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19 de junho de 2015
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16:54

Igreja pressiona contra Plano de Educação por abordar questões de gênero e sexualidade

Por
Sul 21
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Os planos de governos dos principais candidatos propõem a escola de tempo integral | Foto: Eduardo Seidl / Palácio Piratini
Plano irá determinar educação no município pelos próximos dez anos | Foto: Eduardo Seidl/ Palácio Piratini

Débora Fogliatto

Os vereadores de Porto Alegre receberam, nesta semana, o Plano Municipal de Educação (PME), enviado pelo Executivo, que conta com 23 diretrizes para a educação na cidade nos próximos dez anos. Na mesma semana, a Prefeitura enviou também 50 retificações ao documento, e a Arquidiciose elaborou uma carta criticando o que chamou de “ideologia de gênero” que estaria presente no plano.

O plano foi elaborado após amplo debate com a sociedade e com as escolas, em um processo que iniciou em 2013. Dentre os itens, há a preocupação em erradicar o preconceito relacionado a diversos fatores, entre eles gênero e sexualidade, e em assegurar direitos à população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). O plano será votado na próxima quarta-feira (24), quando os vereadores podem apresentar emendas e acolher ou não os itens do documento e da mensagem retificativa enviada pelo Executivo. A data da votação é uma determinação nacional, para que todos os planos municipais sejam sancionados até o dia 26.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Todos os vereadores receberam a carta da arquidiciose; na foto, Sofia Cavedon examina o documento | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Entre os itens que tratam do tema, destaca-se o 7.35, que assegura: “Introduzir e garantir a discussão de gênero e diversidade sexual na política de valorização e formação inicial e continuada dos profissionais da educação na esfera municipal(…) visando, no currículo do ensino básico, ao estudo de gênero, diversidade sexual e orientação sexual, bem como ao combate do preconceito e da discriminação de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, mulheres”. Já o 7.37, que trata da seleção de livros para serem utilizados nas escolas, defende que sejam usados “critérios eliminatórios para obras que veiculem preconceitos referentes à condição social, regional, etnicorracial, de gênero, identidade de gênero, orientação sexual, linguagem ou qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos humanos”.

Por sua vez, a Meta 23 é inteiramente dedicada à questão da diversidade: “Assegurar políticas específicas de acesso e atendimento, bem como políticas curriculares com foco na garantia do direito à diversidade de gênero, identidade de gênero, de orientação sexual, de raça/etnia nos termos das Leis Federais Nº 10.639/03 e Nº 11.645/06 e a afirmação dos Direitos Humanos”. Dentre os avanços propostos, está a possibilidade de se utilizar o nome social e o banheiro de acordo com sua identidade de gênero para as pessoas travestis e transexuais.

“Ideologia de gênero”

A carta assinada pelo arcebispo Jaime Sprengler e enviada a todos os vereadores da Câmara no dia 17 de junho afirma que “o respeito às minorias não pode impor a todo custo a desconstrução de valores consagrados em âmbito familiar”, apontando que “o ser humano nasce masculino ou feminino, nisso se expressa sua identidade”. O documento lembra também que, na perspectiva da fé judaico-cristã, Deus criou o homem e a mulher.

Para a arquidiocese, “a ideologia de gênero apresenta uma distorção completa de homem e mulher”. A carta menciona que a “adoção da promoção da identidade de gênero” não está contemplada no Plano Nacional de Educação — no âmbito federal, o trecho que falava da diversidade foi retirado por deputados conservadores. Até a manhã desta sexta-feira (19), nenhuma emenda foi protocolada ao projeto para alterar questões relacionadas à identidade de gênero e orientação sexual. Confira a carta na íntegra.

“Discussões envolveram diversas entidades”

As principais propostas de Dilma, Aécio e Marina para a educação já constam do Plano Nacional de Educação | Foto: Júlia Molina / PMPA
Educação infantil, séries iniciais, ensino médio e superior deverão seguir as determinações | Foto: Júlia Molina / PMPA

Responsável pela elaboração do plano na Secretaria Municipal de Educação (Smed), a assessora institucional Célia Trevisan apontou que o documento foi elaborado em conjunto com o Conselho Municipal de Educação, com participação de representantes de toda a sociedade. “Vem desde 2013 a  construção [do plano], foram feitas algumas mesas abertas, chamando a sociedade de Porto Alegre, dentro das temáticas de educação infantil, ensino médio, diversidade, gestão democrática, financiamento, entre outras”, relatou.

A partir daí, ouviu-se pesquisadores do tema, gestores do município, Estado e de entidades privadas, para que fosse composto o texto-base. Em setembro de 2014, houve o lançamento público do documento, que a partir de então ficou à disposição para que a sociedade civil tomasse conhecimento e encaminhasse emendas e representações para a discussão no pré-congresso e no congresso de delegados. No final de março e abril, aconteceram dois grandes encontros dentro das temáticas e, em seguida, o congresso de educação. “O texto, nos mais diversos momentos, teve quase 50 entidades que desenvolveram mais diretamente. Além disso, está público no site da Smed o texto final”, afirmou Célia.

Por isso, ela recebeu com estranhamento a notícia de que a arquidiocese teria pedido alterações diretamente para os vereadores. “Poderiam ter participado antes. Tivemos a participação de algumas escolas católicas por parte do Sinepe, Sindicato Patronal das Escolas Privadas, que não mencionaram isso”, ponderou, destacando o processo democrático que levou à construção do texto. “Todo mundo tem o seu direito a posicionamento e concepção de mundo e nem todo mundo precisa concordar, mas acho que o processo tem essa tonalidade que foi participativo, não foi da cabeça de uma pessoa só. A sociedade se organizou, foi envolvida e colocou a sua visão de mundo”, afirmou.

Polêmica nacional

Foto: ABA/Divulgação
Íntegra da carta da ABA: clique para ampliar | Foto: ABA/Divulgação

As cidades e estados brasileiros devem votar seus planos de educação até a próxima quarta-feira (24), por determinação nacional. Em todo o país, a questão da “ideologia de gênero” tem causado polêmica. Nesta quinta-feira (18), o Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou uma carta se manifestando contrário à inclusão dessas questões nos planos. “A ideologia de gênero vai no caminho oposto e desconstrói o conceito de família, que tem seu fundamento na união estável entre homem e mulher.  A introdução dessa ideologia na prática pedagógica das escolas trará consequências desastrosas para a vida das crianças e das famílias”, aponta o documento, onde também consta que tais itens foram rejeitados no Plano Nacional.

Os bispos afirmam, porém, que a Igreja tem o compromisso de “se somar aos que combatem todo tipo de discriminação a fim de que tenhamos uma sociedade sempre mais fraterna e solidária”. Para eles, “pretender que a identidade sexual seja uma construção eminentemente cultural, com a consequente escolha pessoal, como propõe a ideologia de gênero, não é caminho para combater a discriminação das pessoas por causa de sua orientação sexual”.

A Associação Brasileira de Antropologia, por sua vez, lançou nota também nesta quinta-feira (18) em que reflete que “evocando discursos religiosos, alguns parlamentares têm tratado como ‘ideologia’ a consolidada reflexão científica brasileira e internacional que gira em torno da produção e reprodução de desigualdades sociais, que se justificam a partir de certas concepções normativas sobre gênero e sexualidade”. Por isso, a entidade entende que o aprendizado a respeito das desigualdades de gênero, assim como das relacionadas à classe e raça, “contribui de forma marcante para o conhecimento e enfrentamento das desigualdades históricas no país”.

No Distrito Federal, os termos a respeito de gênero e sexualidade foram excluídos do plano, aprovado pela Assembleia Legislativa nesta quarta-feira (17). Em Teresina, vereadores já se manifestaram contrários aos itens que tratam das questões de gênero, e em Maceió 16 vereadores assinaram um requerimento que solicita ao prefeito que não inclua a “ideologia de gênero” no Plano Municipal. A Câmara Municipal de São Paulo também retirou as referências ao tema, e em Recife a bancada evangélica se movimenta para fazer o mesmo.

“Imposição de visão religiosa”

A bancada de oposição da Câmara se organiza para tentar manter os itens referentes a gênero e sexualidade no PME. Para as vereadoras Fernanda Melchionna (PSOL) e Sofia Cavedon (PT), presidente da comissão de Direitos Humanos e membra da comissão da Educação, respectivamente, a carta da arquidiocese é uma tentativa de imposição de visão religiosa sobre o tema.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Fernanda e Alex se reuniram na quinta-feira para tratar do plano | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A petista observou que a carta “fere o Estado laico”, lembrando que diversas iniciativas de debate sobre sexualidade nas escolas já foram vetados por parlamentares conservadores. “Não há discussão, formação nenhuma, então os professores não sabem lidar [com questões de gênero], pois não é o seu cotidiano. E não entendem, não combatem o bullying. Isso é muito grave”, analisa. Fernanda destacou que, embora seja preciso respeitar todas as religiões, não é plausível que tentem impor suas visões na do Estado.

“A ideia de que existe uma ‘ideologia de gênero’ é absurda. O  que existe é uma ideologia construída historicamente para tentar reprimir e justificar o preconceito”, afirmou Fernanda, apontando que a maioria das mulheres transexuais e travestis acabam trabalhando com prostituição pela falta de outras opções, visto que muitas largam a escola devido a violências relacionadas à sua identidade de gênero. “Muitas delas deixaram a escola exatamente porque a escola não aceitava a sua identidade, porque sofriam bullying. Usar o banheiro, que é uma coisa tão normal para a maioria, para eles é um problema muito grande. Garantir isso é garantir que a escola seja inclusiva, aceite todos e combata o preconceito lá na raiz”, opinou.

O vereador Alex Fraga (PSOL), que também é professor da rede municipal, considera o PME um plano “extremamente avançado”, inclusive mais do que o nacional. “Aqui temos 23 metas e no nacional só tem 20. Essa 23ª foi de certa forma debatida, mas suprimida do PNE por pressão das bancadas conservadores. Aqui avançamos muito mais nesse aspecto. Não podemos dar às costas à toda a realidade que se apresenta na nossa sociedade”, colocou, apontando que a carta não condiz com recentes manifestações do Papa Francisco, que já recebeu uma transexual no Vaticano e declarou que as pessoas LGBT “não devem ser discriminados e devem ser integrados na sociedade”. Para ele, o ideal seria o documento ser aprovado na íntegra, até por “respeito ao processo democrático” em que foi elaborado.

Foto: Ederson Nunes/ CMPA
Nedel pode apresentar emenda| Foto: Ederson Nunes/ CMPA

Vereador pode apresentar emenda

João Carlos Nedel (PP) afirmou concordar com o conteúdo da carta enviada pela arquidiocese . “Eu concordo devido à questão dos valores familiares. Estamos estudando a lei federal e o plano agrega coisas que não tem nela, então não sei se isso não torna ilegal o projeto. Inclusive essa questão de gênero”, apontou. Ele disse estar estudando a possibilidade de encaminhar alguma emenda nesse sentido.

Outros vereadores também foram procurados pelo Sul21, porém disseram ainda estar estudando o plano e não ter opinião formada, ou não responderam até o fechamento desta matéria.


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