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16 de outubro de 2014
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19:11

A ideologia conservadora

Por
Sul 21
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Jorge Barcellos*

A eleição de deputados e senadores conservadores deixou atônicos eleitores de Norte a Sul do pais. Mas o que é ser conservador? O que é a ideologia conservadora? Quais são suas relações com o neoliberalismo? Em “As ideias conservadoras”, João Pereira Coutinho apresenta um interessante guia no horizonte, não muito bem-visto, das ideias de direita. Essa leitura só pode ser feita se complementada pelo recente lançamento de “A ultima lição de Michel Foucault”, de Geofrey de Lagasniere, ambos da Editora 3 Estrelas, um guia da análise liberal, a partir da obra original do ilustre filósofo. A leitura atenta de ambas obras permite traçar um quadro teórico para iluminar inúmeras características que emergem neste momento político pós-eleitoral e que tornam perplexos os analistas de plantão. Eles devem servir de referência ao pensamento crítico em direção à tomada de decisão dos eleitores em vista ao segundo turno das eleições.

Quando é feita a crítica ao conservadorismo dos novos eleitos no Congresso Nacional isto é feito com o objetivo de mostrar suas raízes históricas com momentos reacionários da História. Mas é preciso fazer uma definição um pouco mais precisa deste conservadorismo. De fato, o conservadorismo moderno se estabelece como ideologia a partir da Revolução Francesa de 1789. A “tradição conservadora” aqui é definida como o olhar voltado para o passado com o objetivo de preservar o que de melhor foi criado. Essa ideologia remonta à tradição britânica de Richard Hooker, no século XVI, a Michel Oakeshott, no século XX, chegando à atualidade com o pensamento de Roger Scruton, cuja obra “Beleza” (Martins Fontes) é de fazer corar qualquer defensor da arte contemporânea. É uma ideia legada pela Revolução Francesa, originária da posição da realeza que via no regresso ao status quo anterior à revolução a salvação da desordem posterior, isto é, a questão central colocada pelo pensamento conservador é que o pensamento revolucionário pode ser intolerante e destrutivo. Há inúmeros conservadorismos, que, afirma Coutinho, Thatcher chegou a ser acusada de ter traído o conservadorismo inglês ao adotar políticas neoliberais incompatíveis com valores tradicionais ancestrais do país. O conservadorismo é definido como aquela força que se quer capaz de evitar os “males” do radicalismo revolucionário, e, portanto, de não ter “sangue nas mãos”. Entre seus defensores está Edmund Burke, cuja ideia conservadora que defende é que a sua ideologia é caracterizada pela preservação do presente, argumento que não deixa de iluminar as eleições de 2014.

“Todos somos conservadores. Pelo menos, em relação ao que estimamos”, diz Coutinho na abertura do capitulo “A ideologia conservadora”. É verdade. Nós temos o hábito de defender nossa família e os lugares que nos são afins e, de certa forma, também os eleitores de determinados partidos são vitimas desta “disposição conservadora”. Basta voltar às eleições do primeiro turno. Se observamos os resultados das urnas da esquerda à direita, observamos que foram preservados, na maioria das vezes, personalidades políticas que já ocupavam cargos no poder legislativo. O argumento mais comum para explicar isso foi o fato de que contavam com a máquina a seu favor, mas para mim não é isso somente. Em tempos em que a palavra chave é “mudança”, como podemos explicar que também à esquerda tenham sido a maioria dos mesmos políticos eleitos, perdendo-se a oportunidade de eleger novos e importantes nomes para o cenário político? A ideia de “disposição”, defendida por Oakeshott em seu “Sobre ser Conservador” (1956) parece ilustrar bem isso: se a esquerda manteve a maioria dos nomes já conhecidos é porque a disposição do eleitor de esquerda também era conservadora, isto é, era incapaz de dar abertura a candidatos novos, preferindo manter os velhos. Nesse aspecto, os cidadãos de esquerda que reelegeram políticos em 2014 foram conservadores simplesmente porque preferiram uma posição confortável. A eleição de Manuela D’Avila é uma prova disso: o PCdoB integrava a coligação Avançar nas Mudanças, junto com o PR, PPL, Pros e PTC. Manuela, com 222.436 votos, garantiu a eleição de quatro deputados estaduais. A coligação aguardava a eleição de Juliano Roso, vice-prefeito de Passo Fundo, Emília Fernandes, ex-senadora, Junior Piaia, liderança política em Ijuí e Guiomar Vidor, sindicalista. Havia ao todo 27 comunistas se candidatando, mas o partido de Manuela só emplacou a própria e Roso porque os demais tiveram votação bem abaixo da expectativa, isto é, entre novos candidatos apresentados e os já existentes, a opção dos eleitores de esquerda foi claramente conservadora, apostando-se nos mais conhecidos ou que já estavam no Parlamento.

Outra característica do pensamento conservador, que emergiu nestas eleições e apontada por Coutinho é a resistência da direita ao uso da palavra “ideologia”. Da mesma forma que para os autores clássicos, Quintin Hogg entre eles, o conservadorismo de nossos políticos podia ser visto no uso de expressões como “força interior”, “natureza humana”, “fé”, caracterizações que evitam qualquer análise racional do fenômeno político e que revelam aquilo que o filósofo Paul Virilio denomina de “democracia de emoções”. Isto é, o conservadorismo não é assumido como ideologia pela direita porque é percebido como um “espírito”, “inclinação”, uma dimensão existencial que se julga superior a qualquer ideologia política. É a aposta no campo da manipulação emocional que se fizeram nestas eleições. Não foi assim que José Ivo Sartori conseguiu despontar no cenário eleitoral e consagrar-se em primeiro lugar, substituindo a ideologia de seu partido pelo seu “Meu partido é o Rio Grande”? E não foram suas inclinações, o homem valoroso do interior e grande defensor da sua palavra, que ficaram evidentes no caso em que Sartori recusou-se a dar sua palavra sobre aumento salarial aos integrantes do Cpers ao mesmo tempo em que, no fundo do imaginário popular, emergia a imagem de Tarso Genro maculada pela sua incapacidade de cumprir o que prometeu em relação ao piso dos professores? Quer dizer, é como se o conservadorismo da frente representada por Sartori ficasse oculta pelo comportamento de seu líder. Essa é a “fuga da ideologia” de que fala Coutinho e que serve como uma luva para definir o que aconteceu nas eleições do RS.

O que o conservadorismo político faz é uma opção pelo próximo, pelo suficiente e pelo conveniente, recusando ambições voltadas para o futuro. Mas isso é diferente do reacionário, porque este defende o regresso para um passado que nunca existiu. Por isso os conservadores tendem a aproximar os revolucionários dos reacionários, imitando o mesmo movimento de crítica que recebem da esquerda. Citando Samuel Huntington, Coutinho lembra: ”não existe distinção válida entre “mudar para trás” e “mudar para frente”. Mudança é mudança (…) e toda mudança se afasta do status quo.” Nesse sentido, a utopia e o estado de exceção não são exclusivos dos revolucionários que o pensamento conservador abomina. O que o pensamento conservador recusa é o pensamento utópico na política, porque nas versões radicais do pensamento de esquerda inclui um potencial de violência. Por isso o pensamento conservador é reativo, isto é, reage a um suposto estado de coisas que advém das propostas da esquerda. Mas também nem toda esquerda é igual, isto é, radical e com apelo à violência. Por esta razão também o pensamento conservador como ideologia define-se como aquele que emerge somente quando “os fundamentos da sociedade estão ameaçados”. Por isso, esta não é uma boa tática para a esquerda. Quando Tarso Genro e equipe divulgam nas redes sociais vídeo onde acusam o suposto “golpe direitista” em andamento, esta também é uma estratégia de direita. A opção programática, vista nos programas especialmente de Dilma, é muito mais acertada: pois a desconstrução da candidatura de oposição só pode ser feita com base num programa e na denúncia histórica. O conservadorismo como ideologia fica claro quando vemos a atribuição de valor que a direita faz em suas características fundamentais: o problema é que é possível encontrar tanto um socialista como um conservador defendendo a liberdade, mas, na direita, este sempre é independente do contexto em que se inscrevem. Não é exatamente essa a reação de Levy Fidelix, para a surpresa de muitos no último debate na Rede Globo, defendendo o seu direito à livre opinião sobre o casamento? A surpresa adveio do fato de que Levy Fidelix, do alto de sua homofobia, transmitida em rede nacional, foi capaz de partilhar de um ideário ao qual a esquerda confere grande valor. Paradoxo para a esquerda: como negar a um liberal a reivindicação do direito à liberdade de pensamento? Resposta: quando ela implicar na possibilidade de violência contra o outro.

O conservadorismo, assinala Huntington, é uma ideologia de aspecto amplo e diverso. Ela não é uma ideologia ideacional, isto é, que busca impor um programa político; ela é uma ideologia posicional, isto é, de enfrentamento de uma necessidade histórica especifica e que, após, “quando essa necessidade desaparece, a filosofia conservadora submerge”. Pode-se pensar isso exatamente dos tempos que correm voltando um pouco para trás. Para mim, a emergência no cenário da comunicação de massa no Brasil, através do fenômeno das telenovelas, do campo (Bourdieu) LGBT tem relação com surgimento do caráter homofóbico do pensamento conservador que estava submerso na sociedade. Ele pode ser precisado: o estopim havia sido dado pelo beijo gay protagonizado por Mateus Solano e Thiago Fragoso em “Amor à Vida”, de Walcir Carrasco, seguido pelo de Clara e Marina em “Em família”. Para Fidelix, a encarnação do conservadorismo político, a reação conservadora dele é contra a radicalidade representada naquilo que ele supõe serem as novas relações de gênero que procuram destruir o presente das relações estabelecidas pela família tradicional que defende, para inscrever, sobre suas ruínas, as novas formas de relações familiares. Quer dizer, o que faz típico o conservadorismo de Fidelix é o fato de que novos arranjos familiares se fazem como atos de destruição da família tradicional. A ideologia de Fidelix é posicional e reativa porque vê uma ameaça – que não existe – concreta aos fundamentos institucionais da sociedade, no caso, a família tradicional que a ideologia conservadora visa preservar.

O conservadorismo tradicional é exatamente isto: uma reação primitiva de medo e repúdio em face da inovação revolucionária ou reacionária. Curiosamente, uma dessas inovações, datada de 1789, foi justamente a emergência do racionalismo como orientador da prática política. Não é exatamente o mesmo argumento de Marcus de Melo na ultima edição da revista ao críticar o eleitor com base no racionalismo nas páginas amarelas da Veja. Para Melo, é o ignorante racional que decide a eleição, mas esta posição, já não é a mesma questão críticada pelos conservadores, que críticam a razão que se apresenta arrogante e por esta razão assumem que a política não pode ser racional apenas? Ora, diferente do que Marcus Melo propõe a partir da leitura de Downs e que faz a glória dos cientistas políticos, que matematizam suas previsões eleitorais, o problema é que o argumento conservador muito convincente, que precisa ser desmontado, é que a política não pode ser um cálculo matemático porque não existe estado perfeito. Quer dizer, achar o meio termo nos determinantes da eleição é fundamental para a crítica do momento político porque as coisas se confundem muito facilmente na realidade. Vejamos o programa da candidata Ana Amélia. Seu projeto de governo foi construído a partir do conceito de esperança. Por quê? Porque ele permitia introduzir elementos subjetivos importantes para conectar a campanha ao eleitor: esperança para que o cidadão possa confiar em seu governo, esperança para que o cidadão possa crer na palavra dos governantes, etc, etc. Mas o discurso de Ana Amélia não abandonou os elementos do racionalismo recusados pelo pensamento conservador, ao contrário. Seu plano de governo enfatiza o trabalho eficiente, racional, produto do planejamento, onde impera o racionalismo.

O pensamento conservador recusa a política utópica. Para ele, há consequências imprevistas e indesejáveis nas utopias políticas – a violência socialista, etc. Frente aos excessos da razão, o conservador opta pela via media entre os extremos. Não foi exatamente este o caminho de José Ivo Sartori? Colocando-se longe do conflito entre Ana Amélia e Tarso Genro, apresentando-os como os “extremos em conflito” e reivindicando a “força moral” que vem do interior, Sartori construiu ao seu redor um imaginário político que o levou em vantagem ao segundo turno. E continua na linha, haja vista agora, o recorte familiar que sua propaganda vem assumindo para o segundo turno – a presença da mãe, da família, etc com o objetivo de produzir empatia com o eleitor. Sua posição é conservadora porque optou se apresentar como via media, exatamente como fez no passado Germano Rigotto. Quer dizer, o sucesso de Sartori está no fato de que ele soube construir a imagem do confronto de extremos entre Tarso e Ana Amélia, apresentando-os com propostas antagônicas. O mesmo pode ser aplicado a Aécio Neves, ainda que este, mais do que Sartori, tenha optado por uma posição ofensiva no debate político, ele também viu que o cenário, após a morte trágica de Eduardo Campos, polarizou a disputa eleitoral entre Dilma e Marina. Por isso sua campanha não cessou de associar as semelhanças, ainda que, nos debates, Marina conseguisse apresentar um discurso político de contestação que qualifico como em construção como vinha sendo elaborado pela Rede. Ora, estava claro que a vantagem de Marina devia-se mais a uma democracia de emoção onde era determinante uma “bolha de afeto” (sic), provocada pela fatalidade do que de uma disputa real. Como via alternativa, da mesma forma de Sartori, Aécio Neves apresentou-se e chegou ao segundo turno. Em ambos, aplica-se a máxima empregada por Winston Churchil (1874-1965): “Por mais absorto que um general esteja na elaboração de suas estratégias, as vezes é importante levar em consideração o inimigo”.

No plano do conservadorismo como ideologia posicional, a estratégia de Aécio Neves deu imenso valor as circunstâncias do embate político entre Dilma e Marina e o declínio desta nas pesquisas de opinião por suas mudanças de posição ao longo dos debates. Ou seja, tanto Aécio como Sartori não vislumbraram o que a realidade política deveria ser, mas o que a realidade política era à luz de seu projeto de conquista do poder. Enquanto Tarso Genro continuava confiante até a divulgação da pesquisa de boca de urna, Sartori esperou até tarde para se pronunciar pelo resultado das eleições no RS. Da mesma forma, enquanto Dilma assegurava que era indiferente enfrentar no segundo turno Aécio ou Marina enquanto o que os comentaristas políticos asseguravam era exatamente o contrário, de que havia uma disputa mais difícil com Aécio Neves, o recusado terminou por tornar-se realidade. Quer dizer, em termos psicanalíticos, o processo eleitoral foi percebido pela esquerda como negação, isto é, nem Dilma e nem Tarso conseguiram ver a política real, ao contrário de Aécio e Sartori. Essa maleabilidade é típica do conservador, é seu modo de ver as circunstâncias e logo se ajustar a elas que determina seu comportamento. O que é um problema para os demais partidos: veja-se o anúncio de Luciana Genro de estudar apoiar Dilma ou Marina de apoiar Aécio: após uma campanha radical, sua sinalização evoca a atitude conservadora, de votar “no que conhece” como mais próximo, seja a esquerda ou o ideal ambiental. Só o futuro dirá quanto lhes custaram caro estas opções.

O conservador recusa exigências programáticas. “Quando desejardes agradar a qualquer povo”, disse Burke, “deveis dar-lhe o benefício que ele pede – não aquilo que pensais que é melhor para ele”. A máxima evoca não apenas o olhar conservador que se volta para as circunstâncias, como a defesa de certo pluralismo de programa que se identifica claramente nas propostas de oposição. No nível federal, tanto Aécio como Marina defenderam a ideia de manutenção dos bons programas do governo Dilma, como o Bolsa Família, da mesma forma que no Rio Grande do Sul, Sartori e Ana Amélia apostavam no resgate e investimento em educação, desejo de todos os gaúchos. Tanto um quanto outro propuseram exatamente o que lhes pedia a sociedade. Mas Ana Amélia errou ao escolher a esperança como valor agregador de seu programa, errou por acreditar num único valor político dogmático, justamente porque o pensamento conservador também é pluralista, isto é, é condicionado à natureza circunstancial e em movimento dos valores. Por esta razão, voltando a Fidelix, no fundo, no fundo, ele é um mau conservador: ele também deu valor desmesurado ao casamento tradicional e desvalorizou todos os demais. Ambos caíram na chamada “falácia agregadora”, a que diz que todos os valores podem ser combinados numa expressão máxima. Nada disso. Veja-se Sartori e sua notável capacidade de jogar com o político, em cada entrevista, em cada enfrentamento com atores sociais e suas demandas. O “grosso do interior” oculta sob a face do bom velhinho um notável animal político, e talvez nesse sentido, ele se aproxime muito de Lula.

Mas não se trata aí da defesa de um certo “relativismo conservador”. A posição conservadora é clara: não se pode dispensar certos valores básicos fundacionais. Há assim “sentimentos naturais” (Edmund Burke), “obrigações da justiça” (Hugh Cecil), “decências fundamentais da vida” (Quintin Hogg). Quer dizer, o pensamento conservador é conservador porque sua concepção de natureza humana indica não o que os indivíduos devem fazer, mas o que não devem e nem podem fazer: não podemos ter mais impostos, não podemos ter mais Estado e ninguém percebe a contradição que estas afirmações são quando confrontadas com as proposta de “mais educação” e “mais saúde”. O que o conservador tem certeza é que seja o que fizer, ele não pode atentar contra as “tradições”, contra a “história” e contra a “cultura”. Eles as valorizam porque elas sobreviveram ao “teste do tempo”. Nesse sentido, as políticas de habitação “Minha Casa, Minha Vida” e o “Bolsa Família” já constituíram-se em políticas “tradicionais” do governo Dilma e nenhum dos seus opositores foi capaz de propor sua abolição, o que o condenaria ao fracasso político – ainda que, saiba-se lá o que passa num coração neoliberal… Da mesma forma, investimentos em saúde do governo estadual (12 por cento) não são questionados, fazendo-se referência ao fato de que a estrutura física ainda continua deficitária.

Mas o pior está por vir. A identidade entre o pensamento conservador não é somente com as tradições e os valores do passado e a rejeição a qualquer utopia de transformação social. É a própria defesa da ordem capitalista que é central ao conservadorismo e não é por menos que a defesa do livre mercado é parte do coração da direita. Mas as coisas não são tão simples assim, já que a esquerda, que por tantos anos tornou-se crítica ferrenha do capitalismo, no que se refere ao PT, parece ter aceitado-o como se faz com um “vizinho inconveniente”. Uma das razões que entendo para o fato de a esquerda, em especial o PT, ter cedido ao centro do espectro político, revelado pelas alianças que aceitou para chegar ao poder desde a eleição de Lula, é que seus militantes gestados na universidade, no caminho em direção à prática política, abandonaram a prática de estudos marxistas e passaram “a pensar por si mesmos diante dos acontecimentos”, num movimento típico do conservadorismo. Vejamos. Nos anos 80, que vivi na Ufrgs, a leitura da obra de Marx era fundamental. O apelo romântico de sua obra era feito então a estudantes que se supunham “verdadeiros revolucionários”: faziam-se grupos de estudo para a leitura de obras como Crítica da Economia Política e os Grundrisse, leituras que fizeram parte de uma geração. Claro, hoje estão hegemônicas as leituras da filosofia marxista italiana de Paolo Virno a Antônio Negri, mas as bases da análise política de uma geração começaram com a leitura básica de Marx. Ali era claro que ser de esquerda era ser critico do capitalismo, o que se aprendia pela exposição de Marx e sua crítica das categorias de Valor, Trabalho e Alienação. É só olhar o Grundrisse, a sempre primeira introdução ao Capital. Claro que isso mudou nos anos 90 com a ascensão do pós-modernismo, que pessoalmente estudei e não é possível dizer que seus teóricos não tenham contribuído com uma teoria crítica da política como fazem certos setores da esquerda, ao contrário: muito do que Michel Foucault trouxe de original foi uma outra forma de pensar o poder; ou Jacques Derrida, com seu desconstrutivismo. Mas o fato é que uma vez esta geração dirigiu-se da universidade para a política, ao invés de promover uma atualização de seu pensamento, terminou por congelá-lo na minha opinião. Por exemplo, o Marxismo Lacaniano, do qual fazem parte os estudos de Slavoj Zizek e Alain Badiou, não parece ser parte da leitura da geração de esquerda que ocupa hoje o poder. E sem teoria, a prática escorrega nos modelos de análise arcaicos ou nas ideias pré-concebidas. Tais autores, de uma forma geral, levaram adiante uma proposta de relacionar a interpretação da economia na vida, o que começou a ser aliciado pelos conservadores em seu discurso. Fim da possibilidade de uma leitura crítica da economia do mundo que o marxismo mais recente possibilita, ascensão de racionalismo político oportunista para a conquista do poder. Quer dizer, para um esquerdista, formado pela leitura do Capital de Marx, é impensável qualquer aliança programática com partidos cujos programas aceitem o status quo capitalista, simplesmente porque se trata de uma construção social dissimulada. Não é possível apoiar o capitalismo simplesmente porque ele é em síntese uma estrutura que nos domina. A mercadoria e o capital são as categorias de uma forma de dominação que constroem estruturas compulsivas de inserção dos indivíduos no mundo. Mas esta esquerda não se deu conta foi dos constrangimentos da economia na medida em que decidiu pela conquista do poder. Parte deste argumento pode ser encontrado, por exemplo, na obra de Moishe Postone.

A esquerda vislumbrou os riscos do capitalismo, mas a luta pelo poder a fez esquecer deles. Coutinho mostra que os conservadores liberais não chegaram a este nível de consciência porque sempre preferiram identificar a sociedade capitalista com a “sociedade comercial”, como o fez Adam Smith. Essa sociedade também recebeu críticas dos conservadores: não se pode reduzir relações pessoais a relações econômicas, isto é, não se pode corromper a alma humana. “O livre-comércio, em suma, só consegue produzir uma sociedade de “filisteus” – um termo que, não à toa, tanto o conservador Matthew Arnold como o patriarca Karl Marx pediram de empréstimo a Heinrich Heine. E o fizeram para designar o mesmo problema: a lamentável mentalidade comercial e industrial das novas classes médias emergentes, tiranizadas por um amor à riqueza material que implicava um rebaixamento da dignidade básica (e fraternal) da natureza humana” (Coutinho, p.82). Não é exatamente a mesma mentalidade que vemos surgir nas redes sociais no debate político e na imprensa? Veja-se a análise da desembargadora do TJRS Naele Ocho Piazzeta em seu artigo intitulado “O pulso ainda pulsa” (ZH, 9/10, p.33). Ela argumenta que a convulsão social e a violência no país “dá medo”. “Um pais não pode ter suas políticas voltadas unicamente aos menos favorecidos. Deve atender a todos os estratos da população”. Como é que é? Essa é a voz que oculta o conservadorismo, pois votar na direita significa que “escolheu a manutenção do auxilio aos menos favorecidos com a perspectiva de que não será para sempre”. Essa é a mentalidade comercial das novas classes emergentes, conservadorismo de nossas classes médias urbanas. Nossa juíza atualiza o conservadorismo implementado por Thatcher que retirou o Estado de muitas áreas de atividade econômica, um programa explícito de desregulamentação e liberalização. Não é à toa que tanto Thatcher e, podemos dizer, nossa juíza compartilham de um certo individualismo.

Para um conservador, a defesa da sociedade comercial ocorre porque a sua função é conservar as instituições que o tempo mostrou que são importantes para a comunidade. A existência e o sucesso de bancos, empresas e comércio para o desenvolvimento da sociedade é inegável: geram empregos e devem ser preservados por razões circunstanciais. Mas para os conservadores também há outro tipo de razões, razões substanciais para a preservação do mercado porque um governo deve respeitar por princípio a natureza humana e suas propriedades, entre elas a propensão a “negociar”, para este pensamento, o objetivo é levar os indivíduos a melhorar sua condição. Este é um argumento usado constantemente como critica à esquerda, já que “só um poder político tirânico podia suspendê-las ou destruí-las”, cita Coutinho. É essa ideia de uma ideia de economia que se alicerça na natureza humana que faz com que os discursos socialistas, em especial os do PSOL, PSTU e Causa Operária pareçam tão distantes da realidade: sua ideologia não consegue mais fincar raízes em um solo que crê na naturalização do Capital, no capitalismo como estrutura permanente e integrante da natureza humana. Por isso a afirmação do filósofo esloveno Slavoj Zizek, além de irônica, é atual: “é mais fácil imaginar o fim do mundo como conhecemos do que imaginar o fim do capitalismo”. Era fácil para os liberais do inicio do século XX provar isso: quando comparado com o fracasso das experiências coletivistas do socialismo, a experiência capitalista parece um sucesso. O conhecimento gerado pela análise do Capital em sua crítica à forma do Valor e do trabalho alienado não encontra eco na sociedade e o pensamento liberal fecunda com base no fato de que o capitalismo, a seu modo, distribui riqueza. Resta saber as consequências nefastas deste modelo de desenvolvimento para a sociedade. A proposta reformista e não revolucionária do PT ainda assume o espírito de crítica ao capital, mesmo com seu desvio ao centro. Para a direita e para a centro-esquerda (PT), o mercado já não é o diabo, ao contrário, sobreviveu ao “teste do tempo” exatamente por ser visto como parte da “ordem espontânea” (Hayek), mas enquanto que para a direita todo o esforço do estado em controlá-lo é em vão (Aécio), para o que resta de pensamento utópico na esquerda (Dilma) ainda é uma peça do tabuleiro, mas isso se fez perdendo-se toda a aspiração da esquerda a qualquer teoria explicativa capaz de propor uma solução final para as contradições do capitalismo. “Apelando ao interesse próprio de cada uma das partes, o mercado livre surge como um sistema no qual deságuam interesses próprios, porém reconciliáveis” (Coutinho, p. 92). Ora, a crítica marxista atual é justamente o contrário, apontam para o fato de que emergem nas condições atuais de desenvolvimento econômico via políticas neoliberais interesses irreconciliáveis no interior do capital cujo resultado é a produção do “lixo humano” (Zygmund Bauman), o exército humano de reserva inservível ao capital e que “sobra”, isto é, não encontra emprego e é condenado a marginalidade pelo próprio sistema. Ou ainda, como afirma Postone, o problema deste sistema criado pelo homem é que ele vitima o homem sem que ele possa ter consciência disso. Dito de outro modo, é a ideia de que o homem ao criar a estrutura se deixa dominar por ela. É por isso que a proposta de partidos que querem preservar uma identidade de esquerda não podem esquecer que o social jamais aceitará um passo definitivo na direção à aceitação da lógica do mercado em todas as esferas, porque isso significa a concessão à barbárie.

No mercado existem comportamentos reprováveis, eis a questão. Demissões em massa, exploração de empregados e subemprego. Como não lutar pela ampliação dos direitos sociais? Como não lutar pela ampliação dos direitos das minorias? Com não lutar por direitos a crianças e adolescentes? Ora com a nova direita que nem sequer é nova que emerge das ruas, todas estas pautas são colocadas em segundo lugar e tomam seu lugar programas relacionados à meritocracia, enxugamento da máquina pública, etc. Curiosamente, esquecem nossos conservadores atuais, que os antigos conservadores sabiam que o Estado tinha importância porque ele é que garante a paz e a ordem social; agora, torna-se apenas um eterno servidor dos interesses das grandes empresas – não é exatamente este o discurso de Aécio e Sartori, de investimento em grandes infraestruturas para servir a iniciativa privada? Só os liberais antigos davam importância superior a questão social, abandonada pelos atuais. Por isso, Margareth Thatcher foi mais conservadora que nossos aspirantes tupiniquins: ela garantiu, ao contrário da nossa juíza acima, que deveria ser resguardada a assistência aos mais desfavorecidos – “o governo também tem o claro dever de ajudar a cuidar dos doentes e dos velhos e de providenciar uma rede de proteção para todos aqueles que, sem culpa alguma, caem no desemprego, na pobreza e na privação”. (Thatcher, Defesa da Liberdade, p.12).

Por isso acredito que o que falta aos integrantes da esquerda é retomarem seus estudos sobre a natureza do neoliberalismo. Geoffroy de Lagasniere, em “A última lição de Michel Foucault”, propôs exatamente isso: mostrar que um efeito do neoliberalismo foi justamente provocar a uniformização e a limitação das ideias críticas ao sistema, erradicando as divisões teóricas e políticas. Agora, esquerda e direita compartilham a ideia de integração à economia neoliberal, minimizando seus “danos colaterais”, na visão da esquerda, ou garantindo as condições de sua reprodução a qualquer custo, na visão da direita. Fim do pensamento utópico. Quer dizer, sob o imperativo moral da esquerda de denunciar o neoliberalismo – reino do egoísmo, produtor de atomização social, etc, –, a esquerda perdeu a oportunidade de criar uma reflexão crítica sob o modo de transformação pela política dessa mesma sociedade. Por isso, o PT assumiu o discurso da ordem da regulação e não da transformação. E por isso muitos pensadores, entre eles Lagasniére, falam da necessidade de reinventar a esquerda. Não se trata mais de denunciar o consumismo ou individualismo, mas de criar uma estratégia. A eleição de conservadores em todos os estados deu bem a prova de que a esquerda não tem estratégia nova alguma a oferecer. É claro que as políticas sociais avançaram muito, etc, etc, mas o problema é que a pobreza é dado do sistema. Regra geral, a esquerda torce o nariz para a obra de Michel Foucault. Contudo, como aponta Lagasniere, a análise do neoliberalismo feita em sua obra “O Nascimento da Biopolitica” aponta à esquerda o verdadeiro lugar para depositar seu esforço critico. Esse lugar é o de mostrar que o ideal revolucionário que propõe é superior ao ideal neoliberal, cujo projeto, afirma Foucault, também na época consistia em “elaborar uma teoria radical, uma filosofia critica e uma prática emancipadora” (p. 15), ao menos em relação ao liberalismo, eis a questão.

Se o pensamento conservador é direita, sua ideologia de base é o neoliberalismo. Isto é verdade, apenas em parte. O próprio movimento conservador que surge a partir dos anos 70 e varre o mundo é feito por intelectuais, economistas e estadistas que visam promover o keynesianismo e o mercado livre como superiores a intervenção do Estado e as doutrinas da proteção social. Foram, por esta razão, Friedrich Hayek e Milton Friedman aqueles que mais influenciaram os governos de Margareth Thatcher e Ronald Reagan nessa época. O neoliberalismo destes tempos não é apenas conservador em sua linha política reacionária contrária a políticas sociais, ele é conservador em sua crítica aos componentes do pensamento de esquerda. Estamos há tempos batendo neste argumento. O caminho seguido pela análise de Michel Foucault é mais sutil: quer que a crítica ao neoliberalismo seja instrumento de autorreflexão do próprio pensamento marxista. Quer dizer, Foucault enumera a crítica da esquerda ao neoliberalismo como limitada e cheia de lugares comuns: “lugar da massificação”, etc. Para Foucault, tratam-se de críticas limitadas a aparência do capitalismo. Esta é a empreitada, por exemplo, de sua obra “Nascimento da biopolítica”: para empreender a crítica ao neoliberalismo é preciso detectar sua especificidade. De nada adianta transpor matrizes históricas antigas e criticar o neoliberalismo com base em sua origem ou reação ao liberalismo. Não se pode criticar o neoliberalismo com base no que ele mesmo derrotou.

A questão colocada por Foucault cai como uma luva para os discursos políticos dos candidatos. Porque o que eles colocam é justamente que a proposta neoliberal constrói novas percepções do Estado, do mercado e da propriedade, propostas de transformação do mundo em objeto. Por isso o pensamento neoliberal é contra qualquer forma de mudança no mercado propriamente dito e se coloca ao lado do status quo. Mas Foucault entende ainda assim que há diferenças entre neoliberalismo e conservadorismo. Os próprios neoliberais buscaram marcar esta diferença, ainda que no passado, suas posições fossem comuns quando se tratava da oposição ao socialismo. Foucault tem razão, assinala Lagasniere, já que não é a realidade neoliberal que está em questão – qual as realizações do PSDB enquanto partido no poder, e tc, etc – mas o projeto neoliberal. Quer dizer, não se trata de compreender a realidade social do governo Aécio Neves enquanto dirigente em Minas Gerais ou a realidade do governo petista de Dilma Roussef, mas apreender o projeto de governo aos quais eles buscam se identificar. Por que representa um projeto onde o objetivo é instituir a mercadização da sociedade, que o projeto de Aécio Neves é o caminho para a desestruturação do país. Como assinala Lagasniere, “para esses teóricos, o objetivo é claro: é preciso construir uma nova sociedade em que a concorrência impere”. A única forma social válida é o mercado. O contrato e a troca interindividual devem ser valorizados em detrimento de todos os outros tipos de relações humanas, bem como dos modos alternativos de alocação de recursos” (p.45). Ainda que diga o contrário, a manutenção da Bolsa Família não está nos objetivos do projeto neoliberal de Aécio Neves simplesmente porque é um atentado às condições de expansão do livre mercado que o partido visa defender. É um modo alternativo de alocação de recursos que a política neoliberal é incapaz de aceitar. Por que o neoliberalismo atual é diverso do liberalismo antigo e não pode ser comparado a este? O liberalismo clássico defendido por Adam Smith, com seu “laissez-faire”, queria limitar a intervenção do Estado; o neoliberalismo, defendido por partidários do PSDB, ao contrário, não quer disponilizar um espaço para o mercado, mas quer disseminá-la globalmente, quer estender suas regras a toda a sociedade, regulando o maior número de setores da vida social. “A utopia neoliberal consiste em inserir o máximo de realidade na esfera de um contexto de mercado” (p. 47). Por isso que qualquer iniciativa que se coloca no campo do Estado alinhado às políticas liberais “não visa em absoluto corrigir o mercado, opor à racionalidade econômica uma racionalidade social ou política, criar obstáculo ao funcionamento normal da concorrência, invocando exigências éticas, morais ou justiça social. Ao contrário, ele tem como objetivo colocar-se a serviço da forma mercado, trabalhar para seu desenvolvimento e sua institução generalizada” (Idem). Campo aberto para a subordinação da racionalidade política à econômica – e não é à toa que, desde os tempos de FHC, a principal herança neoliberal dos governos do PSDB tem sido o incentivo à privatização. É o governo para o mercado e seguindo a lógica de mercado.

Mas Coutinho encaminha suas reflexões em defesa do conservadorismo de forma a serem úteis também à esquerda. Ele ensina que é preciso compreender a lógica do pensamento conservador. Este pensamento ensina que não podemos agir na política como se as tradições não existissem; ele obriga os revolucionários a redefinirem sua noção de preconceito: no sentido clássico, preconceito vem de praejudicium, julgamento baseado em experiências passadas. O que o conservador quer é preservar tudo aquilo que sobreviveu ao teste do tempo. Os utopistas revolucionários aqui têm a obrigação de descobrir como o que prometem para o futuro será melhor do que o que os conservadores oferecem do passado. Conservadores são pessimistas em relação ao futuro: para eles, a ação revolucionária sempre irá gerar perversamente o inverso dos objetivos que se propunham alcançar. Se o pensamento conservador que quer chegar ao poder hoje coloca a questão “porque não mudar se as coisas estão tão ruins”, o espaço deixado para o discurso governista e de esquerda é justamente o de “para que mudar se as coisas podem piorar”. Se o primeiro parece ser o lugar de todos os que aspiram um lugar no governo, o segundo parece ser o lugar por excelência de quem está no governo. Essa posição não é contrária a possibilidade de mudanças. Tanto para conservadores como para revolucionários, o principio de base que podem compartilhar é que é possível sempre mudar quando se reconhece que algo existe, algo que chegou até nós. A tradição não é algo a ser refutado pelos revolucionários, mas ao contrário, é “algo que podemos criticar e mudar”, como diz Karl Popper, aliás (sic) outro conservador. De certa forma, atualiza-se no pensamento do filósofo uma afirmação do conservador Burke que deve ser aplicada à política “é preciso respeitar um princípio seguro de conservação e um princípio seguro de transmissão, sem excluir um princípio de melhoria”. O conservadorismo diz que a reforma é melhor que a revolução, e nisso enfrenta os revolucionários; mas o conservadorismo diz que algo do passado deve ser preservado ao futuro. E frente a isso, os revolucionários não podem ser indiferentes.

Bibliografia

COUTINHO, João Pereira Coutinho. As ideias conservadoras. São Paulo, Três Estrelas, 2014.
LAGASNIERE, Geoffroy. A última lição de Michel Foucaut. São Paulo, Três Estrelas, 2014.
MARX, K. Gundrisse. São Paulo, Boitempo, 2011.
______. O Capital. São Paulo, Boitempo, 2011.
POSTONE, Moshe. Tempo, Trabalho e Dominação Social. São Paulo, Boitempo, 2014.
ZIZEK, Slavoj. Alguém disse totalitarismo? São Paulo, Boitempo, 2014.

*Doutor em Educação pela UFRGS


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