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23 de março de 2015
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19:41

Após estupro na Redenção, outras mulheres relatam descaso policial

Por
Sul 21
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Débora Fogliatto

Na última semana, o relato de um caso de estupro no Parque Redenção, em Porto Alegre, recebeu muita repercussão, acendendo a discussão sobre o tratamento policial dado a vítimas de abuso. No texto, a jovem que foi abusada por dois homens ao meio-dia de uma segunda-feira conta que foi tratada com descaso pelos policiais que a atenderam na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam). Segundo a vítima, ela chegou a ouvir na delegacia que o caso “não daria em nada”. O relato foi feito na página Se essa rua fosse nossa, no Facebook, criada para discutir a relação das mulheres com o espaço urbano.

No texto, a jovem narra que, enquanto prestava depoimento sobre o ocorrido, ouviu frases como: “mas tu não foste de fato estuprada, não é?” — não houve penetração, mas a lei define o ocorrido com ela como estupro –, “como assim tu não foste conversar com as testemunhas oculares que estavam no local?”, “fica difícil te ajudar se tu não me disseres mais detalhes sobre eles”, “a polícia não tem culpa, o Estado cortou a hora extra e por isso não tem policiamento na rua”.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Delegacia da Mulher fica no Palácio da Polícia, na Avenida Ipiranga | Foto: Guilherme Santos/Sul21

No Departamento Médico Legal (DML), onde são realizados os exames de corpo de delito, a jovem primeiramente foi conduzida a uma sala com cerca de 15 homens. Só ao perceberem seu desconforto, ela foi levada para um local exclusivo para mulheres. Relatando ter ouvido ainda “mas se ele não teve relações sexuais contigo nem sei porque tu estás aqui”, ela desistiu de fazer o exame ao perceber que seria feito por um perito homem. O relato da menina obteve mais de 25 mil curtidas e dez mil compartilhamentos no Facebook, onde foi postado.

Após a repercussão, a polícia começou a investigar o caso em detalhes, chamando a jovem para depor e divulgando retrato falado dos suspeitos. O caso, porém, não é isolado — são  527 mil tentativas ou casos de estupros consumados no país anualmente, dos quais 10% são reportados à polícia, segundo dados de 2014 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A partir do relato, surgiram denúncias de outras mulheres sobre a forma como a polícia trata as vítimas de violência sexual. C.O. lembra que foi estuprada por um conhecido, também em Porto Alegre, e recebeu tratamento “desumano” por parte da polícia. “Só o que eu ouvi , na delegacia, no DML, no hospital e no tribunal foi, ‘mas se tu conhecias o agressor deverias saber o que podia acontecer’ , ‘não vai sair daqui e contar pra ele’ , ‘mas tu estás até andando, tem mulheres que passam por coisa pior'”.

Diversas mulheres comentaram na postagem relatando ter passado por situações análogas. E.R. afirmou ter ido registrar ocorrência por agressão em uma delegacia, na qual foi questionada sobre “o que teria feito” para ter sido agredida pelo marido. N.B. contou que, lendo a postagem, lembrou ter passado pela mesma situação. “Foi tanto descaso, que resolvi engolir o que passei, rasgando minha garganta, e guardando as dores só para mim, pois tive a certeza que nada seria feito”, concluiu. “O pior é chegar pra fazer o exame de corpo de delito e o pessoal do DML rir da tua cara e fazer piadinha. Passei por isso aos 17 anos”, narrou C.W.

Em Porto Alegre, há apenas uma delegacia especializada no atendimento à mulher vítima de violência. O melhor acolhimento e a ampliação da rede de amparo a mulheres nessas situações em vulnerabilidade foi uma das demandas da Marcha das Vadias de 2014, que foi até a frente da delegacia.

“A regra é jamais desmotivar a pessoa a registrar”

Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Na Marcha das Vadias, mulheres pedem o fim da cultura do estupro e o melhor atendimento policial | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

O delegado Cléber Ferreira, diretor da Delegacia de Polícia Regional de Porto Alegre (DPRPA), afirma que a orientação de procedimento padrão passada aos policiais é que o atendimento às vítimas de casos como este seja feito em espaços mais reservados. Além disso, ele destaca que é importante “jamais desmotivar a pessoa a registrar”, mas justamente o contrário, para que se possa tomar providências. “Não cabe ao plantonista estar desmotivando ou dar conselho para que ela tome outra ação. O ideal é registrar ocorrência com todos os detalhes possíveis”, diz.

Segundo Ferreira, embora haja uma delegacia específica, todas estão aptas a receber denúncias de abuso sexual e violência contra a mulher. “Se uma mulher que mora na Restinga procurar a 16ª Delegacia para seu caso de violência doméstica, eles têm atribuição e policial feminina para atender”, garante.

No caso da jovem que relatou sua experiência nas redes sociais, gerando repercussão imediata, já foi instaurada uma sindicância e a vítima foi ouvida no inquérito policial. “Vamos apurar a atuação desses policiais nesse caso concreto. Tendo verdade, eles poderão sofrer uma sanção administrativa que pode ser desde advertência até suspensão das suas atividades”, afirma Ferreira. O diretor acredita que o caso foi “uma exceção”, lembrando que há um local apropriado para o atendimento, mas que, aparentemente, a vítima não foi conduzida para a sala reservada para ser ouvida.

Reprodução da cultura machista

Fabiane Simione, assessora jurídica da ONG Themis — Gênero, Justiça e Direitos Humanos –, que lida com mulheres em situação de vulnerabilidade, afirma que é comum a experiência de se sentirem “maltratadas, humilhadas e não respeitadas”. Ela pondera que em outras delegacias além da Deam a questão é “bem gritante”, e o fato de o mau atendimento relatado ter ocorrido lá chama atenção.

Para empoderar as mulheres em situação de violência, a Themis realiza um curso de Promotoras Legais Populares dentro de comunidades carentes, com o objetivo de capacitar líderes comunitárias a fazer intermediação entre as vítimas e o atendimento necessário. “É muito cruel para as mulheres em situação de violência sair da sua casa e ir até uma delegacia falar com um agente de Estado. Pensamos no papel da PLP como alguém que encoraja, explica e faz acompanhamento até onde for preciso”.

Ela pondera, no entanto, que a cultura machista também está presente no Judiciário, quando a denúncia é transformada em inquérito policial. “Segue o padrão de culpabilizar e minimizar. A gente não tem como negar que essas pessoas, tanto os da segurança quanto do Judiciário, reproduzem a cultura da sociedade onde vivemos. Estão apenas reproduzindo a partir de seu status profissional a cultura machista da qual são vítimas as mulheres que sofrem violência sexual”, lamenta.

 


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