Últimas Notícias > Geral > Areazero
|
19 de julho de 2014
|
17:41

Ganeses em Caxias do Sul agradecem ajuda e aguardam documentos para “começar nova vida”

Por
Sul 21
[email protected]
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Ganeses não estão acostumados com frio que atinge a Serra gaúcha | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Débora Fogliatto

O Seminário Nossa Senhora Aparecida, localizado nas proximidades dos pavilhões da Festa da Uva, na cidade da Serra gaúcha Caxias do Sul, costuma abrigar jovens homens que desejam estudar religião e se tornarem padres. Desde o início de julho, no entanto, a instituição recebeu também centenas de imigrantes vindos de Gana, país África ocidental, que chegaram à cidade em busca de emprego.

Alojados no ginásio do seminário, dormindo em colchões e recebendo comida e roupas a partir de caridade, os ganeses entraram no país com vistos de turista e agora buscam permanência, em sua maioria devido à recessão econômica em sua terra natal.

Saiba mais:
Mutirão interministerial agilizará emissão de documentos para ganeses alojados em Caxias do Sul
Caxias do Sul conta com apoio da comunidade para acolher 200 imigrantes ganeses à procura de trabalho

Embora já tenham passado pela cidade 354 ganeses, de acordo com a Fundação de Assistência Social (FAS), na noite de quarta-feira (16) para quinta-feira (17) eram 90 os imigrantes que dormiram no alojamento improvisado. Durante o dia, chegaram mais cinco, enquanto pouco mais de dez foram para Criciúma. Nesta sexta-feira (18), a Prefeitura de Caxias e o Ministério Público da União (MPU) reuniram-se com o Ministério Público Federal (MPF) para buscar soluções de auxílio aos ganeses.

Também nesta sexta-feira (18), a Prefeitura de Caxias realizou um mutirão de saúde, para o qual foi disponibilizado dois médicos, uma enfermeira e uma assistente social, devido a relatos de problemas de gripe registrados pelos ganeses. Ainda buscando auxiliar os imigrantes, na segunda-feira (21) acontece um mutirão, promovido pelo governo federal, para acelerar a expedição de documentos provisórios e uma missão envolvendo os ministérios da Justiça, Relações Exteriores, Trabalho e Emprego, Desenvolvimento Social e Combate à Fome, além de representantes do Estado do Rio Grande do Sul, estará em Caxias.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Imigrantes estão alojados no piso superior de um ginásio, dormindo em colchões | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Muitos dos ganeses que chegaram a Caxias são muçulmanos e estão atualmente no Ramadã, período em que devem jejuar durante o dia e se alimentar somente a partir das 18h, quando preparam comida, feita em uma grande panela, para todos,  na cozinha do próprio ginásio, com produtos recebidos em doações. Alguns usam roupas típicas semelhantes a vestidos, que utilizam dependendo da região do país, enquanto a maioria se vestia com calça jeans e jaquetas, buscando se esquentar ao máximo. O frio e a chuva atingiam a cidade nesta quinta-feira (17) e os imigrantes afirmaram “nunca ter sentido” nada como este clima.

Eles costumam passar os dias dentro dos limites do Seminário, com eventuais idas ao centro da cidade para fazer compras ou ir até a Polícia Federal encaminhar documentos. Também gostam muito de futebol, que contaram ser bastante popular no país, e aproveitam a quadra do ginásio para jogar durante as tardes.

Ao chegarem, os imigrantes precisam identificar-se e  preencher um formulário expondo os motivos que os levaram ao país. Então, apresentam-se à Polícia, que emite protocolo que funciona como documento e a partir do qual podem encaminhar solicitação de carteira de trabalho. Nesta sexta-feira (18), cerca de 25 ganeses foram visitar a empresa alimentícia Dauper, em Gramado, que se mostrou interessada em contratar dez imigrantes.

Inicialmente, os ganeses mostraram-se desconfiados com a chegada da reportagem do Sul21, relatando também estarem cansados de receber tantos jornalistas. Mas com o tempo, começaram a contar suas histórias – esclarecendo que cada um é diferente do outro e cada qual tem seus próprios motivos para vir ao Brasil– e a pedir pequenas ajudas, se mostrando dispostos a aprender português e a trabalhar com “qualquer coisa”.

Farid

Farid Kamil tem 33 anos e trabalhava como professor em Acra, capital de Gana. Chegou ao Brasil no dia 5 de julho, a partir de São Paulo, passou por Criciúma e chegou em Caxias do Sul dois dias depois. Sozinho, conheceu os outros ganeses ao chegar na cidade e agora divide com eles a estrutura de alojamento precária montada no ginásio do Seminário.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Farid é professor em sua terra natal e espera conseguir ensinar também no Brasil | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Inteligente e tranquilo, Farid conta que leu muito sobre o Brasil antes de vir e descobriu que o sul do país era “a melhor parte”. Ele agradece muito pela ajuda que têm recebido dos cidadãos e pela acolhida em Caxias, mas lamenta as dificuldades para se comunicar, “especialmente no telefone”.

Os ganeses são fluentes em inglês, língua oficial do país, mas em sua maioria não entendem nem falam português, o que dificulta sua comunicação até no encaminhamento de documentos oficiais. Por isso, voluntários que saibam as duas línguas são necessários para auxiliar no preenchimento das fichas de pedido de asilo e de registo profissional.

“É muito difícil, é a única coisa que está nos incomodando”, afirmou Farid. O fato de muitos ganeses terem ido para a mesma cidade é explicado com facilidade por ele. “Nós não conhecemos a língua, nem a cultura daqui, então vamos para onde sabemos que nossos irmãos estão”, esclareceu.

Os motivos que o levaram ao Brasil também são muito simples: “a economia não está crescendo em nosso país, não sabemos onde há empregos. E o Brasil é uma das economias que mais cresce no mundo”, explica. Farid espera aprender português para que possa continuar ensinando e se tornar professor de inglês no Brasil.

Em geral, os ganeses se mostraram dispostos a fazer “qualquer tipo de trabalho”, mesmo os que têm qualificações e já atuavam em outras áreas em seu país de origem. “Eu sou professor, mas eu faria trabalhos manuais se for necessário. Eu preciso ajudar minha família”, disse Farid, que é o mais velho de 19 irmãos e irmãs, explicando que tradicionalmente os filhos primogênitos ajudam no sustento da família.

Mustafa e Maria do Carmo

Mustafa conversava alegremente com a Irmã Maria do Carmo Gonçalves, coordenadora do Centro de Atendimento ao Migrante (CAM), embora ela saiba pouco inglês e ele, “pouco pouco” português. Mesmo assim, o carinho que sente por ela é visível: “Maria é muito boa para nós”, afirmou. O apreço não é surpreendente. Maria do Carmo acompanha, acolhe e ajuda os imigrantes da cidade, auxiliando-os a conseguirem empregos e alojamento.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Mustafa contou que sabe tocar tambor e quer participar do Carnaval | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Foi a partir de contatos feitos pelo CAM que os ganeses conseguiram ficar hospedados no Seminário, coordenado pelo Padre Edmundo Marcon. E é também o CAM que ajuda no preenchimento de formulários e faz contato com empresas para possíveis contratações de imigrantes.

“O que os brasileiros estão fazendo por nós, pedimos a Deus para devolver, porque no momento não temos como. Vocês estão sendo muito bons”, agradeceu Mustafa. Ele contou que não há guerras em Gana, mas alguns dos imigrantes vieram ao Brasil devido a brigas pessoais ou em suas tribos. “Mas a nossa economia está quebrada, eu preciso cuidar do meu pai, que é idoso, e da minha filha, de oito anos. Eu não tenho como alimentá-los”, lamentou.

Caso ele consiga um “bom emprego” no Brasil, Mustafa quer trazer sua filhinha para morar com ele. Atualmente, ela ficou morando com amigos, pois Mustafa é pai solteiro e sua mãe já é falecida. “Eu quero começar uma nova vida aqui, quero ficar em Caxias”, afirmou. Ele contou que sabe tocar tambor e está ansioso pelo Carnaval, para poder mostrar suas habilidades musicais para os brasileiros.

Prince e Amen

Gana é uma república presidencialista com eleições diretas, mas dentro das tribos se mantêm a tradição dos chamados reinos, com um líder como rei e seus descendentes considerados príncipes. Isso foi o que explicou Saruna Ibrahim, conhecido como “Prince” por alegar ser exatamente isso: um príncipe em sua tribo. Ele contou que seu falecido avô era um rei, mas que devido a disputas familiares ele não foi reconhecido como membro da família real, embora “todo mundo o conheça como Prince”.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Prince lembrou que cada um dos ganeses passou por coisas diferentes | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sentado junto a outros ganeses que não quiseram ser fotografados, Prince demonstrou ser crítico ao trabalho de jornalistas sobre a vinda dos imigrantes. “Cada um tem seus próprios problemas, sua própria história. Nós não nos conhecíamos, não passamos pelas mesmas coisas”, destacou. No entanto, o fato de haver compatriotas em Caxias foi o que o levou até lá.

Prince chegou por São Paulo, cidade que achou “muito cheia e barulhenta” e onde não conhecia ninguém. Ele prefere Caxias, que é um lugar “tranquilo”. “As pessoas são muito boas aqui, nos deram comida e um lugar para dormir. Não poderíamos pedir mais”, agradeceu.

O imigrante também elogiou Gana, que disse ser “um dos melhores países da África”, com pessoas muito boas e democracia. “Mas a falta de emprego é um grande problema”, explicou ele, que era um empresário, mas contou também saber dirigir muito bem e já ter trabalhado como motorista.

Bem mais quieto do que o amigo devido a uma dor de garganta, Muhammed Amen estava sentado ao lado de Prince, usando uma roupa típica adornada com estrelas douradas e tentando aprender um pouco de português. “Como se diz ‘I love you’?”, perguntou. Ele aprendeu rápido a falar algumas palavras e pediu para os repórteres escreverem em um papel o que ele deveria dizer quando fosse à farmácia pedir remédio para sua dor de garganta.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Ganeses conversavam enquanto preenchiam formulários para solicitar documentação | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Amen disse também que queria se casar no Brasil, com uma brasileira, e começar uma família aqui. “Quero começar uma vida nova. E as brasileiras são muito bonitas”, elogiou, aprendendo a dizer “bonitas” em português. Logo, um grupo de ganeses se reuniu em torno da reportagem do Sul21, sedentos por aprenderem novas palavras e expressões em português. Em poucos minutos, já passaram a chamar os repórteres de “amigos”.

Padre Edmundo

Quem segue a religião muçulmana tem o costume de rezar cinco vezes ao dia. No ginásio do seminário, eles coincidentemente praticam isso logo abaixo de uma grande cruz pendurada na parede. Esse encontro de religiões não incomoda o Padre Edmundo, coordenador do Seminário Nossa Senhora Aparecida, que abriga os imigrantes. “O Evangelho é para todos, sem distinção de raça, cor ou religião”, explicou.

O seminário cedeu o espaço do ginásio para os imigrantes, que não tinham para onde ir. Edmundo afirma que tem recebido muitas doações de comida, vestuário, colchões e cobertores. “A sociedade entendeu esta realidade do migrante, que chega sem condições e praticamente com a roupa no corpo”, destacou.

Os ganeses ainda sentem muito frio e não estão acostumados com o clima da serra gaúcha. O Seminário aceita doações na própria sede (Rua Ivo Remo Comandulli, 897), assim como no Centro de Atendimento ao Migrante (54 – 32271459) e na Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores (54 – 3218.1613).

 

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Os ganeses são muçulmanos e estão no mês do Ramadã | | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora