Notícias em geral
|
18 de julho de 2014
|
15:09

O legado histórico

Por
Sul 21
[email protected]

Paulo Timm*

A Revolução Francesa (1789) consagrou a instauração de uma nova ordem social – competitiva – no mundo ocidental, fundada na racionalização da cultura, num regime social de classes e na economia liberal de mercado, tudo isso sublimado pela consigna de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. A sociedade burguesa que daí resultou estava longe, porém, de idílica, ainda que os suspiros das Luzes apontassem para uma Nova Era de soberania da razão. Com efeito, o mundo mudou muito nos últimos 200 anos : a população mundial saltou de pouco menos de 1 bilhão de pessoas para 7 bilhões, evidenciando as potencialidades produtivas desencadeadas pelo capitalismo, surpreendentes, até, para seu maior crítico, Karl Marx, como registrou no seu libelo “O manifesto Comunista”, de 1848. Contudo, evidenciou uma polarização entre os novos detentores da riqueza, os senhores das propriedades e dos negócios e a grande massa de trabalhadores arrancados de seus meios de vida no campo e transformados em proletários. Como demonstra o recente estudo do economista francês, Pickety – “O capitalismo no Século XXI” –, o caráter cada vez mais concentrador da riqueza, da renda e do poder no interior deste sistema é cada mais evidente. Desde suas origens, pois, a sociedade burguesa gravita em torno do conflito Capital x Trabalho, do qual destilou três atitude políticas:

1.Conservadora – se apropria da consigna “libertária”, herdada de autores como Locke e J.Stuart Mill, reatualizados por Hayeck e Milton Friedman, e se satisfaz com o ritmo imanente das mudanças intrínsecas à ordem competitiva, reagindo à intervenções “externas”;

2.Revolucionária – se inspira no ideal igualitário – e se contrapõe à dominação do capital –, propondo desde Rousseau, mas especialmente com Karl Marx e Lênin, sua substituição por uma economia socialista centralmente planificada;

3.Reformista – acredita na possibilidade de fazer do Estado um estratégico instrumento de mudanças de forma a regular crescentemente a economia e a sociedade com vistas ao bem estar, tendo em Max Weber e J.M. Keynes poderosas sustentações teóricas.

Claro que tais posições admitiram variações internas ao longo do tempo e da geografia do mundo.

O liberalismo conservador avançou, entre os séculos XIX e XX, de uma receita de princípios rígidos para a aceitação, quase inevitável, do Estado na economia, ainda que sempre mínimo, ou nas crises econômicas, em defesa do capital.

Os revolucionários, que foram conformando o espectro da esquerda no mundo inteiro, diretamente ligado à experiência soviética em 1917, condensaram-se nos Partidos Comunistas. Foram, também, divergindo, não só sobre o que deveria ser a nova sociedade, mas, principalmente, sobre os caminhos táticos e estratégicos para alcançá-la. Todos concordam, no entanto, que o socialismo seria uma etapa superior da História da humanidade, numa parodia do melhor dos mundos e que ele passa pela liquidação do sistema de poder que sustenta a ordem capitalista.

Os reformistas, enfim, divergiram ainda mais sobre os caminhos rumo a um Estado de Bem Estar e Garantias Sociais como alternativa a um mundo melhor. Na Europa eles coincidiram, independentemente do nome do Partido ao qual se vincularam, com o que se entende como social-democracia. A ideia mesma de desenvolvimento com maiores garantias sociais, porém, se estendeu internacionalmente e acabou ganhando força e vigor no Terceiro Mundo ao longo do século XX, constituindo uma alternativa à esquerda revolucionária, contra a qual muitas vezes se chocou com violência, como 1935, no Brasil. Não por acaso, em plena Guerra Fria, quando o confronto USA x URSS parecia enrijecer as posições em conflito a ponto de explodir o mundo numa guerra nuclear, criou-se o “Movimento dos Não Alinhados”. Neste sentido, pode-se identificar um amplo arco de experiências que vão de Vargas no Brasil ao Partido Baath no Iraque de Sadam Husseim, ou de Al Assad, na Síria atual, como um tipo de reformismo secular de inspiração social-democrata.

A década de 80 do século passado, com epicentro no ano de 1989, porém, nos brindaria com significativas alterações no cenário ideológico moderno. Vários processos transcorrem simultaneamente, começando pelo salto propiciado pela cibernética que entrega uma nova articulação entre tecnologia, forma de comunicação e visão de mundo, agora reduzido a uma aldeia eletrônica interconectada e institucionalmente desenhada de acordo com princípios de governança e liberalização e conceitos associados, como o conceito de concorrência. Há também, a emergência de uma nova consciência ambiental sobre a limitação dos recursos naturais do planeta, a qual desembocara na Conferência Rio-92. Nada desprezível é o fato, também, de que à avalanche progressista de caráter secular comece a se contrapor a rejeição a este modelo, dito “ocidental”, por defensores de um retorno ao fundamentalismo religioso, cujo primeiro ato visível foi a Revolução dos Aiatolás no Irã, em 1979. Mas, sobretudo, a década de 80 coincide com o amadurecimento de contradições internas nos dois polos da Guerra Fria – USA x URSS –, que acabariam conduzindo, do lado americano ao enrijecimento conservador de sua inspiração ideológica, com o conhecido Consenso de Washington (1989) e do lado soviético, ao contrário, pela liberalização de sua experiência sob o socialismo real, conduzida pelo Premiê Gorbachev com a Perestroika, que resultou, passando pela queda do Muro de Berlim, em 1989, à dissolução do próprio Estado soviético, dois anos depois. Entrementes, fruto dos novos padrões da concorrência globalizada sob forte financeirização da economia, depois da reconstrução do Japão e da Alemanha e emergência de novos polos industrializados ao redor do mundo, à qual se acrescentará em seguida a China, os países europeus de inspiração social-democrata também se encontram com limites ao Estado de Bem Estar.

Tudo isto se reflete no panorama ideológico do fim do século XX. Com a queda da URSS, particularmente, abate-se uma crise profunda na esquerda revolucionária, já abalada na década de 70 com um conjunto de proposições que ficaram conhecidas como “Eurocomunismo”. A ideia central do assalto ao poder através de uma Revolução Socialista se desatualiza no mundo inteiro, revertendo os antigos (Partidos) comunistas ao reformismo. Mas a social-democracia, especialmente na Europa, outrora guardiã do que se considerava uma sociedade mais humana e civilizada pelas garantias sociais e que poderia se ter fortalecido neste processo, também está em crise. Quando mais necessária seria para se contrapor ao neoliberalismo do Consenso de Washington, mais “amarela” e menos se faz presente. Acaba rendendo-se. Nesse contexto, no qual se anuncia “O Fim da História”, os Estados Unidos consolidam uma dominação unipolar sobre o planeta, capaz de influenciar não apenas os Estados, como as instituições multilaterais criadas no pós-guerra como Banco Mundial, FMI e a própria ONU. As únicas exceções ao monólito conservador são algumas reminiscências do bloco soviético, como Milosevic, na Sérvia, de triste fim num julgamento controvertido no Tribunal Internacional, a esdrúxula Coreia do Norte, Cuba, em difícil situação econômica com o término da ajuda econômica da URSS, a Líbia, a Síria, o Iraque e, surpreendentemente, alguns países latino-americanos com alguma tradição reformista, nenhum deles, entretanto, numa atitude de confronto com o irmão do norte. Já o Irã e um conjunto de organizações fundamentalistas muçulmanas, o preferem, trazendo um elemento de tensões internacionais inusitadas que acabariam, depois do ato contra as Torres Gêmeas, em 2001, nas sucessivas guerras contra o Afeganistão, arrastando todo o Oriente Médio para uma era de conflitos internos e externos.

Este processo, embora prenhe de tensões, perdura até a Crise de 2008: a maior débâcle do sistema capitalista desde 1929. A economia americana entra em colapso, a Europa se desorganiza e chega a ter 26 milhões de desempregados, países inteiros se desagregam como a Grécia, ameaçando a União Europeia, o mundo emperra. Curiosamente, já neste preciso momento a China emerge, depois da conversão de sua economia ao mercado globalizado, como um contraponto dinâmico da economia mundial, despontando como líder do comércio internacional e breve superioridade econômica propiciando, graças a isto, uma janela de oportunidades para algumas economias complementares com alguma capacidade de exportação de commodities. Graças a isto despontam o Brasil, redesenhado como um fazendão exportador, a Rússia, como fornecedora de petróleo, a Índia e a África do Sul. Daí que estes países entrem em negociações para criar um polo – BRICS – de interesses comuns capazes de se personalizar, embora sem confronto direto e ameaçador aos Estados Unidos, voltado à desdolarização da economia mundial e à criação de instrumentos financeiros próprios para o financiamento de projetos de longo prazo.

Enfim, o colapso da URSS como fonte de inspiração da esquerda revolucionária no fim do século passado, associado ao enrijecimento da dominação americana com o Consenso de Washington, mais agudo, ainda diante da crise de 2008, leva a que o arco ideológico herdado da Revolução Francesa se altere rapidamente. Já não podemos mais falar genericamente e nos mesmos termos clássicos entre direita x esquerda, como metáfora da conservação x revolução, mediados pela social democracia. Hoje estamos vivenciando, sim, uma radicalização crescente de um conservadorismo que já se imaginava ultrapassado e que compromete não só garantias sociais na Europa, mas instituições caras de defesa do cidadão nos Estados Unidos, levando muitos de seus concidadãos a atitudes desesperadas como Snowden (exilado) e a soldado Manning (presa), aos quais se juntam os milhares de suicídios de veteranos de guerra. Enquanto isto – e até paradoxalmente – esvai-se a alternativa revolucionária que poderia fazer frente ao fascismo nosso de cada dia, a qual tem ficado reduzida a pequenos grupos doutrinários sem grande capacidade de intervenção. Resta-nos, em compensação, o produto de seminais experiências desenvolvimentistas latino-americanas de Vargas e Perón, redefinidas em seus respectivos países e revigoradas pelo bolivarismo de Chávez, o qual repercute positivamente em vários outros países como um projeto nacional alternativo ao neoliberalismo, capaz de incorporar em prazo curto vastas camadas da população vulnerável à cidadania e ao mercado. Ser de esquerda, neste contexto, deixa de ser um compromisso doutrinário e passa, como na década de 30, pós-crash, igualmente radicalizada, então, pela emergência do fascismo, a se constituir no desafio de unir e fortalecer todas as forças, onde quer que se situem no globo, mobilizadas contra a imposição neoliberal comandada pela voracidade financeira das grandes corporações. Isto, porém, requer muito cuidado, pois nem se trata de construir o socialismo, a partir destas experiências, nem de fomentar clivagens de classe, muito próprias das correntes que, desamparadas pela história, transferem para os movimentos emergentes uma herança doutrinária inoportuna. Weber e Keynes, neste contexto, têm mais importância instrumental do que Marx e Lênin. Estamos num momento frágil de crise e transição sem o recurso de uma utopia salvacionista, no qual se está redefinindo o destino de 99% da população terrestre. Trata-se de compreender o momento atual muito mais como uma reedição dos anos 30 do que compará-lo aos anos 60-70. Isto não significa endosso acrítico a todo e qualquer grupo ou governo que se oponha ao neoliberalismo em processo. A análise em pauta constitui um marco conceitual para que se compreenda melhor as tarefas capazes de identificar algum avanço histórico em defesa de países e grupos sociais excluídos da modernização. Refere-se ela ao arco capaz de orientar a formação de um bloco hegemônico alternativo à dominação excludente, mas não dispensa, logicamente, a compreensão do arqueiro que o empolga como grupo dirigente. A melhor aeronave não faz o melhor piloto. Prova-o o naufrágio do Titanic… Isto, porém, implica outro tipo de análise, inevitavelmente individualizada, que foge ao escopo deste artigo. Erros e até crimes do politicamente correto abundam na História e nos advertem para a lembrança de que, sobretudo os Governos, são criaturas do homem e como tais, sujeitos tanto à virtude como ao pecado.

* Economista, Pós-Graduado ESCOLATINA, Universidade do Chile e CEPAL/BNDES, Ex-Presidente do Conselho de Economia DF, Professor UnB


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora