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28 de julho de 2014
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14:26

Reflexões sobre a confiança na política

Por
Sul 21
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Jorge Barcellos*

O fim da confiança

Uma das primeiras lições que aprendi como estudante de História da Ufrgs, nos anos 80, foi  que o gênero homo, ao qual pertencemos, surgiu na África há cerca de 2,3 milhões de anos, evoluindo do chamado homo habilis  ao homo erectus e  ao homo neandertalenses até o homo sapiens sapiens, como ensinava o professor Arno Kern. Quer dizer, nossa transformação em ser humano passou pela habilidade de usar e fabricar ferramentas e pelo convívio social que os primeiros homo desenvolveram. Homens, crianças e mulheres começam a ter intensa vida colaborativa aprendendo a confiar um no outro.

A ideia de orientação por um notável senso moral faz parte da humanidade. Nossos parentes mais próximos, os neandertais, tinham um agudo senso moral. Eles, por exemplo, enterravam seus mortos segundo padrões próprios. E ainda que estes nossos parentes próximos viessem a serem extintos, mostraram que adquiriram certo respeito pela morte e confiança na existência de mistérios  até o surgimento do homo sapiens sapiens. A característica principal deste último é o raciocínio abstrato, origem de nosso pensamento racional, mas também a consciência de si mesmo, a autoconsciência de seus atos, base de nossa humanidade. Adquirimos a capacidade de nos comunicar, de elaborar ideias e sentimentos, de ter autoconsciência, construindo nossa capacidade de viver em sociedade. E não se vive em sociedade sem confiança.

Mas algo curioso então aconteceu. Falando sobre os efeitos do trabalho, Marx disse certa vez que o trabalhador no capitalismo só se sente ativo em funções animais como comer, beber e procriar e que cada vez mais está se tornando um animal em suas funções humanas, referindo-se aos efeitos da irracionalidade de um mundo marcado pela exploração. Não é exatamente isso que retorna, como recalcado (Freud), quando assistimos atônicos há pouco tempo o espancamento até a morte da dona de casa Fabiane Maria de Jesus noticiado pela imprensa no mês de maio? Poucos meses antes, outro adolescente fora amarrado pelo pescoço com uma tranca de bicicleta e preso em um poste no aterro do Flamengo. Ninguém acreditou na inocência de nenhuma das vitimas, quer dizer, ninguém confiou no que diziam.  Não se trata de uma “injustiça com as próprias mãos” como se ouviu dizer,  para mim é muito pior,  porque  se trata de uma “involução” (sic),  barbárie que é expressão de nosso asselvajamento, sintoma da perda da confiança no outro. Se tais cenas são o inicio de nosso fim como espécie, da mesma forma, a perda de confiança na política é o nosso fim como sociedade. Nossas ferramentas já não servem para perpetuar a vida, mas para destruí-la; nossa sociabilidade não serve mais para respeitar o outro, mas para transformá-lo em integrante de gangues; não  há mais rituais para a morte porque já não há nenhum respeito pela vida, e a falha pior, já não se confia na política como modo de solução dos problemas humanos. A máxima de Marx nunca esteve tão atual como nos tempos que correm: ”O animal se torna humano e o humano se torna animal”.   Da mesma forma, corremos o risco de, parafraseando Marx, “o estado democrático de direito se tornar estado de exceção”.

A exceção que produz desconfiança

Não é o que aconteceu com a prisão de ativistas ligados ao movimento de junho no último dia da Copa do Mundo? O gesto é simbolicamente notável desse estado de coisas. Pois, para além da posição reacionária que viu mérito na prisão dos ativistas, “o conjunto de desordeiros”, o cidadão crítico observou na ação um notável exemplo do estado de exceção de que fala Giorgio Agamben em sua obra “Homo Sacer”. O objetivo de Agamben, como Foucault, é fazer uma arqueologia das formas jurídicas, o que significa uma reflexão sobre o significado das situações onde há suspensão dos direitos sob o pretexto de manter sua continuidade. Não foi exatamente o que ocorreu com a prisão da ativista Elisa de Quadros Pinto Sanzi, a Sininho, junto com 19 ativistas, isto é, não estamos diante da decretação de um estado de exceção para militantes e que se supõe provisório? Para Agamben, estas atitudes são sintomáticas da natureza do regime político, pois o risco é que o que se pensa que é provisório é, na verdade, paradigma de governo.

Para Agamben, a exceção é a estrutura primária que origina a biopolítica moderna. Não é apenas a população que não confia em si mesma, que é incapaz de ouvir e respeitar seu semelhante – estágio de exceção individual. Agora é o Estado que não confia mais na sua população e adota práticas de estado de exceção no interior do estado democrático de direito. Para Agamben, trata-se de reconhecer a dupla natureza do direito, a ambiguidade constitutiva da ordem jurídica na qual parece que está sempre dentro e fora da lei ao mesmo tempo. Pior, o estado de exceção é o dispositivo que mantém unidos a violência e o direito, que produz ao mesmo tempo um vínculo e seu rompimento.  Quer dizer, a exceção é o dispositivo por meio do qual o direito se refere à vida, incluindo-a por sua suspensão. Para denominar a ascensão do estado de exceção, nível em que o direito é praticado excluindo-se o direito, Agamben refere-se à “guerra civil legal”. A expressão não cai como uma luva para justificar as arbitrariedades cometidas pelo Estado contra os jovens pacíficos? Sim, o movimento também teve jovens violentos – os black blocs –, que rejeito,  mas o fato é que para Agamben, o exemplo da prisão dos ativistas “sem crime algum” é o equivalente nacional da ordem militar do governo Bush que autorizou a detenção indefinida de terroristas e que cancela, de uma vez por todas, toda a ordem jurídica dos indivíduos. Se esta é a forma com que o governo Dilma trata os ativistas no último dia da Copa do Mundo, no que está se transformando nosso estado de direito às vésperas das eleições? A comparação com o filme Minory Report, que eclodiu à exaustão nas redes sociais, estava correta pelos motivos errados: não é que os jovens foram presos por antecipação, é o próprio estado de direito que está sendo alterado na frente de nossos olhos, às vésperas das eleições. Diz Agamben: “O estado de exceção é a resposta do estado à guerra civil”. O governo Dilma esperava uma guerra civil no final da Copa: bastou um sussurro, uma “Sininho” para que a ordem jurídica fosse alterada.

A ação é o que para mim poderia ser de pior para perturbar a confiança dos cidadãos críticos em seu estado. Não é à toa que Agamben aproxima a guerra civil legal do totalitarismo, dando como o exemplo o estado nazista que  suspendeu as liberdades pessoais pelo “decreto de proteção do povo e do estado”. Quer dizer, o estado de exceção se apresenta como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal” (Agamben, Estado de Exceção, p. 24). Isso significa que assim como o estado nazista promoveu uma guerra civil legal, em que foi autorizado a eliminar adversários políticos e desativar zonas inteiras de cidadania, nosso estado democrático de direito autorizou-se a retirar das ruas inúmeros integrantes dos movimentos sociais, supostos adversários, no final da Copa. A prisão de ativistas, professores universitários e jornalistas, a demora de liberação de “habeas corpus”,  a prorrogação da prisão temporária de ativistas sem crime algum deveria perturbar o cidadão crítico porque reflete diretamente  na sua capacidade de confiança na dimensão política.  Se tratam de ações legitimadas pelo atual governo Dilma, às vésperas da campanha, sob o pretexto de precaução por ocasião da final da Copa do Mundo. O gesto terá efeitos na campanha eleitoral?

Depende. Judith Butler, em “Vida Precária”, analisa os tribunais americanos organizados para julgar prisioneiros da Bahia de Guantánamo para mostrar o que acontece com pessoas sem possibilidade de defesa legal e nem de direito a juízo, isto é, a face crua de um estado de suspensão das leis. A semelhança com o caso brasileiro para mim é aterradora porque revela um traço autoritário contrário ao estado democrático de direito. Se o candidato da oposição tiver argumentos e imagens para defender esta posição ele pode tirar vantagem. Pesquisa eleitoral recente revela empate técnico no segundo turno entre Dilma e Aécio Neves. Nestas situações, no limite da campanha eleitoral de televisão, a crítica a pequenas ações como esta podem fazer a diferença. Na verdade, a sociedade não se deu conta do significado do gesto. Se vai influir, só o tempo dirá..

Votamos em quem confiamos, mas como confiar?

Se você perguntar a qualquer cidadão no momento do voto porque ele escolheu seu candidato, ele certamente responderá “porque neste eu confio”. O cidadão não é capaz de imaginar um estado que se vira contra ele. O cidadão confia nas instituições políticas porque é incapaz de imaginar que elas lhe possam fazer mal. Pensando nesta questão, dois estudos seminais de José Álvaro Moisés, “Democracia e Confiança” e “A desconfiança política e seus impactos na qualidade da democracia”, descrevem em detalhe o modo de funcionamento da confiança política.  É neles que se baseiam as próximas linhas.

Regra geral, é justamente o contrário, os cidadãos desconfiam dos políticos e das instituições políticas. A descrença no regime político  faz com que os cidadãos percam a noção de que a política serve para garantir direitos. Quer dizer, é sempre um sintoma de mau funcionamento do Estado e a corrupção é o lugar que produz a desconfiança em primeiro lugar. Mas a confiança é essencial à democracia, diz Moisés. Ela está diretamente relacionada com a qualidade da democracia. “Confiança é algo que se refere à crença das pessoas na ação futura dos outros”, diz Moisés no capitulo introdutório de “Democracia e Confiança”. Ela envolve riscos e não dá certeza de seus resultados. A campanha política que se inicia é dita como o período de caça ao eleitor, é na verdade o período de conquista de sua confiança. Por isso tais gestos são imprevisíveis em suas consequências para a campanha de reeleição do governo federal.

De outro lado, começou a corrida pelo governo do Estado. Tarso Genro é o novo candidato-viajante, procurando a tudo e a todos na busca de eleitores. Terá de responder as criticas de seus opositores, mostrar o quanto avançou e como superou os problemas essenciais que entravam o desenvolvimento do Estado, como a articulação das políticas sociais. O governo do Estado sai vitorioso da Copa no quesito segurança pública. Mas há mais. A entrada de Ana Amélia Lemos (PP) aquece o debate das eleições estaduais. A imprensa especula sobre a natureza do confronto político que vem por aí. Para começar, o possível baixo nível da campanha via internet.  Portanto, o primeiro desafio de Tarso Genro é mostrar que o seu partido pode fazer campanhas on line sem baixaria. Isto é bom para a democracia e para gerar um sentimento de confiança. Ele será acuado pela  questão de como pretende recuperar o nível salarial do magistério público, como manter a sua promessa do piso do magistério, além de explicar seu plano para reorganizar a segurança pública, após um período de relativa tranquilidade no campo da segurança, proporcionado pela Copa do Mundo. Quer dizer, o mote de sua campanha deverá ser o de mostrar que é um candidato digno da “confiança” do eleitor.

Retomando o valor da virtude

Capitalizar a confiança do eleitor é o principal dilema dos candidatos em todos os níveis. Como fazer isso?  Em seu ensaio “A política do espírito”, Paul Valery descreve o caos da civilização como sinal das contradições entre nossos atos e consequências.  “Anulamos valores, dissociamos ideias, arruinamos sentimentos que pareciam inquebrantáveis por terem resistido a vinte séculos e para exprimir este estado de coisas restam-nos apenas noções imemoriais”, diz o autor. É por isso que Valery logo nos convida a refletir sobre o esquecimento da palavra “virtude”. Ela não está mais no vocabulário político, tomado de assalto pelo marketing. Para mim, a política contemporânea está repleta de vícios e não virtudes: vemos a “intolerância” manifestada nas redes sociais de cada partido, nas discussões de seus integrantes; vemos a “indiferença” do Estado presente nas ações contra militantes e no desrespeito aos direitos humanos; vemos o “vazio de pensamento” no discurso das campanhas e dos candidatos de direita à esquerda – o que era a propaganda de Marina Silva conversando com seu candidato a presidente se não o somatório de chavões de oposição? Exceção feita aos jovens, vemos a “passividade” tomar conta da sociedade frente a mais uma eleição. Ora, o que ocorre quando as ações políticas e artísticas, origem da liberdade, perdem sentido? Minha resposta é a perda de confiança na política, mais uma vez.

Por esta razão os candidatos nestas eleições devem voltar ao significado da palavra “virtude”. Sabedoria, Liberdade, Justiça, Coragem e Amizade são as virtudes cardeais. Esquecê-las é a origem de desordens. Os vícios terminaram por desorganizar a política. O uso de estratégias do estado de exceção é um vicio porque é uma disposição para o mal, ao contrário da virtude, uma disposição para o bem. Como os candidatos ao governo estadual farão para mostrar que realizarão ou realizaram, no caso de Tarso, um governo virtuoso? Ana Amélia já apresenta-se assim, como a “candidata de oposição virtuosa”, devido à sua origem, aos seus projetos, etc. A confiança do eleitor nasce da virtude do candidato, quer dizer, do hábito do cidadão observar, de ser sensível às razões dos candidatos, e aí o cidadão confia. Para isso os candidatos terão de mostrar que fizeram, ou são capazes de fazer, atos de justiça, moderação, coragem, que se tornaram justos, sóbrios, corajosos. Não é exatamente esta a crítica do magistério ao atual governo, de que “não teve coragem” de implementar o aumento pedido pelos professores?

É claro que esta ainda é uma definição antiga, herdada dos gregos do que significa a virtude. Nos primeiros anos do século XIX, a chamada Escola Eclética combinou elementos da moral kantiana com a moral antiga e surgiram as ideias de obrigação e dever na política. A virtude deixa de ser apenas o ideal de liberdade, justiça e felicidade e passa a ser o reino do dever, da obrigação e da responsabilidade. Agora, exercer um governo virtuoso é obedecer as leis. Mas há um critério ao menos, que ajuda a distinguir a concepção antiga de virtude da moderna. Adauto Novais, em “Vida Vicio Virtude”, afirma o seguinte: “Eis portanto, o maior dos vícios: a tendência contemporânea a um modo de vida cada vez mais superficial, que põe em baixa as virtudes intelectuais. Isso porque, no mundo veloz e volátil, tudo é regido pelo aqui e agora, máxima que determina nossos comportamentos em todas as coisas”. Ou ainda, cita Novaes, o filósofo Alain: “vejo apenas uma virtude no mundo, escutar-se a si mesmo”.

Para um mundo sem confiança, a proposta dos filósofos é que governemos nossas vidas pura e simplesmente. Não se trata do fato de que participo de uma agremiação política, que sou reconhecido por ela – não foi este o mote dos jovens no movimento de junho? –  e por isso voto neste candidato. Trata-se de que a responsabilidade é aprovar a nós mesmos em nossas decisões e os políticos em que votamos. Do ponto de vista dos candidatos, isso significa que não se pode fazer mais campanhas políticas apenas com forma, sem substância. Para Dilma e sua oposição cabe  realizar pesquisas qualitativas e reunir estudos cuja análise leve a soluções. A estratégia política de ontem não é garantia de eleição hoje.

Já na disputa estadual, o governo sabe que o caminho para o sucesso de Tarso Genro é mostrar o trabalho feito e a aproximação com  as entidades de defesa de grupos sociais e grupos organizados, que formam a opinião pública e que podem levar suas propostas para o resto da sociedade.  A oposição inteligente precisa tê-los em vista e sabatinar o conteúdo do governo e seus aliados diretamente em seu programa. Qualquer candidato que acredite que seu “canto de sereia” é suficiente para ganhar a eleição, não ganhará a confiança do eleitor e certamente a perderá. Eis a natureza do poder.

Confiança, virtude e poder

Marilena Chauí, em “O que é política”, caracteriza o poder, e sua definição auxilia a compreender as dimensões da ideia de confiança.  Ela retorna a Espinosa que critica o poder teológico, “hierárquico e dominador”, constituído a partir da Igreja Católica, para fazer o elogio da democracia como “o mais natural dos regimes políticos”, porque responde ao desejo natural de governar e não ser governado.  Aristóteles coloca a questão de outra forma: para saber qual é o melhor regime, é preciso saber qual faz a justa distribuição do poder. Para Aristóteles, todo o regime político supõe que se tenha resposta a questões essenciais – quem faz o quê, quem decide a respeito de quê, quem obedece a quê. Mais: diz que a resposta à pergunta “quem governa?” é a mais importante. Para Aristóteles, a resposta é: “A Constituição é o governo”. A frase diz tudo para os tempos que correm. Para além da satisfação dos desejos naturais do poder, é o modo de relacionarmo-nos com ele que está em pauta, o modo como nos relacionamos com as instituições que definem a nação, os direitos dos cidadãos.  Esse é outro modo de abordar o tema da confiança. E, além disso,  se há um exemplo que põe em dúvida se Dilma de fato governa, é o poder “excessivo” concedido a Lula: é só olhar como iniciou sua campanha  à reeleição: a cada avanço de Dilma, uma posição de Lula  era anunciada e nada indica que não seja dele a orientação básica da sua campanha, o que faz retornar a imagem criada na época de disputa com FHC, a imagem de um Lula guiado por José Dirceu. Para confiar, o cidadão precisa responder à questão: afinal, quem governa este barco?

Aristóteles não se satisfaz com a democracia como Espinosa. Como está interessado em determinar a relação do poder com os determinados tipos de comunidade, diz que há diferentes governos para atender a questão do mais natural dos regimes.  Mas há outro critério que justifica a definição de regime político e que passa ao largo da análise de Chauí: é a questão da justiça. Esta é apontada por Aristóteles como o segundo critério determinante de um bom regime. O regime é bom se é justo, e a justiça é atingida governando-se com vistas a todos. Daí que Aristóteles não prefira chamar de democracia, ainda que a veja como um regime normal, como a aristocracia, mas de governo constitucional. Ora, atualizando os termos de Chauí, a simpatia do governo Dilma com movimentos anticonstitucionais, com seus saques e violência, pode sinalizar certa distância que o governo está dos ideais da justiça. Este argumento será uma das armas da oposição.

Mas há na fala de Chauí um artifício sutil que pode ser utilizado por Dilma para rebater as críticas de populismo. Ela consiste em definir a priori os conceitos com que se trabalha para, em seguida, negá-los na prática de Dilma. Isso ocorre quando, analisando a trajetória da esquerda, Chauí, com toda a experiência de vida e de filosofia que a fazem merecidamente a maior filósofa brasileira, encerra sua análise dizendo-nos que “em certos momentos, é preciso abrir mão de princípios”. Mas isto é muito sério e merece reflexão. É o testemunho de que parcela da esquerda, que possui compromisso com a crítica, ficou órfão: fim de toda a crítica, de toda a isenção, de toda a luta pelos princípios de partido, fim da virtude. Parte desses militantes, por perder a confiança no partido, migrou para outras legendas. Como conquistar a confiança sem virtude?

Ora, para conquistar a confiança de seus cidadãos, um governo decente deve ser democrático e republicano. O problema de Dilma é que os dois termos são tensos entre si. Para os gregos, a Democracia era o domínio de oi polloi, “os muitos”, cuja característica principal é a pobreza. A democracia é o regime em que os pobres têm o poder. A definição cai como uma luva para Dilma que anunciou projetos sociais elogiados por todos. Mas para o grego, o centro da questão é mais profundo, é o desejo. O problema é que os pobres são desejantes, desejam ter mais. Entre ricos e pobres, a criminalidade não cresce por que as necessidades básicas não são atendidas, ela cresce por que a futilidade não é atendida. O supérfluo, o prazeroso e o consumo estão no centro da questão social, ao contrário dos que baniram da política a necessidade de realizar o desejo, impregnando-a de objetivos racionais. Esta é uma posição também defendida por Renato Janine Ribeiro.

Já a República, para Montesquieu. tem um princípio de existência que é a virtude, a vertu. A abnegação já faz parte do discurso de Dilma, ela diz isso todo o tempo, e acreditamos realmente que não descansará um só minuto enquanto não resolver o problemas da fome no país. Mas abnegação vai mais além, é a recusa e superação dos próprios desejos e interesses em favor do bem comum. Dilma pode ser uma abnegada, mas os partidos de sua base não o são, especialmente o PMDB. Nos bastidores vemos que o bem comum é o bem do partido. É por isso que a discussão de quem vai ficar no governo e no PT tem mais importância do que saber quais são os projetos sociais. Nessa estrutura, o cidadão não confia. Portanto, o que fará Dilma com o discurso de oposição que a denuncia, como, por exemplo,  o de Luciana Genro?

Para Dilma aprofundar o republicanismo brasileiro, ela precisa defender a meta do bem comum, da gestão pública voltada para a promoção da sociedade como um todo. Quer dizer, para aprofundar o ideal democrático, deverá atender as reinvindicações dos pobres, o que é desejável, mas deverá cuidar que não  ameace o bem comum. Não é o que se vê com as perspectivas para a política econômica? O PT sempre disse que as alíquotas de imposto de renda não seriam preservadas, coisa que até há pouco tempo era alvo de sua crítica,  e Dilma, menos que Lula, provou do gosto do desejo das massas, por mais que os marxistas radicais reneguem. Terá de converter desejos em direitos sem criar um novo antipovo  –  que deixou de ser o Capital,  cada vez mais defendido no discurso de Mantega – para se transferir para a classe média. É uma visão singular: há muito “o povo” não coincide com a totalidade das pessoas, absorvida por grupos menores e novas identidades sociais. Paradoxo do PT e de seus aliados que, ao renegar a classe média em nome dos trabalhadores, agora tem contra si boa parte do funcionalismo público  –  outra face da classe média –, indignada com a proposta  de reformas.

A questão é se Dilma apostará, em seu segundo mandato, no atendimento às reivindicações populares ou na governabilidade à custa dos desejos da sociedade e do partido para assegurar um segundo governo melhor para todos. Disso dependerá sua conquista de confiança e a presidenta parece optar pela saída republicana. Pretende um governo da aristocracia, que lhe é próxima. Aristoi são os melhores, os que têm o domínio da areté, a excelência. Temos o melhor gabinete de governo que já seu viu na história brasileira, mas essa aristocracia intelectual, que governa junto com Dilma, tem condições de garantir uma cidadania republicana, de unir o ideal democrático e republicano?

Por certo, há também visivelmente no rosto dos jovens que foram às ruas certo desencanto. Eles foram às ruas primeiro por verem repetir-se, uma vez mais, agora em um partido à esquerda, os mesmos meios de gerir a coisa pública de seus antecessores. Ou seja, findo seu primeiro governo,  pelo mesmo esta fração de classe não vê nada de novo no “front”, a presidenta e seus ministros parecem dizer a mesma coisa sempre, o que  parece fazer com que este governo seja na verdade um  “clone” do anterior, o de  Lula. Pelo menos neste governo, os jovens não confiam. Está em discussão não somente o que se espera do governo eleito. Mas também a própria imagem das políticas de esquerda. Se o cidadão sai satisfeito ou desencantado deste processo, é algo com o que os políticos no governo deveriam se preocupar mais. Pois a cada eleição que passa, mais e mais os brasileiros se perguntam se confiar na política ainda tem algum sentido. Esta pergunta não pode ficar sem resposta.

Para os tempos que correm, Hannah Arendt tinha uma resposta pronta. Se a política tem algum sentido, a filósofa respondia que era a liberdade. Sua resposta advinha da experiência real que tinha da política, o desastre vivido frente a formas de governo totalitárias e a possibilidade de aniquilação da vida que o Estado é capaz de perpetuar. É preciso confiar na política “Se a política traz um desastre e não se pode eliminá-la, então só resta o desespero”.

Retormando a confiança na politica

Em “Será que a política ainda tem de algum modo um sentido?”, capítulo de “A Dignidade da Política” (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993),  Arendt revela os ensinamentos de quem viveu mais do que ninguém  as experiências políticas de seu tempo. “Passar ao largo delas é como se não se tivesse vivido no mundo que é nosso”. Ela entendia que  a falta de sentido da política é algo que pode-se observar todos os dias, lendo os jornais e frente à irritação que nos causam a má gestão dos problemas públicos. Arendt faleceu em 1975 de um segundo e fatal enfarte, mas suas considerações nunca foram tão atuais. Para muitos de nós e para Arendt, somente um milagre podia salvar a política. E talvez um milagre seja tudo com que Dilma possa contar para fazer um bom governo. O paradoxal é que para Arendt era possível. Será para Dilma?

Tudo é uma questão de como vemos o que são milagres. No âmbito religioso, milagre é um fenômeno sobrenatural ou sobre-humano que irrompe sobre a Terra. Sempre que acontece algo novo, inesperado, uma impossibilidade infinita, imprevisível, inexplicável, estamos diante de um milagre. Para a autora que nasceu na mesma terra natal de Kant, somos paradoxalmente dotados para fazer milagres. “Em nossa linguagem comum e bem usual, chamamos esse dom de agir”. É por isso que liberdade e política se relacionam tão bem, e são, nessa síntese, um pequeno milagre, porque trata-se  desse poder de iniciar algo, de criar um novo inicio, a liberdade de querer que algo seja de outra maneira. Arendt valoriza a liberdade que só o homem que procura a política pode fazer. Enquanto o homem for apto a agir, estará apto a realizar o improvável e imprevisível. Para Arendt, a política pode fazer milagres. Resta saber se o candidato vitorioso terá condições para realizá-los na política.

Se não for capaz disso, o governo corre o risco de ser lembrado como um governo em que não se pode confiar. A esse respeito, a arte inspira a interpretação política. Há um quadro de Sandro Boticelli (1445-1510), em que a Inocência jaz acuada pela Calúnia. Estão representadas a Inveja, o Engano e a Hipocrisia que a acompanham, paixões vis que se unem e que representam o Mal. Um olhar atravessa o quadro de ponta a ponta em direção à Verdade  – é o Arrependimento -, que desnuda, aponta para o céu, como que apontando para a justiça divina. A vítima junta suas mãos e as estende em sua direção, súplica comovedora, enquanto o juiz dos homens só tem ouvidos para a Ignorância e a Suspeita.

A magnífica reconstrução de um quadro de Apeles, descrito por Luciano, ilustra o perigo que corre a esquerda. Frente à propaganda eleitoral que ocupará o imaginário do país às vésperas da eleição e a prática do governo Dilma  veremos se o partido  é ou não igual aos outros.  Os outros são aquilo que se convencionou chamar de “os medíocres”. A maledicência os espreita. O eleitor deve educar seu olhar para se precaver e seu voto deve esquivar-se daqueles que preferem as insinuações sutis. Quem se esquiva de responsabilidade daquilo que fala, forma covarde, foge de qualquer castigo. O fracasso de Dilma será a prova de que, contra nossa vontade, eles florescem em todos os partidos, da esquerda à direita.  Nesta época em que os políticos estão cada vez mais medíocres, bons políticos correm o sério risco de perder-se em seu meio. E bons políticos são aqueles que, quando nus, apontam o caminho da verdade. Só esses são merecedores de confiança.

*Doutor em Educação pela UFRGS., chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre

 Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I, trd. Henrique Burigo, 2 ed., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002 (Homo Sacer – Il Potere Sovrano e la nuda vita).

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CHAUI, Marilena. O que é politica. Novaes, Adauto. O esquecimento da politica. São Paulo, Agir, 2007.

TACCETTA, Natalia. Agamben y lo politico. Buenos Aires, Prometeo Libros, 2011

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MOISES, José Alvaro. Democracia e Confiança. São Paulo, Ed. USP, 2010

____& MENEGUELO, RachelA desconfiança politica e seus impactos na qualidade da democracia. São Paulo, edusp, 2013.


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