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27 de agosto de 2017
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21:48

Mulheres da TI contam histórias de machismo e como vêm conquistando seu espaço

Por
Sul 21
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Isabella pesquisa sobre Javascript, algoritmos de aprendizagem e novas tecnologias, além de trabalhar em uma agência | Foto: Giovana Fleck/Sul21

Fernanda Canofre

Isabella Silveira de Souza conta que se preparou bastante para o primeiro evento de tecnologia da informação em que participaria como palestrante. Trabalhando na área de TI desde 2010, ela só falou diante de um público há dois anos. Com um currículo de alguém que ajudou a desenvolver o sistema de gestão acadêmica da UFRJ, atendeu clientes como o Banco Votorantin, a Universidade de Stanford e o Grupo Estadão, além de ser pesquisadora de Javascript e algoritmos de aprendizagem, Isabella subiu ao palco com bagagem de veterana, apesar de ter menos de 20 anos. Os comentários nas redes sociais, no entanto, foram sobre tudo, menos seu currículo. “Ah, legal a palestra, mas com a palestrante gatinha assim, dá para prestar atenção em qualquer coisa”, escreveu um usuário do Twitter.

“Nenhum tinha a ver com o que eu estava apresentando. Você fica frustrada na hora, mas ao mesmo tempo dá aquela raiva que faz insistir e continuar pra ver se algo muda. Ninguém chega na palestra de um cara e diz: ‘nossa, como você é musculoso’. É sempre: ‘nossa, como você é inteligente, que conteúdo foda’”, diz. Aos 22 anos, ela foi uma das palestrantes escaladas para falar na versão brasileira do maior evento de Javascript do mundo, o Brasil JS, que aconteceu este fim de semana em Porto Alegre. 

A história de Isabella é apenas mais uma, longe da exceção, do quanto o meio da TI ainda é muito masculino e machista. Segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (Pnad), realizada pelo IBGE no ano passado, no Brasil, apenas 20% dos 580 mil profissionais atuando na área são mulheres. Nos Estados Unidos, o número chega a 25%. Enquanto no Facebook, as mulheres ocupam 31% dos postos de trabalho, no Google, Apple e Twitter, gira em torno de 30%. Quando se pensa em mulheres em cargos de chefia nas gigantes da TI, raros casos, como Sheryl Sandberg, chefe executiva de tecnologia do Facebook, vêm à mente.

O que acaba afetando meninas que nem pensam em entrar na área, por acreditarem que não é seu lugar. Isabella conta que ela mesma caiu de paraquedas em um curso técnico de informática, quando começou a estudar em uma escola federal e precisou preencher uma opção de ensino técnico. “Se eu tivesse que escolher conscientemente uma área, não teria escolhido essa. Se eu não vejo alguém como eu, sendo bem sucedida em alguma coisa, o que me faz achar que eu vou conseguir?”, explica. 

No curso de Ciências da Computação, na UFRJ, para onde seguiu depois da escola, de cada 50 alunos, três eram meninas, segundo ela. O ambiente acadêmico também não era nada acolhedor. Ouvir professores dizendo que o “o semestre seria difícil”, depois de encontrarem meninas na sala, era algo recorrente. Nos laboratórios, na frente das alunas, muitas vezes eles pediam que chamassem “fulano” para resolver algo, sem dar chance à elas. Os casos de assédio sexual também eram comuns. Isabella mesmo conta que ouviu comentários sobre sua aparência e decote da blusa, vindos de docentes, algumas vezes.

Isso pesou na decisão de largar o curso antes da conclusão. Assim como acontece com 79% das mulheres que começam cursos de TI no Brasil, segundo o Pnad 2016. “Você não se sente muito bem-vinda e/ou respeitada lá dentro. No trabalho, eu também passei por isso, você tem que se provar muito mais, tem que fazer a mesma coisa cinco vezes, para mostrar que você sabe fazer. Para confiarem, pra colocarem uma responsabilidade na sua mão. Você sabe que não é bem-vinda ali”, conta ela.  

Uma mulher trans na TI

Evelyn começou a trabalhar na área em 1998 e é uma ativista pelo espaço das mulheres no setor | Foto: Giovana Fleck/Sul21

Se para as mulheres cisgênero, trabalhar na área exige persistência, para uma mulher trans a carreira é na base da insistência pura. Evelyn Mendes, de 43 anos, sabe disso melhor do que ninguém. Fã de Isaac Asimov e Star Trek, ela se interessa pela área de exatas desde criança. A série de ficção científica mais famosa da TV, unia o que mais gostava de fazer com seu jeito de ver o mundo. “Era um mundo utópico onde tu tinha dentro de uma nave, na época da Guerra Fria, um russo, uma negra, um alienígena. Eu gostava daquilo, porque era uma coisa que eu me sentia bem olhando”, conta.

O trabalho com TI começou, em 1998, quando era operadora de áudio em uma grande rádio de Porto Alegre, onde ela convertia as gravações do formato analógico para o digital. Na mesma época, uma amiga jornalista pediu ajuda para criar um site, e Evelyn resolveu seguir de vez os caminhos da programação. Se inscreveu em cursos de Javascript, programação, webdesign, em todas as salas encontrava a mesma cena: ambientes ocupados exclusivamente por homens. “É um meio muito masculino e muito medroso com relação a mulher. A mulher, quando sai da faculdade, já sai com mais conhecimento, porque ela teve que se provar durante todo o curso”, analisa ela.

Evelyn começou sua transição há quatro anos, quando já era conhecida na área e tinha uma carreira sólida. Nem por isso foi fácil. Depois de passar por uma série de constrangimentos, ela começou a evitar idas a eventos. Há um ano, quando saiu de uma empresa que dizia que ela tinha “conduta difícil”, embora os colegas é que nunca tenham conversado com ela, ela percebeu isso de forma ainda mais forte.

“Para mulher cis, eles até dão resposta. Mas para mulher trans…”, diz, sem precisar completar a frase. Para testar sua teoria – e evitar a experiência de ser dispensada depois de um longo processo de avaliação – Evelyn passou a anexar ao seu currículo, em um site de ofertas de empregos para a área de TI, uma nota onde dizia que era uma mulher trans e que, se isso fosse um problema, poderiam desconsiderar sua candidatura. “Funcionou que foi uma maravilha. Nunca me responderam. Na hora que tu diz que é transexual, acabou”.

Se o cenário de que apenas 20% dos cargos de TI são de mulheres, em um universo de 580 mil trabalhadores, ao tentar lembrar do número de mulheres trans que conhece no meio, Evelyn não consegue encher os dedos de uma mão. Lembrou de apenas quatro mulheres, espalhadas pelo país, que ela conheceu em encontros e pela internet. “É muito pouco, quase nada”.

Diversidade vs. realidade

Aline conta que nos primeiros eventos em que participava, sempre perguntavam quem ela estava acompanhando | Foto: Giovana Fleck/Sul21

Enquanto muitas empresas têm abraçado a pauta da diversidade e prometido mudanças nos quadros, as mulheres que trabalham na área, dizem que a realidade não é bem assim. Em abril, o site Motherboard  reportou com exclusividade um manifesto anti-diversidade que estava circulando dentro do Google, escrito por um funcionário. No texto, ele se posiciona contra o programa de diversidade da empresa e diz que as mulheres são minoria no setor, não por uma questão de discriminação, mas por questões psicológicas que definiam as diferenças entre homens e mulheres.

“Temos que parar de acreditar que a diferença entre o gênero é sexismo”, argumentava ele. O texto vazou na mesma época em que o Ministério do Trabalho, dos Estados Unidos, conduzia uma investigação no Google, por pagar às mulheres salários menores que a seus pares masculinos, em funções equivalentes.

Por experiência própria, Evelyn diz que os programas de diversidade quase nunca refletem inclusão. “Eles falam que fazem, mas não fazem nada. Quando a pessoa entra [na empresa], não pode reclamar. O máximo que fazem é deixar usar o banheiro feminino”, conta ela. “Uma amiga minha fez o melhor teste de avaliação que a empresa já havia recebido. Ela foi chamada pela equipe de recursos humanos, porque acharam curioso uma mulher ter se saído melhor do que qualquer um. Em seguida, disseram que não iam poder contratá-la, porque os guris não iam aceitar uma mulher no time”.

Os lembretes de que os espaços de TI não são para as mulheres são frequentes e estão em todo lugar. Fora salas de aula e ambientes de trabalho, os próprios eventos organizados para quem trabalha no setor não fazem questão de parecer o contrário. Mas há uma onda que tenta reverter o quadro.

Aline Bastos, desenvolvedora front-end, participa do Brasil JS desde 2012. “Nos primeiros Brasil JS, eu vinha sozinha. Conhecia as pessoas pela internet, a gente combinava de se encontrar por aqui, mas eu vinha sozinha. Algum cara sempre parava, olhava pra mim e dizia: tu veio com quem? Como se eu não pudesse fazer parte da comunidade, tivesse que ser ‘namorada de alguém’”, lembra ela.

Hoje, Aline ajuda a montar a programação de palestrantes do evento e ajuda a pensar na diversidade, a partir de um grupo criado em uma rede social para discutir a questão. “A gente ouve muito o que a comunidade pede, quais são as demandas e tenta fazer um equilíbrio. Quando a gente faz um evento e só tem homem branco palestrando, a gente vai ouvir reclamações. Nosso papel é mostrar para outros organizadores que sim, é possível, fazer um evento de tecnologia com uma grade diversa”, conta Jaydson Nascimento Gomes, um dos organizadores do evento.

Carol também teve experiências machistas na faculdade e em eventos, mas é de uma geração que sente as coisas mudarem | Foto: Giovana Fleck/Sul21

A geração mais jovem, também parece estar sentindo algo mudar. Palestrante do Brasil JS,  Carolina Pascale Campos, conta ter enfrentado as mesmas dificuldades que as colegas. Quando entrou na faculdade de Ciências da Computação, na UFSCar, em Sorocaba, na turma de 70 pessoas, encontrou oito meninas. Logo no primeiro ano, quatro desistiram. O tempo em que Carol teve que trabalhar com uma bolsa de iniciação científica, em um laboratório, também foi difícil. Ela se viu muito mais cobrada que os colegas. A experiência de Carol, no entanto, anda entre a exceção e a regra.

Filha de um desenvolvedor, ela cresceu curiosa e aprendendo com o pai, que nunca disse que aquilo não era coisa de menina. Quando arrumou o primeiro estágio, no ano passado, entrou em uma empresa onde, apesar de ser a única mulher entre sete homens, sempre tem incentivos dos colegas para apresentar trabalhos e abraçar iniciativas que convidem mais meninas para a TI, como o Rails Girls – iniciativa internacional que tenta passar os passos básicos de tecnologia para meninas, com edições em várias cidades.

“Meus colegas são incríveis, mas eu só estou rodeada por homens, homens, homens. A mesma coisa que na faculdade. Então, comecei a perguntar onde estavam as mulheres e comecei a ir em eventos para procurar”, conta Carol. “É outra vibe, você entra e já se sente bem, se sente acolhida, não tem medo de perguntar ou falar qualquer coisa. Você entra e se sente incluída. Em outros eventos, você pensa em como vai vencer barreiras e falar com as pessoas”.

Iniciativas assim estão ajudando as mulheres a vencer os tabus dentro da TI. Há vários grupos e projetos dedicados a discutir tecnologia só entre mulheres, surgindo pelo país. Evelyn, por exemplo, também participa do Rails Girls e criou o Projeto Devas, em que recebe mulheres na própria casa para ensinar sobre programação. Isabella conta que há um mês palestrou em um evento do tipo, só para meninas, e teve um público de 70 garotas. Um número muito maior do que esperava e do que teria visto há alguns anos, de acordo com ela. Sororidade é a palavra chave delas.

“Não é possível que não haja tantas mulheres capazes, quanto o número de homens, cis e brancos. Essas coisas não são fatores decisivos. Sempre que se tem um grupo diverso de pessoas, você vai ter um produto muito mais completo, porque tem pontos de vistas diferentes pensando na mesma coisa”, diz Isabella.


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