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20 de novembro de 2015
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20:54

Especial FSM – 2004: O ano em que o Fórum foi à Índia

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Sul 21
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Fórum realizado na Índia foi o primeiro a sair de Porto Alegre | Foto: Raju Bhagwat, World Vision
Fórum realizado na Índia foi o primeiro a sair de Porto Alegre | Foto: Raju Bhagwat, World Vision

Todas as sextas-feiras, o Sul21 publica a série de artigos relembrando os 15 anos do Fórum Social Mundial. Toda semana relembraremos uma edição e seus momentos mais marcantes. O próximo FSM acontecerá em agosto de 2016, no Canadá, mas para celebrar a data, a cidade de Porto Alegre receberá uma edição comemorativa entre os dias 19 e 23 de janeiro de 2016.

Fernanda Canofre

Depois de três anos consecutivos em Porto Alegre, em 2004, pela primeira vez, o Fórum Social Mundial estava pronto para migrar. O destino foi escolhido ainda durante o evento de 2003. Deveria ser um local que possibilitasse a inclusão daqueles que não tiveram possibilidade de estar ao sul da América do Sul nos últimos anos. E assim, chegaram à Índia.

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“A decisão baseou-se no papel estratégico da Índia na região além das configurações de movimentos sociais e sindicatos”, conta Sérgio Haddad, então presidente da Abong, que esteve envolvido na organização do FSM desde o início. “Tomada a decisão, fomos, um grupo de três pessoas, ‘visitar’ a região e, através de reuniões com representantes da sociedade civil local, apresentar a ideia, discutir a carta de princípios e repassar nossa experiência organizativa. A decisão de fazer o Fórum foi assumida por eles, além de todo processo organizativo, inclusive a decisão de escolher Mumbai como local do evento”.

Naquele ano, com a guerra do Iraque completando o primeiro aniversário, o movimento anti-globalização marchava com cada vez mais intensidade no mundo. Em Seul, na Coréia do Sul, um protesto contra o Fórum Econômico em Davos chegou a reunir 15 mil pessoas nas ruas. A ida para a Ásia e poder se aproximar das pessoas que não haviam chegado ao debate nas edições anteriores era uma forma de “globalizar” a própria discussão. Mas também era mais do que isso. Como o jornal britânico The Guardian destacou, em 2004, “o FSM conseguiu superar seu desejo de ir além dos protestos anti-globalização e ‘oferecer propostas específicas, para buscar respostas concretas aos desafios de construir ‘outro mundo’, um onde a economia iria servir às pessoas, e não o contrário”.

Há divergências entre pesquisadores sobre o número de participantes presentes no FSM 2004. Os índices mostram que, durante os cinco dias de evento, entre 70 mil e 100 mil pessoas estiveram reunidas no local de uma antiga fábrica, em Mumbai para debater as possibilidades de um novo mundo. Milhares de pessoas vindas de 117 países, representando 1.653 organizações, em 1.202 eventos auto-organizados. Além disso, como recorda Haddad, houve o diferencial da mobilização artística, marca cultural da Índia, acontecendo todo o tempo durante as conferências e nos intervalos. Segundo ele, 150 peças de teatro de rua tiveram seu espaço nas avenidas dentro do Fórum. “Houve também um festival de filmes com mais de 85 títulos sobre os principais temas do FSM”, conta.

O bloco de todos

Arundhati Roy no programa Democracy Now | Foto: Reprodução
Arundhati Roy no programa Democracy Now | Foto: Reprodução

A diversidade esteve nos debates – que envolveram temas desde o Banco Mundial e FMI (Fundo Monetário Internacional) até privatização da água e proteção de crianças – e em todas as vozes que conquistaram seu espaço. E foram muitas. Sérgio Haddad estima que pelo menos 60 mil participantes do Fórum eram indianos. Coletivos, organizações, civis que nunca teriam suas vozes ouvidas por uma comunidade internacional, ali encontraram uma plataforma para falar do mesmo nível de nomes conhecidos como Eduardo Galeano ou Noam Chomsky.

Apesar de em anos anteriores ter contado com a presença de conferencistas vindos da Ásia e da África, o Fórum em Mumbai pode lançar luz à voz de ativistas destas regiões. Sandeep Chachra, diretor da ActionAid India, em um comentário para a BBC notou que era “a primeira vez que o Fórum tinha uma grande participação africana e que HIV/aids estava discutido em várias plataformas”. “Eles dividiram uma plataforma, entre todas as suas diferenças, para debater questões como direito à terra e habitação, fundamentalismo religioso, etnias e questões sobre grupos excluídos como deficientes, trabalhadores sexuais, crianças de rua, aqueles vivendo com fome crônica, pessoas soropositivas, “intocáveis” e membros de tribos”, escreveu ele.

O site Democracy Now, por exemplo, destacou a fala de Arundhati Roy, autora de “O Deus das pequenas coisas”, ativista política, envolvida em causas de direitos humanos e ambientais. Arundhaty falou para milhares de pessoas sobre as questões que fazem os países do sul tão similares entre si:

“Temos de entender que nenhum país sozinho pode resistir à globalização corporativa. Não importa se esse país é liderado por Nelson Mandela. Não importa se é liderado por Lula. (…) Se nós somos contra o imperalismo, se somos contra o neoliberalismo, então temos não apenas que apoiar a resistência no Iraque, mas nos tornar a resistência no Iraque. Então, sugiro, é uma questão – uma questão de unir nossa consciência coletiva em torno de um único projeto. O projeto do Novo Século Americano busca perpetuar a desigualdade e estabelecer hegemonia americana a qualquer preço. O Fórum Social Mundial exige justiça e sobrevivência”.

A diversidade foi a grande lembrança para Sérgio Haddad também. “Quanto à composição social, o FSM se apresentou com uma diversidade humana incrível, não só devido aos distintos pontos de vista presentados pelos vários grupos sociais representados, mas também pela forte participação dos múltiplos grupos linguísticos da Índia, com forte presença dos Dalits (os intocáveis) e dos Adivasis (povos indígenas conhecidos como “tribos”). Todos estes grupos marchavam pela Índia, por Mumbai e nas instâncias do FSM, marchas estas que são tradições dos indianos”.

Um Fórum por Mulheres

Mulheres reunidas em manifestação de tambores, durante FSM em Mumbai | Foto: Raju Bhagwat/World Vision
Mulheres reunidas em manifestação de tambores, durante FSM em Mumbai | Foto: Raju Bhagwat/World Vision

O FSM de Mumbai inverteu as estatísticas de participação por gênero. Enquanto em Porto Alegre, 51% dos participantes eram mulheres e 49% homens; na Índia, 55% dos presentes se identificavam como homens e 45% mulheres. Ainda assim o debate em torno das questões de gênero e violações envolvendo as mulheres em todo o mundo estiveram entre os principais temas desta edição. Mulher e Gênero foi o terceiro tópico com mais seminários entre 1.400 temas – 216 – atrás apenas de Direitos (337) e Jovens (266).

Uma das conferências, intitulada “Diálogos Feministas: Construindo Solidariedade” reuniu mulheres vindas do Brasil, Tanzânia, Irã, Tailândia. Para o grupo feminista Isis Women, que coordena uma escola de ativismo feminista, os diálogos também serviram para examinar “ligações entre movimentos feministas e outros movimento sociais e grupos de direitos envolvidos com as lutas pelos direitos humanos, incluindo direitos sexuais e reprodutivos, igualdade social, desenvolvimento humano, ambiental, justiça econômica e de gênero”.

A ativista bengali Farida Unnayan Bikalper, diretora executiva da ONG Unnayan Bikalper Nitinirdharoni Gobeshona (Pesquisa de Políticas para Desenvolvimento Alternativo), também salientou o debate sobre direitos das mulheres em entrevista à BBC. “Eu gostei das discussões críticas feministas sobre novas tecnologias reprodutivas, que estão afetando mulheres tanto em países desenvolvidos, quanto em países pobres. Enquanto mapeamento genético não permite que bebês com certas deformidades venham a nascer, seleção de sexo está levando ao feminicídio em muitos países”, analisou.

Se essas questões são urgentes em toda parte do mundo, na Índia elas crescem cada vez mais. Isso já era realidade em 2004. O país só veio a ter um Ato contra a Violência Doméstica um ano depois, colocado em prática apenas a partir de outubro de 2006. Foi a primeira vez que a violência doméstica foi definida dentro da legislação do país.

A questão contra a Coca-Cola

A ausência de Coca-Cola nas bancas vendendo comida durante o FSM foi destacada por veículos desde o The Guardian ao Indian Resource. Mais do que uma forma de resistência à marca vista por muitos como um dos “vilões capitalistas”, na Índia, o não ao refrigerante tinha uma face política e direta. “Ativistas e camponeses de várias regiões da Índia dizem que as fábricas de engarrafar da Coca estão secando os poços dos vilarejos e poluindo os rios e lançaram a campanha que chama a Coca de ‘impensável, não-consumível’”, escreveu o Indian Resource.

Na tradição que fez história na Índia, no dia 18 de janeiro de 2004, uma marcha reunindo 500 pessoas surgiu no Fórum para denunciar as operações da Coca-Cola no país. O movimento teve participação de delegados, ativistas, camponeses diretamente afetados pelas fábricas. Segundo a imprensa local, “o protesto chamou atenção para um padrão existente nas fábricas da Coca-Cola em toda a Índia”: “Três comunidades – Plachimada, em Kerala, Wada, em Maharashtra e Mehdiganj, em Uttar Pradesh – estão sofrendo com severos corte d’água como resultado da Coca-Cola puxando a maioria da água no subsolo ao redor de suas instalações. E o descarte indiscriminado da água utilizada pela multinacional no solo, tem poluído a pouca água que resta. Em Sivagangai, Tamil Nadu, moradores estão contra a proposta de ter uma fábrica da Coca na região por medo de que também venham a enfrentar falta d’água e poluição”.

Os dhalits protagonistas e um Tibete livre

Uma das grandes conquistas do Fórum de Mumbai foi dar voz à quem não tinha, enfrentando as tradições mais profundas de castas na Índia. Como Michael Coffey escreveu em seu relatório para a Waging Peace, se no Brasil os Sem-Terra apareciam com um caso forte pautando a reforma agrária entre os debates, em Mumbai os dhalits, conhecidos popularmente como “intocáveis” usaram “táticas similares para chamar a atenção às suas causas”. Os direitos da população mais excluída de toda a Índia ganhavam a atenção internacional que precisavam ali.

Além deles, outra antiga ferida histórica da Ásia aproveitou o FSM para conseguir levar seu debate ao mundo: o Tibete. A delegação tibetana incluía 350 pessoas, logo apoiadas por participantes de todos os lados do mundo. Os monges começaram sua manifestação construindo uma mandala de areia, depois partiram em caminhada pelas principais ruas do Fórum levantando a bandeira nacional do Tibete e faixas pedindo a independência. Como o site oficial da organização tibetana reportou na época, depois de uma vigília com velas e uma caminhada até o famoso marco da cidade Azad Maidaan, “mais de 60 monges e freiras das universidade de Gaden e Drepung, além de 20 crianças tibetanas da Escola Central do Tibete, do estado de Karnataka, também se uniram à delegação”.

Na imprensa indiana, houve críticas negativas ao Fórum Social – um colunista do The Economic Times disse que assim como Bollywood, o Fórum servia para “criar uma ilusão, o mais distante da realidade possível” – mas também houve celebração pelo que o evento proporcionou ao país. Para Vandana Shiva, por exemplo, publicando no mesmo The Economic Times, o FSM construiu solidariedade através de diversidade, o que numa sociedade dividida desde a raiz pelo sistema de castas é um gesto gigante. “O FSM é relevante não porque seus membros o utilizam para fazer planos estratégicos ali. O FSM é uma celebração de poder cidadão e sua mensagem é que a vida é mais do que o mercado”, escreveu.

No ano em que deixou Porto Alegre, o Fórum conseguiu ir além em mostrar, especialmente para as reuniões anuais do hemisfério norte, que sua posição era de ser a maior reunião global da sociedade civil. Mostrou que era “arena de resistência”.


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