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30 de outubro de 2014
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19:07

Em audiência pública, comunidade da EPA reitera necessidade de diálogo com a Prefeitura

Por
Sul 21
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Foto: Cassiana Martins/CMPA
Alunos e apoiadores protestaram pedindo a continuidade das atividades da EPA | Foto: Cassiana Martins/CMPA

Débora Fogliatto

A Escola Municipal Porto Alegre (EPA) tem 116 alunos matriculados e 19 anos de história. Trata-se da única instituição municipal de ensino voltada para a educação de jovens e adultos em situação de rua. Há cerca de 15 dias, a Prefeitura anunciou o encerramento das atividades para transformar o espaço em uma escola de educação infantil e, a partir de então, a comunidade escolar se mobiliza para impedir o fechamento. Nesta quinta-feira (30), a Câmara de Vereadores realizou  audiência pública, durante a qual o Plenário ficou lotado de pessoas que reivindicavam a continuação das aulas.

A Secretaria Municipal de Educação (Smed) afirmou que os alunos da EPA seriam atendidos no Centro Municipal de Educação do Trabalhador (Cmet) Paulo Freire, no bairro Santana. Na audiência pública, representantes da Prefeitura concordaram em dialogar com a comunidade, formando um grupo de trabalho para lidar com o assunto. Foi pedido ao secretário de Direitos Humanos, Luciano Marcantônio, que tentasse falar com o prefeito José Fortunati (PDT) para que ele receba pessoalmente a demanda.

Saiba mais: População de rua e comunidade da EPA buscam diálogo para impedir fechamento da escola
População de rua protesta contra fechamento do Restaurante Popular e Escola Porto Alegre

Na audiência, diversas pessoas da comunidade escolar criticaram a decisão do fechamento pela Prefeitura, principalmente pela forma como ela foi tomada, classificada de “autoritária”. “A Smed está fazendo uma imposição sem discutir com o Conselho de Educação, com a comunidade escolar, com o grupo de trabalho da Câmara construído com o movimento, que há mais de um ano denuncia problemas relacionados à população de rua”, apontou a vereadora Fernanda Melchionna (PSOL), integrante da Comissão de Direitos Humanos e do Consumidor (Cedecondh), que realizou a audiência junto com a Comissão de Educação e Cultura (Cece).

Segurando faixas e placas pedindo a continuidade dos estudos, a presença de pessoas em situação de rua e alunos da escola foi grande. Ao final do evento, eles saíram cantando “A EPA não vai fechar” e “A EPA unida jamais será vencida”.

Foto: Elson Sempé Pedroso/CMPA
Plenário da Câmara ficou lotado | Foto: Elson Sempé Pedroso/CMPA

História da EPA

Conforme relatou o presidente do conselho escolar Renato Farias dos Santos, em 1993 foi iniciada a discussão de se fazer uma escola aberta no Centro. No ano seguinte, as secretarias de Educação, Cultura e Saúde, em conjunto com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), começaram a trabalhar com crianças em situação de rua, com a participação de dez professores. Em 1995, a escola foi criada por decreto e inaugurada em agosto.

Nos primeiros quatro anos, funcionou como uma experiência e, a partir de então, tornou-se oficialmente uma escola. Em 2000, começou a funcionar apenas como séries iniciais e, em 2009, tornou-se uma escola de ensino fundamental completo para jovens e adultos. Embora a demanda inicial tenha sido para crianças em situação de rua, com o avanço de políticas públicas que diminuiu o número de crianças na condição de mendicância, a escola se adaptou e passou a atender jovens a partir de 15 anos. “Atualmente há 116 alunos matriculados, com educação inclusiva,  sendo um espaço de acolhimento e inclusão. É um trabalho totalmente diferenciado, com aulas de cerâmica, informática, esportes”, relatou o professor Renato.

Foto: Leonardo Contursi/CMPA
Rafael Dutra disse que estuda para tentar voltar para a casa dos pais | Foto: Leonardo Contursi/CMPA

Audiência pública

Edisson de Souza Campos, do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e Jorge Oliveira, que representou os alunos da escola, manifestaram-se apontando os prejuízos que seriam ocasionados pelo fechamento. “É um absurdo tirar uma educação, isso diz que nós não temos direitos. Só tiram e não dão o que a gente quer. Acham que a gente não tem voz”, reclamou Edisson.  “Estamos vendo discriminação social e racial, outra vez estamos sendo discriminados por não deixarem o morador de rua estudar. Eles querem mais um bandido?”, questionou Jorge.

Os alunos Rafael Dutra e Simone Borges também mostraram seu apreço pela escola. “Os professores têm carinho com a gente, a gente tem respeito. Comecei a estudar pra ser um guri decente, pra poder voltar pra casa dos meus pais. Se fechar o colégio, a gurizada da rua não via mais ir para escola”, disse ele.

Na audiência, a secretária de Educação Cleci Jurach não compareceu, mas enviou como representante a servidora Simone Lovato, o que também foi criticado. “Pra mim não adianta vir aqui a assistente da secretária, a gente quer ouvir ela. Ela que tem que estar sentada aqui e explicar pra nós. Se ela tem coragem de fechar um colégio, ela tem que explicar”, reiterou Edisson.

A representante da Smed relatou que nos dados da secretaria são  105 alunos matriculados, com uma taxa de frequência de cerca de 35 a 40 alunos por dia, com 25 professores. “A proposta é atender à Constituição, que determina que a prioridade das redes municipais é atender as escolas infantis. Só no Centro temos 108 alunos aguardando vaga na educação infantil”, explicou.

Simone disse que os alunos serão atendidos na Paulo Freire, a escola de EJA mais antiga do município e que, segundo ela, “tem proposta pedagógica constituída junto com a comunidade escolar que muito se assemelha à proposta da EPA”. Já o secretário Marcantônio afirmou que se “solidariza” com as pessoas em situação de rua. “Não vamos nos omitir de qualquer diálogo, decisão será construída em conjunto. Não existe nenhuma decisão fechada, a proposta vai ser construída de forma democrática através do diálogo”, garantiu.

O fechamento de outras estruturas voltadas para a população de rua, como o Restaurante Popular e a falta de atendimento em Unidades Básicas de Saúde, também foi mencionado. Veridiana Machado, do Sindicato dos Municipários (Simpa), lembrou que as pessoas que frequentam a escola precisam de propostas diferenciadas. “A EPA foi construída com participação dos trabalhadores e usuários. Hoje o governo vem com proposta de cima para baixo, sem chamar a participação popular. Esse projeto, ao invés de ser fechado, deveria ser multiplicado em Porto Alegre, para poder qualificar”, colocou.

Foto: Cassiana Martins/CMPA
Veridiana disse que projeto da escola deveria ser multiplicado | Foto: Cassiana Martins/CMPA

Os representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública afirmaram que, caso necessário, poderiam entrar com ações judiciais para impedir o fechamento da escola. “Se tivermos que ingressar no Judiciário com essa questão, o faremos. Podem ter certeza que não vai ser o município que vai decidir sozinho”, disse o defensor Geórgio Carneiro da Rosa.

Polêmica

Representantes do Orçamento Participativo se inscreveram para falar, defendendo a decisão da Prefeitura, destacando que precisam ser criados espaços de educação infantil no centro da cidade. Chiquinho dos Anjos disse estar “estarrecido de ver vocês virem aqui e defender as pessoas ficarem na rua” e se mostrou confuso quanto ao público da EPA. “Achei que eu ia encontrar meninos e meninas de rua, mas não os vejo”, disse. Sua fala provocou gritos e xingamentos por parte da plateia, que se mostrou indignada com a colocação.

A vereadora Sofia Cavedon (PT) disse ser “uma violência” as afirmações de Chiquinho. “É uma  violência dizer ‘cadê as crianças da EPA?’, uma violência dizer isso para quem já perdeu tudo, inclusive a infância. É inaceitável que o governo olhe para a EPA dessa maneira”, colocou. Ela sugeriu que o estado e o município colaborem para que escolas estaduais com salas vazias façam parceria para acolher a demanda.

Da mesma forma, Richard Gomes de Campos, liderança do MNPR no estado, manifestou sua indignação. “Eu sou público da rede de atendimento desde meus 15 anos. Quero dizer aos conselheiros que as crianças da EPA se tornaram adultos em situação de rua por culpa do governo que não investe nas políticas públicas voltadas à essa população”, afirmou.

Manifestação de professores e servidores da EPA

A servidora Roselaine Dias afirmou que não houve diálogo sobre o fechamento da escola e lembrou que a EPA faz um atendimento diferenciado. “A escola trabalha com resgate da cidadania, escuta e acolhimento de cada pessoa que está lá, grande parte das mulheres já sofreu violência sexual na rua, grande parte já teve que se prostituir. O corpo docente é sensibilizado para trabalhar com essa menina que vem da ação da rua às 7 da manhã”, observou.

Foto: Elson Sempé Pedroso/CMPA
Foto: Elson Sempé Pedroso/CMPA

O professor Emerson Pereira emocionou o público ao apontar que “os alunos estão se tornando sujeitos de sua história. Estão fazendo à altura o dever de casa. Os diplomados aqui somos nós, mas hoje os doutores são vocês”, arrancando aplausos dos estudantes que assistiam à sua fala.

A diretora eleita pela comunidade escolar, Jaqueline Junque, também falou sobre a infância dos alunos. “Esses estudantes foram crianças que um dia também não foram bem atendidos, o que se faz na EPA é o resgate da dívida que a cidade tem com essas pessoas”, disse. Ela denunciou que a negociação foi feita em apenas três encontros e foi dado prazo de 60 dias para desocupação do prédio. “Lá naquele espaço o aluno é prioridade de atendimento, não e mais um”, assegurou.

Encaminhamentos 

O vereador João Derly (PcdoB) ponderou  que a escola inicialmente receberia 150 alunos, número bem próximo dos 116 matriculados hoje e que o prédio não está qualificado para receber educação infantil. Simone Lovato disse que o fechamento da EPA é apenas uma proposta e que na Paulo Freire também há pessoas em situação de vulnerabilidade social, enquanto Marcantônio propôs um grupo de trabalho representado pelas pessoas em situação de rua, com reunião já na próxima segunda-feira. O Conselho Escolar concordou com a realização do GT, assim como os vereadores.

“Grupos de trabalho têm funcionado, mas tem uma pessoa que decide na cidade que é o prefeito, é para isso que ele foi eleito. O mínimo que ele pode fazer é receber um grupo daqui para conversar para que diga, ele tem que dar a resposta. Peço Luciano que nos ajude a ter essa reunião”, pediu o vereador Alberto Kopittke (PT), que dirigiu a audiência. A vereadora Sofia Cavedon encaminhou uma reunião da Cece sobre a questão da educação infantil municipal. Outra audiência pública pode ser realizada daqui a 30 dias.


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