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23 de setembro de 2014
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18:35

Alta rotatividade no governo do Rio Grande do Sul

Por
Sul 21
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Benedito Tadeu César*

O Rio Grande do Sul é o único estado da federação que nunca reelegeu seu governador. Desde 1997, quando foi instituído o estatuto da reeleição para cargos executivos (prefeitos, governadores e presidentes), até hoje o eleitorado gaúcho trocou, a cada eleição, o seu governador. Na ausência de estudos acadêmicos sobre este fato, muitas explicações têm sido aventadas, nos meios políticos e jornalísticos, mas nenhuma delas revelou-se satisfatória até aqui.

As interpretações em curso têm se centrado nas características do eleitorado gaúcho, apontando-o como mais crítico e mais politizado do que o dos demais estados brasileiros. Em decorrência do alto grau de criticidade e de politização do eleitor gaúcho, ele se desencantaria mais facilmente do que os eleitores dos outros estados brasileiros e puniria mais fortemente seus governantes. Descontentes com os rumos dos governos que escolheram em uma eleição, os eleitores gaúchos não renovariam seu voto na eleição seguinte.

Uma explicação contraditória e até ingênua, como costumam ser os rompantes bairristas, e que, sob a aparência de valorizar o eleitor gaúcho, acaba por desvalorizá-lo, desvalorizando ao mesmo tempo o conjunto dos políticos rio-grandenses. A se aceitar esta explicação, o eleitor gaúcho seria um errante contumaz, recorrentemente enganado por políticos altamente capacitados na prática da dissimulação.

Que eleitor politizado e crítico seria este que se deixaria enganar de modo recorrente, a ponto de fazer uma nova aposta a cada eleição, se arrepender da escolha feita, mudar o voto na eleição seguinte e perceber, logo adiante, que tornou a errar, mudar de voto e novamente errar? Visto nesta perspectiva, de duas uma: ou o eleitor gaúcho não sabe fazer escolhas ou não há boas escolhas a fazer!

A aceitação de qualquer das alternativas implicaria na decretação da falência da democracia ou, de modo ainda mais trágico, da falência da própria política como meio para a escolha de governantes e para a definição do caminho que uma determinada sociedade deseja trilhar.

Acredito que existe uma explicação possível, mas ela não está nem nas boas qualidades do eleitorado gaúcho, nem nas más intenções dos políticos rio-grandenses. O que ocorre é que a política do Rio Grande do Sul está dividida, há muitos anos, em dois grandes blocos, que se encontram em constante reordenamento interno e em forte enfrentamento entre si. Mudam os governantes, as forças dos seus partidos se alteram, os partidos trocam de nomes, mas os blocos e seus confrontos se mantêm.

A alta rotatividade no poder é histórica no Rio Grande do Sul, ocorrendo sempre que acontecem eleições livres e diretas para a escolha dos governadores, tanto durante o período democrático de 1945/1964, quanto durante o período democrático atual, iniciado em 1982. Considerando-se estes dois períodos, nenhum partido político se sucedeu no governo do Rio Grande do Sul.

A sequência de governadores e partidos eleitos democraticamente foi a seguinte: Walter Jobim/PSD (1947/1951), Ernesto Donelles/PTB (1951/1955), Ildo Meneguetti/PSD (1955/1959), Leonel Brizola/PTB (1959/1963), Ildo Meneghetti/PSD (1962/1966); Jair Soares/PDS (1983/1987), Pedro Simon/Sinval Guazzelli PMDB (1987/1991), Alceu Collares/PDT (1991/1995), Antônio Britto/PMDB (1995/1999), Olívio Dutra/PT (1999/2003), Germano Rigotto/PMDB (2003/2007), Yeda Crusius/PSDB (2007/2011), Tarso Genro/PT (2010/2014).

A grande alternância de governantes e partidos eleitos democraticamente para o exercício do governo aparentemente reforça a tese da alta capacidade punitiva do eleitorado gaúcho. Mas a observação mais cuidadosa da dança das siglas partidárias nos dá outra explicação.
A análise da alternância de partidos no período de 1947/1966 evidencia que PSD e PTB se sucederam mutuamente no governo do Rio Grande do Sul durante todo o período. Ainda que houvesse cerca de 10 outros partidos políticos atuando no Estado, nenhum deles chegou ao governo, revelando a existência de uma forte polarização partidária. O Rio Grande do Sul estava dividido entre petebistas/trabalhistas e antipetebistas, estes últimos aglutinados em torno do PSD.

A divisão em dois grandes blocos, tanto no Estado como no país, da forma mais simples como é possível expressar neste espaço de análise, sempre ocorreu entre as lideranças que se preocupavam com estratégias para o crescimento econômico, sem a paralela preocupação com a distribuição das riquezas geradas, e as lideranças que se preocupavam com a distribuição das riquezas, ainda que, para distribuí-las, precisassem preocupar-se também com sua produção.

Posições intermediárias existiram, por certo, mas foram incapazes de romper esta polaridade, o que explica por que, no século XX, o Brasil se modernizou ao mesmo tempo em que se tornou uma das nações socialmente mais desiguais do mundo.

No Rio Grande do Sul, durante o período iniciado em 1982 e ainda em curso, apenas cinco partidos se sucederam no governo, não obstante tenham existido em torno de 30 partidos durante todo o período. A divisão PTB e anti-PTB, rompida artificialmente durante o período da ditadura e substituída pela divisão MDB x ARENA, foi apenas parcialmente recomposta no início do período democrático atual, pois os antigos petebistas, que haviam se refugiado no MDB durante a ditadura, dividiram-se, na reabertura política, principalmente entre o PMDB, que sucedeu o MDB, e o PDT, que sucedeu o antigo PTB.

Com esta divisão, a primeira eleição democrática pós-ditadura foi vencida pelo PDS, o partido que sucedeu a ARENA, a qual congregava os apoiadores da ditadura que haviam sido os antigos antipetebistas/antitrabalhistas.

O PMDB ganhou a eleição seguinte, foi sucedido pelo PDT, mas voltou ao governo na eleição subsequente, dando a impressão de que se iniciava um ciclo de hegemonia trabalhista, exercida de modo alternado pelo duo partidário PDT/PMDB. Um duo “trabalhista” composto por um polo mais forte e mais tradicional deste campo, representado pelo PDT, e um polo não tão forte e tradicional, representado pelo PMDB.

As alterações na estrutura econômica e social do país e no perfil dos trabalhadores brasileiros, ocorridas durante as décadas de 1970, 1980 e 1990 e que tornaram o Brasil um país industrial, urbano e extremamente desigual, fizeram com que o PDT fosse substituído como representante preferencial dos então chamados “novos trabalhadores urbanos brasileiros”. O PT assumiu o seu lugar. Constituiu-se, assim, um bloco ideológico-partidário que, além de “trabalhista” pode ser caracterizado como de centro-esquerda, reunindo PDT, PMDB e PT, relativamente unificado no nível nacional, mas altamente fracionado no nível estadual.

Por outro lado, as lideranças antes reunidas na ARENA, responsáveis pelo projeto de crescimento da riqueza durante a ditadura e em crise desde o final dos anos 70, perderam fôlego, abrindo-se o espaço para o surgimento de um novo projeto de crescimento, assumido no país pelo PSDB e pelo PFL (depois denominado DEM), e que passou a ser apoiado pelas antigas lideranças antitrabalhistas. Constituiu-se, então, um bloco ideológico-partidário que pode ser caracterizado como de centro-direta, altamente unificado, tanto no nível nacional, quanto no estadual.

Observando esta trajetória, é possível concluir que os eleitores gaúchos têm reconduzido, sim, seus governantes. Ainda que eles não tenham reelegido seus governadores, nem mantido os mesmos partidos por mais de um mandato no governo estadual, eles têm conservado, desde a redemocratização, o bloco “trabalhista” de centro-esquerda à frente do governo do Estado durante a maior parte do tempo, mesmo que este bloco mantenha uma altíssima competitividade interna, com o PMDB e o PT se alternando na sua liderança.

Em termos partidários, somente Yeda Crusius rompeu a alternância petista/pemedebista, levando o PSDB ao governo estadual. Tratou-se, na verdade, de uma vitória circunstancial, ocasionada mais por erros estratégicos de petistas e de peemedebistas, do que pelo súbito fortalecimento do PSDB. PT e PMDB se enfrentaram direta e fortemente desde o final do primeiro turno das eleições estaduais, dando chance para que o PSDB assumisse a liderança, também no Rio Grande do Sul, do bloco de centro-direita, que reunia as antigas forças antitrabalhistas em todo o país.

Ainda que enfraquecidos, os antigos antitrabalhistas, responsáveis pelo projeto de crescimento adotado durante a ditadura no país, nunca deixaram de existir enquanto força política no Rio Grande do Sul, detendo aqui força maior do que passaram a deter no restante do país, mesmo que os principais partidos que lideram este bloco tenham trocado de nome, passando de PSD/ARENA, para PDS, para PPB e finalmente para PP ou de PFL para DEM.

Ocupando posição secundária, estas forças antitrabalhistas estiveram presentes no governo Britto e assumiram posição de relevo no governo Yeda Crusius. Hoje, lideradas pelo PP, disputam, com chance real de vitória, o governo do Rio Grande do Sul, com a candidatura de Ana Amélia Lemos, o que mostra que este bloco conseguiu, finalmente, se recompor a ponto de oferecer perigo à continuidade da hegemonia “trabalhista” no Estado e à manutenção do ciclo de alternância do duo partidário PT/PMDB à frente do governo estadual.

A divisão de forças dentro do bloco “trabalhista” garantiu a vitória do PDS (sucessor da ARENA) no início dos anos 80. Nas eleições de 2006, as forças “trabalhistas” se dividiram, o que possibilitou que Yeda Crusius/PSDB, à frente das forças anti-“trabalhistas”, agora caracterizadas como forças antipetistas, vencessem as eleições daquele ano. Hoje, a repetição da mesma divisão traz a possibilidade de que Ana Amélia Lemos/PP, à frente das mesmas forças de centro-direita, anti-“trabalhistas”/antipetistas, vençam as eleições.

A análise da trajetória dos partidos nas eleições gaúchas indica, portanto, que não são a alta criticidade e o alto grau de politização do eleitor gaúcho ou, ainda, a má qualidade dos políticos gaúchos que explicam a alta rotatividade dos partidos e sua grande alternância no poder no Rio Grande do Sul. O que as explica é a capacidade ou a incapacidade dos dois grandes blocos de forças políticas no Estado de se articularem internamente, seja de um lado, seja de outro.

*Cientista político


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