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19 de agosto de 2014
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14:40

A necessidade de uma leitura antropológica da política

Por
Sul 21
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Jorge Barcellos*

Uma eleição põe em jogo mais do que candidaturas. Põe em jogo um universo. Ela envolve ideologias políticas ou plataformas, o maior ou menor engajamento na campanha, a emergência de novos atores, os “cabos eleitorais”, a criação de redes sociais e suas divisões, incluindo, inclusive, no pior dos casos, ligação com o mundo do crime. Nesse universo político, impera a troca de favores, a influência dos políticos nos escalões da administração, a capacidade de apressar ou intermediar a conquista de empregos. É um mundo onde “o que conta não é o que você sabe, mas quem você conhece”. Remeter a análise das eleições para dentro da lógica da sociedade local é observar os valores morais relacionados à política, é observar como as campanhas se introduzem nas famílias, no trabalho, nas relações entre candidatos e público, demonstrando o modo como atualizam laços e como os atores demonstram publicamente as alianças, ingrediente central da política. Após as eleições, emergem novos problemas: para os candidatos, como manter-se fiel às suas origens ou ceder às negociações, dilema para o político que precisa cumprir sua obrigação de distribuir favores, bens e empregos em um universo de recursos escassos ao mesmo tempo que precisa continuar lutando para ampliar seu apoio junto aos diversos grupos sociais que o elegeram, visando às próximas eleições. Não sejamos ingênuos: nesse universo, o dinheiro tem papel fundamental, já que envolve o financiamento de campanha, a prestação de favores e trocas pessoais. A política — ensinam os antropólogos — tira sua força da honra: tudo remete ao simbólico na política: os comícios e seu ambiente, a hierarquia do palanque, o ritual das falas e dos discursos, os apelos à emoção, a ênfase dos vínculos do político com a comunidade, que fazem parte da política até o dia da eleição. Servindo de cimento entre as variáveis, a honra do político em cumprir sua palavra, a honra do cidadão que promete seu voto ao seu candidato. Descrição do funcionamento da política hoje? Nada disso! Descrição da política feita por William Foot Whyte, em sua obra “Sociedade de esquina”, publicada pela primeira vez na década de 1940 e considerada uma das obras fundadoras da antropologia política.

Quando os antropólogos se dedicam a estudar a política produzem uma alteração no modo de interpretação do sistema político, dos atores e suas relações. Essa mudança advém da ênfase que os antropólogos dão às crenças e ao modo de funcionamento cotidiano dos atores no interior das estruturas políticas, isto é, a descrição dos sistemas de status e função que cercam os atores políticos no processo eleitoral, os direitos e obrigações que estabelecem entre si os mecanismos de poder microscópicos que se efetuam em suas práticas. Às vésperas de mais uma eleição, o que nos ensinam os estudos de Antropologia da Política? Muitas coisas. Vejamos um pouco desta história.

A rigor, os antropólogos só se colocaram o dilema da política no momento em que deixaram de estudar unicamente sociedades primitivas e passaram a estudar sociedades civilizadas. Estes estudos são recentes e as conclusões ainda estão sendo assimiladas pelos analistas de plantão. No Brasil, a antropóloga Karina Kuschnir tem-se dedicado a estudar a política do ponto de vista antropológico. Em “Eleições e Representação no Rio de Janeiro” (Relume Dumará, 1999), Kuschnir analisou a trajetória de vereadores da Câmara Municipal carioca analisando sua relação com eleitores, jornalistas, parlamentares, funcionários públicos e jornalistas. Em outra obra sua, “O Cotidiano da Política” (Zahar, 2000), analisou a trajetória de um deputado estadual reeleito à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, sem perder suas relações com o local. Em “Antropologia da Política” (Zahar, 2007), de onde é extraída a maioria das citações deste texto, Kuschnir coloca a questão central da antropologia da política como disciplina, isto é, a autora o define como o campo, cujo objetivo é entender como os atores sociais compreendem e experimentam a política. Quer dizer, a contribuição dos estudos de antropologia política à análise do processo eleitoral está na valorização que faz das formas de interação e produção de significados feito pelos atores no universo político, o que significa que o mundo da política não é um dado a priori, mas definido a partir das formulações e comportamentos das pessoas em seus contextos. Essa abordagem tem o mérito de dar uma visão de conjunto, com variáveis além da política, para candidatos, assessores, cabos eleitorais e cidadãos.

Historiografia dos estudos de antropologia política

Até a década de 1920, a política estava fora do campo de investigação dos antropólogos. Dedicada a entender o funcionamento das sociedades primitivas, o estudo das sociedades modernas não estava no horizonte da antropologia porque os pesquisadores viviam sob a hegemonia do pensamento evolucionista dos primeiros anos da sua ciência, o que fazia com que a natureza das sociedades primitivas fosse pesquisada à exaustão e nada se fizesse em relação às sociedades contemporâneas.

Os primeiros estudos da tradição estrutural-funcionalista em antropologia introduziram a dimensão da política ao começarem a colocar-se a questão de como determinadas sociedades primitivas podiam sobreviver sem um Estado. Alfred Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard e David Easton foram os primeiros a abrir caminho para a antropologia política, isto é, para a construção de uma disciplina preocupada com o estudo do sistema político de uma sociedade como base para o entendimento de suas demais instituições. Quer dizer, os antropólogos aproximaram-se da política por caminho diverso dos cientistas políticos porque introduziram-na a partir do estudo das relações de parentesco, lógica que gerava permanentes conflitos entre povos de um mesmo território. A abertura dos antropólogos para a política deu-se porque ela não se resumia a um organismo central, à existência de um Estado; ela se efetuava pela existência de um relacionamento estrutural entre os indivíduos que era político, eis a questão.

Muitos estudos de antropologia das sociedades primitivas serviram para sustentar essa ideia: Radcliffe-Brown defendia o estudo do sistema político como meio privilegiado de acesso as suas instituições em seu “Sistemas Políticos Africanos”; Edmund Leach em sua obra “Sistemas Políticos da Alta Birmânia” também via nos conflitos da política uma saída para a narrativa equilibrada da maioria das análises antropológicas. Para os primeiros antropólogos, a política era uma dimensão importante para demonstrar a instabilidade das sociedades primitivas. Outros autores, além de estarem interessados na política como lugar de tensões entre os atores, viram nela o espaço de realização de noções clássicas da antropologia, como a de ritual, largamente utilizada pelos antropólogos como Victor Turner, autor de “O Processo Ritual”.

Para esses autores, o Estado não era o clímax do desenvolvimento humano, que deixava as sociedades primitivas para trás. Ao contrário, eram as relações de parentesco, religiosas e étnicas que passavam a ter um significado político. Essa virada foi um momento significativo para a antropologia, porque permitiu denunciar os efeitos perversos do estado colonial na desestruturação dos povos dominados, especialmente os africanos. A partir de então, a antropologia contribuiu com algumas ideias-chaves para entendimento dos sistemas políticos, tais como:

– a ideia da existência de regras universais de comportamento humano, reveladas pela análise das práticas políticas. Elas envolvem o desvelamento de regras não explícitas pelos atores envolvidos, baseadas numa sabedoria popular capaz de provocar resultados eficazes na política. Por exemplo, independente do lugar, todas as culturas teriam táticas de manipulação política só reveladas pela pesquisa etnográfica;

– a ideia de que as relações de poder são intrínsecas às relações sociais, isto é, o poder e a política estão presentes em todas as relações sociais: o poder político é universal e inerente à sociedade. Talvez Pierre Clastres, autor de “A sociedade contra o Estado”, tenha formulado esta tese de forma mais compacta: “a finalidade do poder não é impor a vontade do chefe sobre o grupo, mas sim expressar ‘o discurso da sociedade sobre ela mesma’, de modo a preservar seu caráter solidário e indiviso” (Kuschnir, p. 17).

– a ideia de que pelo conceito de “cultura política”, na linha aberta por Almond & Verba, autores de “A Cultura Cívica”, podem ser postos em evidência os aspectos subjetivos das orientações políticas, o que inclui percepções, sentimentos e avaliações dos cidadãos, bem como o papel da socialização efetuado por instituições como família, escola, trabalho e partidos na definição do comportamento político. Agora, tais atores e instituições fazem parte da constituição de uma rede de significados presentes nas atividades políticas, afetam as eleições, a organização partidária, o funcionamento de campanhas, etc.

– a ideia de que o método antropológico clássico, o etnográfico, é capaz de elucidar as motivações, emoções e valores que dão significados às ações políticas.

A antropologia da política ocupa-se daquelas dimensões deixadas de lado pela ciência política: a dimensão da subjetividade na campanha; a recuperação da política no drama das relações natureza x cultura; o estabelecimento de um método de investigação mais pessoal – e menos estatístico – para a análise do fenômeno político. Essas ideias repercutem na interpretação da campanha de diversas formas. Veremos algumas.

Novas dimensões do voto

Essas ideias permitiram a emergência de conceitos novos sobre o processo político que devem ser consideradas pelos analistas políticos de plantão. Elas ajudam a entender porque determinado político conquista ou não a simpatia da população, é aceito ou não em sua proposta de ação, porque inclui variáveis que são muitas vezes desprezadas pelas abordagens tradicionais. A primeira característica dos estudos de Antropologia da Política é que define o voto não por possuir unicamente uma dimensão racional e individual, mas porque representa um ato de adesão a setores sociais. Isto é, votar em um candidato não é uma escolha racional, é um processo de adesão política, é um processo de envolvimento (Agnes Heller), processo amplo que envolve o indivíduo e seus sentimentos, sua família, suas redes de relações e que não está longe de conflitos. As eleições provocam discussões familiares, são parte das conversas que as pessoas têm com seus amigos e parentes, e por esta razão criam novos conflitos, muitas vezes ideológicos, entre esses atores. Tomar partido, diz-se, é algo muito maior que a política, eis a questão.

A razão é que a política é um ingrediente da vida social. Moacir Palmeira e Beatriz Heredia em “Como se fazem eleições no Brasil” criaram o conceito de tempo da política para apontar para o fato que é justamente sua natureza periódica que faz o processo eleitoral ser percebido pela população como parte da sua vida social. As eleições estabelecem a repetitividade, é seu caráter cíclico que faz com que o processo eleitoral assuma força e vitalidade na sociedade. Ele é como se fosse um ponto de fundação, de recomeço, exatamente como são outros fatos que pontuam a existência, as datas célebres, etc. Não é o que acontece a cada dois anos? Por mais que a sociedade faça críticas à política e aos políticos, a cada dois anos a comunidade vive a intensidade das eleições, posicionando-se a favor e contra, participando de assembleias, fazendo campanhas. Por que isso ocorre? Para os antropólogos não são suficientes plataformas e ideias, é preciso algo mais. Esse “algo mais” refere-se a estruturas arcaicas presentes ainda em nossa sociedade e que são movimentadas pela política. Se em nossas sociedades a união e a estabilidade são representadas sob a forma do modelo familiar, o processo político introduz a necessária tensão e movimento necessários à vida cotidiana. Por isso sua sazonalidade é tão importante, o cidadão sabe que, em certos períodos e por determinado tempo, sua vida cotidiana será ultrapassada pela campanha e seus conflitos. Vantagem da dimensão política, ser “identificado com a divisão e o conflito” (Kuschnir, p.33). Quer dizer, a política é uma dimensão da vida social que tem força porque rompe com estruturas de organização da vida cotidiana tradicionais, estabelece rupturas com o tempo que passa. Por esta razão é preciso observar, como a etnografia faz, o modo como a política imbrica-se nas demais relações sociais e por ela é produzida, como é construída uma campanha ao longo do tempo, os detalhes das articulações, o vaivém das negociações, a conquista do eleitor, as visitas e as fotos, tudo enfim, dimensões consideradas superficiais, a “espuma da política”, diria o sociólogo francês Michel Maffesoli: a profundidade da política está na sua aparência. Superação da visão clássica na qual a política é apenas uma opção entre um candidato e outro; é mais, é uma pratica simbólica e social que envolve a sociedade porque colabora na regulação do tempo da sociedade.

Não é à toa que o discurso político dos candidatos refere-se sempre à categoria do tempo. Não é o que fazem os atuais candidatos? Veja a proposta de Aécio Neves: seu “novo” é a promessa que, a partir de seu governo, vai recuperar a credibilidade financeira do país, reduzir o número de ministérios e implementar o “choque de gestão”. Ora, isso não é estabelecer também a ruptura com seu antecessor com a promessa do “novo”. Veja-se o discurso de Dilma na convenção nacional do PT no último dia 26 de junho. O que era seu discurso de continuidade ao afirmar que as pessoas querem que a mudança no país continue “pelas mãos daqueles que já mostraram que têm capacidade”. O que os antropólogos querem dizer é que estas construções de significados são construídas porque é o tempo que está em questão sempre, mas isso só não basta. É preciso também apontar que tão importante quanto o que diz um candidato ou outro é a rede de relações e de significados que surge ao seu redor, o que realmente conta para a política. Por isso conta-se com as convenções para a reprodução do discurso, conta-se com a existência de diretórios regionais para reproduzi-lo, espera-se a criação de um engajamento dos partidários da eleição de um e outro candidato, que levam o discurso das reuniões plenárias para “onde o povo está”, espera-se que as expectativas que se criam junto aos demais níveis de organização (estadual, municipal) sobre eventuais benefícios com a eleição de seu candidato amplie o esforço de cada deputado e vereador engajado. Enfim, não basta um candidato ter discurso, é preciso estabelecer relações. De certa forma, apontam os antropólogos, isso ocorre porque para o cidadão comum interessa quem possa ajudá-lo de fato a resolver um problema, o cidadão deseja que os conflitos sejam gerenciados não por ‘representantes’, mas por ‘mediadores’, as ‘pessoas poderosas’ de muito ‘conhecimento’ e que são percebidos como indispensáveis na gestão das relações sociais e no atendimento às demandas da população, diz Kuschnir (p.35). Por isso, a ideia de rede é valorizada pelos antropólogos, por que é aí que uma serie de atores vinculados aos candidatos majoritários ganham proeminência, desde a vereadores engajados no processo eleitoral para candidaturas aos demais níveis, como também os cabos eleitorais, gente que estabelece redes junto às comunidades. A política tem sua hierarquia. Completa Kushnir: (..) o político atua como mediador entre comunidades locais e diversos níveis de poder. Esse fluxo de trocas é regulado pelas obrigações de dar, receber e retribuir, a que o antropólogo Marcel Mauss chamou de ‘lógica da dádiva’, e cujo princípio fundamental está no comprometimento social, para além das coisas trocadas, daqueles que trocam (p.36).

A recusa do clientelismo

Uma questão que deixa os cientistas políticos de cabelos em pé é a ressignificação que os antropólogos dão ao conceito de clientelismo. A existência da esfera política de trocas – a dádiva – entre os atores envolvidos assume uma dimensão particular segundo os antropólogos. A ideia surge em Marcel Mauss que, em sua obra “Ensaio sobre a Dádiva”, narrou os significados das trocas materiais sob o signo da espontaneidade nas sociedades primitivas. A inspiração é durkheiminiana, do conceito de fato social. Tomado por Mauss, a dádiva é a dimensão do fato social total que engloba diversos níveis da vida coletiva. Para os antropólogos, vale para os políticos o que vale para a interpretação das sociedades primitivas – posição compartilhada também pelo sociólogo francês Jean Baudrillard. A política, no fundo, no fundo, é uma estrutura arcaica de relação social. As redes de relações com políticos, que se estabelecem sob os mais variados pretextos, são a atualização do regime da dádiva, quer dizer, o que Mauss via como característico da dádiva para os primitivos, a tensão entre obrigatoriedade e espontaneidade nas trocas sociais, retorna no político. O que é o esforço de um cidadão para obter um auxílio para uma vaga em um hospital? O que é o esforço para a obtenção de um auxílio para vaga em um curso pré-vestibular se não a atualização da dádiva, uma obrigação de troca dita “espontânea”, mas ao mesmo tempo criando compromissos – o voto. Ora, é essa dimensão que o conceito de clientelismo oculta, de que os favores prestados de forma dita “descompromissada” entre candidatos e eleitores são na realidade um complexo sistema simbólico. O que é o “convite” para um beneficiário de um candidato visitar uma reunião de partido se não uma “obrigação” ao mesmo beneficiário, que aceita como “convite” e participa do evento? Essa ambiguidade dos termos envolvidos é que torna as relações estabelecidas válidas para serem observadas pelo viés antropológico. Quer dizer, é mais do que a privatização de bens públicos, o uso por um político de um bem provido pelo Estado para auferir benefícios, é algo diverso disso. O ponto de vista da antropologia da política introduz o método etnográfico onde o pesquisador observa a visão do cidadão, do eleitor comum, o interior do seu sistema de valores, para reconstruir sua cultura política. Quer dizer, ao contrário do que se pensa, o cidadão que faz uso dos préstimos que um político pode lhe oferecer o faz conscientemente, porque valoriza o acesso a bens e serviços públicos aos quais ele julga que não teria acesso de outra forma. Não há certo nem errado, e por esta razão, algumas abordagens como a antropo-sociologia de Michel Mafessoli presente em sua obra “O Nascimento das Tribos”, foram taxadas de positivistas pela crítica. Num certo sentido, acontece com os cidadãos o que Michel Mafessoli chama de “aceitação do destino”: os recursos já são apropriados pela elite e o cidadão aceita essa característica como parte do sistema; se o cidadão consegue compartilhar, ter acesso a eles através do político, isso não é ruim, faz parte de um sistema de dádivas e contradádivas adequado à situação. O primitivo se atualiza no moderno: o universo da dádiva é este campo simbólico no qual compartilhar é uma obrigação e estar ao lado do político já é motivo de prestígio e já conta. Não é o que vemos com as carreatas de norte a sul do país feitas pelos candidatos no período eleitoral? Não é o que se vê na rotina dos gabinetes e seu eterno ritmo de indicações e favores?

Não que os antropólogos justifiquem tais práticas, o que eles querem fazer é explicar como funcionam. Quer dizer, o que os antropólogos ensinam é que para compreender exatamente o sentido de uma eleição, é preciso superar o exame das trajetórias individuais dos candidatos, é preciso procurar mapear as redes sociais que os rodeiam e sustentam, é preciso buscar no nível simbólico como se alicerçam as relações de apoio e solidariedade.. Não se trata apenas de optar entre um candidato progressista ou conservador, ou um de direita ou de esquerda, se trata de buscar suas relações microscópicas, suas relações com lideranças sindicais ou empresariais, os contatos que estabelecem com autoridades de outros escalões, o modo como se fazem rodear de representantes da intelectualidade, do meio artístico até chegar ao cidadão comum. Para Kuschnir, estes aspectos, mais do que qualquer outros, são os que “têm permitido discutir a multiplicidade de percepções e valores associados à prática política”. E completa: “os parlamentares atuam também como mediadores fundamentais entre diferentes níveis de cultura, servindo como tradutores e agentes entre os valores, projetos e dramas da população, de um modo geral, e as esferas constituídas do poder público” (Kuschnir, p.37-38).

O caráter cerimonial da política

Ao retornar aos aspectos arcaicos das sociedades primitivas e mostrar sua atualização em fatos cotidianos, um dos aspectos mais fascinantes da antropologia é a demonstração que faz do retorno do caráter cerimonial de nossa sociedade através da política. Movimento semelhante foi feito pelo sociólogo Jean Baudrillard na obra “A troca simbólica e a morte”. Nesse pequeno tratado da fundação do simbólico, o autor mostra que o fundamento da função simbólica é a necessidade do homem em explicar para si mesmo a finitude, a própria morte. Esta é a razão por que primitivos e modernos têm tantas semelhanças, que não são assim tão distantes uns dos outros, como presunçosamente nos julgamos com nossa técnica, porque o que funda o simbólico nos primitivos está por detrás do que organiza o mundo dos contemporâneos. Que é o capitalismo, sugere Baudrillard, se não uma grande máquina para nos fazer esquecer, com sua ênfase no consumo, a própria morte? Para se relacionar com a morte, diz Baudrillard, o homem criou uma distância: são os ritos, as atitudes cerimoniais. É assim nas cerimônias fúnebres. Mas a dimensão cerimonial do mundo, no qual os rituais se impõem, estrapolou-se para todas as coisas. Não é à toa que os estudos políticos de Giorgio Agamben estão justamente concentrando-se na gênese da pessoa humana moderna, do valor de inteligibilidade de estruturas tradicionais – como na igreja – e as transformações causadas pelo capitalismo. Para Agamben, “Deus não morreu, tornou-se dinheiro”, e o fato de demonstrar que a organização religiosa e seus rituais são peças chaves para explicar dinâmicas como a globalização e a produção mundial da pobreza não é uma observação qualquer. Afinal, foi o campo religioso o primeiro a resolver – criar cerimônias – o drama da finitude. Para Baudrillard, um mundo sem cerimônias é um mundo confrontado com a própria morte, o cerimonial e o ritual são as estruturas que nos distanciam dela, nos lembram que é preciso cumprir uma série de etapas anteriores e necessárias para a realização daquilo que queremos. “Rituais são cerimônias que reforçam e atualizam papeis sociais”, diz Kuschnir (p38), e fazemos a questão paradoxal, o que são papeis sociais se não aquilo que assumimos em nós mesmos que afirmam a vida contra o império da morte? Ao mostrar que a política também tem seus rituais, a antropologia quer mostrar que a humanidade, o ser humano em suas contradições entre a vida e a morte atravessa todas as suas expressões.

A principal característica da ritualidade política é a repetição. Pense: quantas vezes você viu a imagem de um político com uma criança? Quantas vezes você já viu a cena de um político abraçando o eleitor? Essa repetição faz parte do cálculo da política, a repetição ritualizada dos mesmos gestos, mesmos trejeitos, o mesmo sorriso, o mesmo aperto de mão, repetido exaustivamente pelos candidatos, às vezes até inconscientemente, em suas campanhas eleitorais. Faz parte do cerimonial de apresentação do candidato aproximar-se do eleitor, estar com ele, buscar essa proximidade que beira ao fantástico. È preciso colocar etapas entre o sujeito e o seu destino: assim é na vida em relação à morte, assim é para o candidato em relação à eleição. Numa festa promovida por cabos eleitorais, o cidadão precisa ser apresentado ao candidato por um intermediário, aliás, precisa ser primeiro convidado. De um lado, o candidato reforça os seus valores de base; de outro lado, o cidadão se transforma em seu eleitor. Como criar laços entre eleitores e candidatos durante uma campanha? Para Kuschnir, esse é o problema real das eleições, já que a identidade entre eleitores e candidatos é muito variável. É preciso de outra forma de aproximação “quando festas, celebrações e trocas expressam esse estado liminar da identidade dos candidatos com seus eleitores” (Kuschnir, p.39). A política não é para qualquer um, é uma atividade de risco, requer habilidades especiais. Só se entra pela “mão” de alguém, se “é introduzido na política”. Mas, uma vez introduzido na política, qualquer lugar é espaço para a política, restaurantes e bares, tudo enfim transforma-se em espaço de confraternização política, outra forma de obter alianças.

A festa da política

A política reproduz-se nos espaços de festa. A dimensão dionisíaca da vida social foi bem defendida por Michel Mafessoli em sua obra “A Sombra de Dionísio”. A ideia é que o social é menos produtivo do que parece. Fim da hegemonia do trabalho, eleição da dimensão dionisíaca da vida como fundamento do social. É por essa razão que os espaços de festas são privilegiados para a ação política durante as eleições. São espaços que combinam a doação de simpatizantes com o estabelecimentos de hierarquias onde são aceitos ou recusados os novos em sua relação com o candidato. O candidato é distinto dos demais, mas todos agem como se fosse tudo “de igual para igual“. Agora, o que há de ritual nas festas de candidatos? Nelas há etapas mais ou menos similares. A primeira é aquela onde o político faz promessas a todos de acesso a bens e serviços; o segundo é aquele em que os moradores contribuem de alguma forma com o candidato; o terceiro é aquele em que se tratam de igual para igual – todos comem junto, diz Kuschnir para, finalmente, os convidados fazerem suas promessas de voto. Pois é isso que ocorre, o candidato se torna candidato a partir de uma promessa feita a um cidadão. O candidato é um devedor e relações de prestigio são estabelecidas na comunidade: se um candidato vai à casa de um eleitor, ele reforça o prestigio deste eleitor na comunidade; se um eleitor fixa cartazes da campanha em sua casa reforça seu prestígio junto ao candidato. A eleição só existe se o candidato for capaz de celebrar com seus eleitores sua candidatura, exatamente como definido por Victor Turner em “O processo ritual”: a festa é essa celebração com o coletivo, um comunitas – um espaço/estado simbólico de igualdade entre os homens – e onde se experimenta a suspensão da estrutura social (Kuschnir, p.44). A festa é esse pequeno ambiente de sociabilidade, evento ritual que suspende as identidades cotidianas e as substitui por uma outra encenação de igualdade entre candidato e eleitor. Mas, diz a autora de “Antropologia da Política”: “essa igualdade só vale para o período eleitoral, é sempre temporária e liminar” ( Kuschnir, p..44-45).

A campanha eleitoral como espaço político

As festas são elementos chaves na campanha eleitoral, mas o que a define? Para a antropologia da política, esse momento é essencial porque nele ocorre a promessa de acesso a bens e serviços diversos. Primeiro há uma forma de aproximação do eleitor, que passa às vezes pelo uso da família do candidato como fator de identidade com o eleitor. A presença de familiares dos candidatos nos eventos é comum, um candidato casado tem mais “prestigio“ entre comunidades tradicionais. A vida privada do candidato é de interesse público, e pode ressurgir, inesperada, nas artimanhas dos candidatos oponentes. É preciso expor a privacidade, mas com cuidado. O processo de votação equivale, no jargão dos antropólogos, ao estágio de liminaridade, período do tempo que passa que é suspenso, onde insegurança, isolamento e ansiedade caracterizam o momento em que o candidato está fora do mundo político, por isso é simbolicamente um espaço liminar, o candidato sente-se entre a política e fora dela até saber se foi consagrado ou não pelas urnas.

Mas as caraterísticas da campanha eleitoral – festas e jantares – não terminam pela eleição. No exercício do mandato são frequentes os jantares para encontros políticos, sejam com companheiros de partido ou pequenos grupos. Não se vê mais encontros com a multidão. Para a antropologia da política, tais jantares – antes grandiosos, depois discretos – é a própria comensalidade política. Esta propriedade é definida como dos eventos marcados pelo consumo de comidas e bebidas e que visam reforçar papéis sociais. ”Conquistar votos não é a motivação principal destes rituais, uma vez que a maioria dos participantes já está predisposta a votar no candidato celebrado. Sua motivação central é certificar a identidade do candidato como político digno do exercício de um mandato”, diz Kuschnir agora em artigo da obra “Como se fazem eleições no Brasil”. Por isso são tão frequentes os coquetéis, esses encontros onde a alimentação se faz presente, seja para a abertura de um ano legislativo, seja para um evento promovido por um candidato ou político. Neles o que importa é a confraternização que promove.

Por isto, por mais que campanha aparente se resolver pelo tempo que os candidatos dispõem de televisão, outras variáveis influem e devem ser consideradas. Para os antropólogos, somente o contato direto com o eleitor sinaliza a vitória. O acesso aos meios de comunicação como redes de TV, rádio e jornais, é significativo para o candidato, e, agora, com a popularização da Internet, um novo veículo começa a ser cada vez mais usado. Mas a política é um universo tradicional, do face a face. Tais recursos nunca são suficientes por si, nunca serão determinantes de uma eleição, e o candidato precisa saber que é no chão da comunidade que se faz a eleição, seja porque os programas eleitorais se tornam matéria da conversa cotidiana, seja porque os debates via Internet são apenas a outra face das redes sociais. E nem sempre o que ocorre na propaganda de televisão consegue superar o que leva a população local a procurar o político, a necessidade de usá-lo para intermediar um problema com as demais esferas do poder público. Não é isso que vemos na Internet, quando os candidatos, primeiro, mostram-se atuantes nos problemas relevantes de sua comunidade para depois fazerem o seu caminho em direção ao voto do eleitor? Mas não podemos esquecer que nenhuma campanha virtual consegue superar o papel e o capital arrecadado pelo político que é capaz de transitar pela cidade, estando em seus mais diversos campos e envolvido com os mais diferentes grupos. Campanha é comunicação. Diz Kuschnir a respeito: “À medida que ganham experiência no mundo da política muitos percebem que uma das estratégias para se tornar um político bem-sucedido é ampliar ao máximo sua esfera de relações (p.52).

Um campo auxiliar

Uma das principais contribuições da antropologia da política é mostrar que as eleições são mais do que a realização de uma forma da democracia (Barreira, p 7). As eleições afirmam e atualizam aspectos da vida social, que envolvem a divisão em grupos, o uso de símbolos, o reconhecimento de adesões, o circuito de cumplicidades e hostilidades. Se o aperto de mão de um político também é a suspensão da divisão entre ele e o cidadão, a política é revertida em lugar de igualdade e metáfora da suspensão das hierarquias de poder. A política é mais do que democracia porque também opera o simbólico, eis a questão.

Há inúmeras funções a que só a antropologia dá atenção, como a construção de pactos entre eleitores e candidatos, as expectativas mútuas e os rituais presentes nos eventos cuja função é legitimar o poder dos candidatos. Quer dizer, o período eleitoral é parte de um contínuum político, não existe corte nas relações dos candidatos no poder e em campanha, já que mantêm-se as visitas a gabinetes, as solicitações, etc. Os contatos só se tornam mais acirrados durante a campanha. Candidato que não faz mandato não se reelege. A eleição é um grande teste de fidelidade do eleitor e do candidato entre si, que o período eleitoral atualiza, avivando antigas promessas e compromissos. O que faz o político é sempre manejar sentimentos de pertença, seja na comunidade ou de indivíduos com o objetivo de obter legitimidade política.

* Doutor em Educação, chefe da Ação Educativa da Seção de Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre

Bibliografia:

BARREIRA, Irlys.Chuva de papéis. Ritos e símbolos de campanhas eleitorais no Brasil. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1998.

_________. Como se fazem eleições no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002.
BEZERRA, Marcos Otávio. Em nome das bases: política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1999.

KUSCHNIR, Karina. Eleições e representação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2000.
___________. O cotidiano da Política. Rio de Janeiro, Zahar, 2000.
___________. Antropologia da política. Rio de Janeiro, Zahar, 2006.


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