canos até o córrego. “Saneamento faz falta, é uma necessidade. Nunca seca rua nenhuma”, conta Geneci.

João e Geneci. Foto: Luiza Castro/Sul21

O casal mora há nove anos no local e só recebeu água no ano passado. “Uma água boa, uma água forte”, elogia João. Antes era preciso buscar água em comunidades próximas, pedindo aos moradores. Um constrangimento. Já o esgoto, “dizem que vem, mas não tem data, nem tem hora”. 

Outro problema é que o caminhão de lixo não entra na Fazendinha. João e Geneci levam o lixo até local onde há o serviço, mas nem todo vizinho consegue fazê-lo. “Terrenos vazios acabam virando lixão, e com isso vêm os ratos”, conta João. 

Descendo uma quadra, encontramos o pequeno córrego para onde flui o esgoto despejado por João e Geneci e por boa parte da vizinhança. Guilherme da Silva Salazar, morador do local, limpa o riacho com as mãos nuas, sem qualquer proteção. Retira folhas de árvores e lixo. “Se eu não tiro, transborda”, explica. Mas nem sempre a limpeza funciona. “Quando chove, alaga tudo”. 

Cristiane da Silva Monteiro. Foto: Luiza Castro/Sul21

Crianças brincam próximo ao córrego e cachorros bebem de sua água. “Às vezes as crianças têm febre, bronquite, porque é muita umidade. Para nós, se entrasse esgoto seria maravilhoso”, diz Cristiane da Silva Monteiro, com uma criança no colo. 

“É muito preocupante porque essas crianças há um ano ou dois atrás tiveram problemas sérios de pele. Aí essas crianças têm que ser privadas de ir à aula, porque também os pais das outras crianças ficam com esse preconceito. A nossa preocupação com a falta de saneamento básico é principalmente com as epidemias, proliferação de insetos, tudo o que envolve a saúde. As crianças estão brincando no lodo, misturado com água suja, todo tipo de sujeira”, diz a líder comunitária Cláudia Maria da Cruz, que é moradora da 5ª Unidade, onde fica Fazendinha, e integrante da Comissão Regional de Assistência Social da Restinga. 

Cláudia conta que na região foram assentadas pessoas de várias antigas ocupações. Com a regularização destas pessoas, outras ocupações surgiram. “O pessoal começou a ocupar ali porque entendia que, de repente, o Governo ia legalizar a situação. Então há 20 anos o pessoal vinha sem ter água, e aí a 5ª Unidade tem muitas situações diferentes, de pessoas que se organizam de formas diferentes. A gente tentou há alguns uns anos fazer uma reunião para eles se empoderarem e saberem quais eram os direitos e eles mesmo se organizarem e buscarem esses direitos, essas conquistas. Às vezes é tão pouquinho o que eles conquistam, mas para eles tem tanto valor. Como um morador disse ali ‘agora tá muito bom, agora temos água’… Tem água há um ano, mora ali há quase nove. É bem complicado quando tu vês que a sociedade civil tem que lutar pelos seus direitos, não é a gestão que olha para a comunidade”. 

Cláudia Maria da Cruz. Foto: Luiza Castro/Sul21

A líder comunitária critica a falta de diálogo da atual gestão da Prefeitura. “Não existe hoje uma política séria de habitação. A atual gestão municipal nem sequer busca receber os representantes, seja de movimentos, seja de associações. Tudo é uma luta, tudo é motivo para ele achar que nós estamos impondo alguma coisa. Não, a gente quer buscar uma solução”. 

A assessoria de imprensa do DMAE explica que não é permitido ao órgão realizar melhorias em áreas irregulares, com exceção do abastecimento de água, por uma questão humanitária. Estas áreas precisam passar pelo processo de regularização fundiária para terem acesso aos demais serviços. “Em março de 2018 o DMAE entregou a implantação de rede de água provisória do Programa Consumo Responsável na região. O Consumo Responsável foi criado para atender áreas irregulares de Porto Alegre, para que as famílias não fiquem sem acesso à rede de água potável ou utilizando fontes não confiáveis e ligações clandestinas. O Programa também realiza, antes, durante e após o período de implantação da obra, um trabalho social na comunidade, com educação ambiental e sanitária, realizando palestras técnicas, visitas orientadas e eventos socioambientais. Quanto à instalação de rede de saneamento, ela só é realizada em conjunto com pavimentação e drenagem da região, por questões estruturais e de manutenção. As demandas de comunidades irregulares normalmente são encaminhadas via Orçamento Participativo ou Centros de Relações Institucionais Participativos (CRIPs)”, explicou o departamento, por meio de nota. 

Em Viamão, córrego recebe esgoto e alaga casas 

Um córrego corta ao meio as quadras do Bairro Santo Onofre, em Viamão, passa por canos  embaixo das vias de chão batido e vai recebendo o esgoto das casas. Quando chove, este córrego sobe e invade ruas e residências. “É um deus nos acuda”, conta a moradora Franciele Contalato. “A minha casa já alagou umas quatro vezes”, diz. Os alagamentos dificultam a ida de crianças à escola, ressalta. O pai de Franciele, Lauvir, acrescenta: “Quando chove vira uma lagoa”. 

Em Viamão, no bairro Santo Onofre, córrego recebe esgoto e alaga casas. Foto: Luiza Castro/Sul21

“Todo mundo larga (o esgoto no córrego). Isso é um pecado. Quando eu vim morar aqui, há 30 anos, era a coisa mais linda esse riacho”, relembra Vilson de Moura, que mora ao lado do curso d’água. “Rato tem bastante”, conta. Vilson não tem boas expectativas quanto à chegada do verão. O mau cheiro do riacho aumenta muito nessa estação. 

Anderson Medeiros Rodrigues também mora, há oito anos, em uma casa à beira do riacho – junto com esposa, sogra, filho e enteada – e conta que os próprios moradores já se cotizaram para pagar a limpeza do córrego com uma retroescavadeira. A preocupação maior é com as crianças. “A gente tenta limpar o máximo que dá”. Apesar de haver serviço de coleta, há muito lixo no riacho, o que pode impedir a passagem da água. 

Anderson Medeiros Rodrigues também mora, há oito anos, em uma casa à beira do riacho. Foto: Luiza Castro/Sul21

Procurada, a Corsan não respondeu até o momento do fechamento da reportagem se tem previsão de obras de saneamento no bairro Santo Onofre para que a população não precise mais despejar esgoto no riacho. 

Saúde, educação e até salário melhoram com saneamento 

Segundo o marco regulatório brasileiro, o saneamento básico compreende o abastecimento de água potável, o esgotamento sanitário, a limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, e a drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. Fora a água potável, muito pouco está assegurado nas áreas periféricas de Porto Alegre e região. 

Comunidade Fazendinha, no bairro Restinga. Foto: Luiza Castro/Sul21

Uma vez assegurado, o saneamento básico vai gerando benefícios em cadeia. Começa com a saúde, passa por melhor desempenho na educação e, consequentemente, no mercado de trabalho. “O primeiro impacto visível é a redução de doenças e essa melhoria traz ganhos na educação, a criança falta menos à aula, está mais disposta. Então, em regiões com saneamento o salário costuma ser melhor, porque as pessoas se desenvolvem mais. Há ainda ganhos óbvios, como o turismo”, relata o presidente do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos. 

“A primeira questão importante é que saneamento deve ser considerado um direito humano”, afirma o professor da Fiocruz Alexandre Pessoa. “Percebe-se que o direito ao saneamento no país ocorre de forma distinta com relação a renda, cor da pele e escolaridade”, acrescenta. 

A lista de benefícios do saneamento para a saúde é extensa. Acúmulo de lixo e de água da chuva são ambientes para a proliferação de insetos, assim como o lixo atrai roedores. A necessidade de armazenar água limpa pela falta de fornecimento também faz com que mosquitos se proliferem nas residências. O esgoto a céu aberto também é ambiente propício para proliferação de diversas doenças. 

Segundo a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) o fornecimento contínuo de água de boa qualidade assegura a redução e controle de diarreias, cólera, dengue, febre amarela, tracoma (uma inflamação ocular causada por bactéria), hepatites, leptospirose, esquistossomose, malária, entre outras doenças. A coleta regular, com destino adequado, de resíduos sólidos diminui a incidência de casos de peste, febre amarela, dengue, toxoplasmose, leishmaniose, cisticercose, salmonelose, teníase, leptospirose, cólera e febre tifóide. O esgotamento sanitário contribui para diminuição de casos de malária, diarreias, verminoses, esquistossomose, cisticercose e teníase.

Comunidade Fazendinha, no bairro Restinga. Foto: Luiza Castro/Sul21

A falta de saneamento afeta a mortalidade infantil e a expectativa de vida no Brasil. Em locais com abastecimento regular de água, como ocorria na ocupação Fazendinha até março do ano passado, a população costuma armazenar grandes quantidades de água limpa, ambiente ideal para a proliferação de mosquitos como o Aedes Aegypti. Em 2016, o país registrou crescimento na mortalidade infantil pela primeira vez desde a década de 1990, e o Ministério de Saúde atribuiu este fato à emergência do zika vírus. 

Enquanto os recursos para o saneamento escasseiam, Alexandre Pessoa ressalta que seria mais barato investir neste serviço. Portanto tal raciocínio por parte dos governos não se sustenta. “Saúde não se trabalha no modelo hospitalocêntrico, isso é um fato. É muito mais barato trabalhar com prevenção”, afirma. “As políticas de austeridade agudizam o problema”, ressalta. 

Um estudo do Departamento de Informática do SUS (DATASUS) contabilizou 340 mil internações por infecções gastrintestinais em todo o país em 2013. O levantamento estima que “se 100% da população tivesse acesso à coleta de esgoto, esse número cairia para algo em torno de 266 mil representando uma redução, em termos absolutos, de 74,6 mil internações”. Segundo o DATASUS, isto traria uma economia de R$ 27,3 milhões. Se considerarmos que obras de saneamento geram um benefício perene, a economia é muito maior. E o mais importante: 2.135 pessoas morreram em decorrência destas infecções e este número poderia cair a 1.806 casos, “numa redução de 329 mortes (15,5%) se houvesse acesso universal ao saneamento”.

Em um artigo feito por pesquisadores da UFRGS e da Prefeitura de Gravataí foi mapeada a ocorrência de  doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado (DRSAI) na Região Metropolitana de Porto Alegre entre 2010 e 2014. Foram identificadas 13.929 internações no SUS por estas doenças, resultando em 309 mortes. Mais de 20% destas internações foram de crianças de 1 a 4 anos de idade. Os custos para o Poder Público foram de mais de R$ 6 milhões. 

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que para cada dólar investido em saneamento se economiza 5,5 dólares em saúde. O estudo incluiu os gastos em saúde, e também custos relacionados à perda de produtividade e de tempo – na coleta de água longe de casa, por exemplo – e deixou de fora os ganhos com aumento do nível educacional, dos salários e valorização de imóveis, entre outros. 

“É um número meio cabalístico”, critica a professora da UFRJ Ana Lúcia Britto, coordenadora do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS). Ainda assim, é taxativa: “Saneamento é um serviço tão essencial quanto educação e saúde”. 

Fotos:

Comunidade Fazendinha, no bairro Restinga. Foto: Luiza Castro/Sul21
Comunidade Fazendinha, no bairro Restinga. Guilherme da Silva Salazar. Foto: Luiza Castro/Sul21
Comunidade Fazendinha, no bairro Restinga. Guilherme da Silva Salazar. Foto: Luiza Castro/Sul21
Fazendinha. Foto: Luiza Castro/Sul21
Viamão, no bairro Santo Onofre. Foto: Luiza Castro/Sul21
Viamão, no bairro Santo Onofre. Foto: Luiza Castro/Sul21
Em Viamão, no bairro Santo Onofre, córrego recebe esgoto e alaga casas. Foto: Luiza Castro/Sul21
Viamão, no bairro Santo Onofre. Foto: Luiza Castro/Sul21

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