Público é impedido de entrar em apresentação da política de saúde mental do RS

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| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
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Débora Fogliatto

Autoridades e convidados conheceram, nesta sexta-feira (15), a política de saúde mental da atual administração do Estado. Parte dos interessados, no entanto, foi impedida de entrar no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), em Porto Alegre, onde a apresentação foi realizada. Após a atenção atraída para a audiência realizada há duas semanas, o governo optou por fazer o evento de hoje a portas fechadas.

Embora anunciada oficialmente, a apresentação se restringiu a uma lista de convidados, selecionados “criteriosamente”, conforme informado na entrada do local. A reportagem do Sul21 foi impedida de entrar sob tal explicação. Cerca de 50 jovens, na maioria residentes da área da Saúde, também impedidos de participar, trancaram a entrada de carros, com fitas isolantes nas bocas e segurando cartazes “Manicômio não”, “Nova política de saúde mental do Estado = política higienista” e “Saúde não se vende, loucura não se prende”.

Críticas à administração

A polêmica em torno da nova política de saúde mental estadual começou com a nomeação do médico Luiz Illafont Coronel para a coordenação da área na Secretaria de Saúde. Ele, que é ex-diretor do São Pedro, defende a revitalização do hospital e a existência de instituições de internação específicas para pacientes com sofrimento psíquico e usuários de drogas. Mesmo antes que assumisse o cargo, Coronel foi alvo de um abaixo-assinado feito por militantes que defendem a implantação total da reforma psiquiátrica e contrários ao seu nome.

| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
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A reforma prevê o fim das internações em hospitais psiquiátricos, com os usuários de saúde mental sendo tratados por uma Rede de Atendimento Psicossocial (RAPS) em suas próprias comunidades. A lei, que existe há 30 anos no Rio Grande do Sul, ainda encontra desafios para ser completamente cumprida.

A nova gestão estadual para o setor começou a enfrentar ainda mais resistência quando rescindiu os aluguéis de duas casas que viriam a ser residenciais terapêuticos — casas para pessoas que estiveram internadas durante anos em hospitais psiquiátricos — e uma casa que era usada pelo grupo de teatro Nau da Liberdade. Militantes, residentes e estudantes acusam a atual gestão de tentar levar os tratamentos de volta para dentro do São Pedro.

A administração também tem sido criticada por não dar respostas claras sobre suas pretensões na área, inclusive quando participou de uma reunião no Conselho Estadual de Saúde. Em entrevista ao Sul21 quando assumiu o cargo, Coronel defendeu que a desinstitucionalização de pacientes seja feita “em boas condições técnicas, humanas, científicas para um lugar mais adequado onde possa dar sequência ao seu tratamento”. A apresentação desta sexta-feira também serviria para esclarecer as dúvidas de quais as intenções e como irá funcionar a política governamental.

| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
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Protesto

Ao serem impedidos de entrar, os residentes transformaram a situação em um protesto. Chegaram a restringir a entrada de veículos no São Pedro, tornando a tarefa mais lenta e entrando em atrito com a equipe de segurança do Hospital, que insistia para que não impedissem a passagem. “A gente não está impedindo a passagem, estamos apenas fazendo eles esperarem um pouco. Todo mundo está podendo entrar”, respondeu uma residente, acrescentando: “quer dizer, menos nós”.

O chefe de gabinete do deputado estadual Zé Nunes (PT), membro da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa, foi impedido pelos próprios organizadores de entrar. Zelmute Oliveira Peres Marten parou seu carro na entrada do São Pedro para buscar dialogar, explicando ser representante do legislativo estadual. “Eles não estão permitindo o trabalho da Comissão de Saúde, queremos levar o relato aos deputados”, criticou o chefe de gabinete. Zelmute teve sua entrada liberada após intermediação por telefone pelo presidente da Assembleia, Edson Brum (PMDB).

Zé Nunes é historicamente identificado com a pauta e já foi vereador e prefeito de São Lourenço do Sul, cidade considerada referência na implantação da reforma psiquiátrica do Estado. O carro da secretaria do município foi inclusive aplaudido pelos manifestantes quando chegou para o evento.

| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
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Parte dos que estavam lá eram membros do Coletivo Gaúcho de Residentes em Saúde, que fazem suas formações em diversas instituições do Estado. “O pessoal foi tentando entrar, destacamos que o São Pedro era público, mas disseram que hoje não era”, contou uma das residentes. “O Coletivo tem acompanhado a discussão e o processo de tentativa de desmonte, estamos nos manifestando contrários à política da atual administração”, afirmou Uiasser Franzmann, também membro do coletivo.

“Teatro de horrores”

Zelmute classificou a apresentação como “um teatro de horrores”. Segundo ele, os representantes da secretaria “atacaram as liberdades individuais, atacaram todos os avanços obtidos pela política nacional de saúde mental”. Ele lamentou que os administradores estejam “referenciando o Hospital São Pedro como um modelo e propondo que haja uma mobilização para a estruturação de leitos em hospitais psiquiátricos, nos conhecidos manicômios”. Ele informou que o deputado Zé Nunes irá levar o relato para a Comissão de Saúde e para o Plenário da Assembleia.

Um residente que trabalha no local e pode entrar na apresentação contou ao Sul21 como foi. Segundo ele, as autoridades presentes destacaram a importância do Hospital São Pedro e por vezes criticaram o trabalho realizado pelos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS). Gilberto Broffmann, diretor do HPSP, fez um histórico da instituição, que disse ser “referência para atender e acolher os doentes mentais pobres”, destacando que o atendimento é feito apenas pelo SUS.

Ele também teria afirmado que não falta nenhum remédio no Hospital para os pacientes, sendo fortemente aplaudido, e informou que o São Pedro seria um “centro de atenção integral à saúde mental”, que é chamado de hospital apenas por questões históricas. Por fim, Gilberto teria feito referência ao decreto 45.214, que foi instituído em 2007 com o propósito de “recuperar e revitalizar o Hospital São Pedro”.

De acordo com o residente que esteve na apresentação, o coordenador de Saúde Mental, Luiz Coronel, afirmou que pretende “mapear as cracolândias” do Estado, dando ênfase na política de combate ao uso de drogas. Ele também teria criticado os CAPS, embora logo em seguida tenha admitido que eles atendem 2,4 pacientes por dia, enquanto os hospitais atendem 1,7.

Apenas autoridades puderam entrar na apresentação | Foto: Karine Viana/Palácio Piratini
Apenas autoridades puderam entrar na apresentação | Foto: Karine Viana/Palácio Piratini

O mais exaltado em sua fala, segundo o relato, teria sido o deputado federal Osmar Terra (PMDB). “Ele foi muito irônico ao falar da atual política de drogas, da redução de danos, dizendo que não funciona, que fracassou. Disse que a doença está na mente das pessoas, que a dependência química é uma doença crônica e ficar de braços abertos para a cracolândia é um problema”. O deputado é o autor da lei que propõe a internação compulsória de usuários de drogas, a qual defendeu na situação.

“Ele começou a fazer associação direta entre saúde pública e segurança, diz que são os dois problemas mais graves e que estão ligadas pela saúde mental. Isso é justamente o que a gente mais luta contra, desassociar imagem do louco da de criminoso”, disse o residente. Embora tenha dito ser contra a pena de morte, Terra teria defendido que as leis “mais duras da Indonésia trazem resultados”, apontando que o que resolveria a violência seria as pessoas saberem “que não vão sair impunes”. “Ele também criticou muito os CAPS, disse que não resolve problema da dependência química. Estão caindo em cima do CAPS e isso provavelmente vai ter consequências mais sérias”, lamentou o jovem.

Quem falou por último foi o Secretário de Saúde, João Gabbardo, que teria manifestado intenção de “dialogar com todos”. “Ele disse que vai combater a desassistência, palavra frisada algumas vezes. Querem fazer mapeamento de moradores de rua e usuários de crack para fortalecer o São Pedro, mas lembraram que precisarão enfrentar o subfinanciamento”, contou o residente.

Procurada, a Secretaria de Saúde do Estado não se posicionou até o fechamento da matéria.

 


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