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22 de março de 2014
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20:17

Teatro de Arena de Porto Alegre: memória viva nos altos do viaduto da Borges

Por
Sul 21
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Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
No foyer ainda figura a placa da década de 1960 | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Roberta Fofonka

Para contar a história do Teatro de Arena de Porto Alegre seria preciso mais do que uma matéria, pois o pequeno teatro das escadarias da Borges de Medeiros permeia a vida de muita gente, fazendo com que a história necessitasse de incontáveis braços. O que faremos será relembrar passagens e reavivar a memória de tantos acontecimentos.

Vamos ao passado: em meados de 1966, enquanto caminhava nos altos do viaduto da Borges, guiado por um cheiro forte de esgoto, o ator Jairo de Andrade descobriu, por uma janelinha, o porão do edifício Duque de Caxias. No ano seguinte, precisamente em 17 de outubro, no mesmo local seria inaugurado o Teatro de Arena, com a peça O Santo Inquérito, de Dias Gomes, construído pelas mãos dos próprios atores.

| Foto: Governo do Estado/Divulgação
Anseio da administração atual é que estrutura passe por uma reforma total | Foto: Governo do Estado/Divulgação

Após negociações com o proprietário (uma proposta de venda que culminou em empréstimo do espaço até a obra finalizar) Jairo e membros do Grupo de Teatro Independente, o GTI, começaram a escavar e reformar a estrutura, que nem de longe tinha aspecto de teatro. Com consultorias de amigos arquitetos e o braço de tantos outros estudantes e artistas, a estrutura de arena com três lados de arquibancadas e 110 lugares foi tomando forma. “Tinha gente chegando para o espetáculo de estreia e alguns de nós ainda estávamos cortando as tábuas do acento da plateia” relembra o ator Hamilton Braga, membro do GTI antes mesmo da descoberta do Arena.

Um dos resquícios da obra figura até hoje no foyer do teatro. A chamada “pedra da resistência”, rocha mais difícil de ser extraída do espaço aonde ficaria o palco, que somente foi retirada com o uso de um martele especial emprestado pela Carris.

Arte de resistência

O GTI foi fundado em 1965 com uma linha de trabalho específica, o teatro político. Em plena ditadura militar, o Arena, agora ninho do GTI, foi um ícone de resistência artística e da crítica constante ao regime. Após as peças, eram feitos debates sobre a situação política vigente. “Qual era o sentido do teatro nos anos de chumbo? Era uma forma de mostrar para quem via mas não enxergava o que estava ocorrendo no país”, explica Sergio Vargas, o Zezo, que entrou para o GTI somente em 1970. Seu irmão mais velho, Câncio, participou da construção, assim como Hamilton. “A censura vinha e tirava um trecho do roteiro que julgava abusivo. A gente ia lá e substituía, por algo ainda pior. E eles nem notavam, parece é que tinham só que mostrar que tinham o poder para mandar alterar. Mas a gente acabava botando em cima algo sempre pior”, conta.

Zezo relata que se deu conta da conduta do Teatro de Arena quando, muito antes de se aventurar como ator lá, foi alistar-se no exército, aos 19 anos. Zezo percebeu que, para cada garoto, um militar ia perguntando os locais de trabalho e estudo. Zezo não mantinha nenhum dos dois. “Então, para não acharem que eu era vagabundo, lembrei do Teatro de Arena, afinal, tinha a ver com o meu irmão mais velho, era uma referência de estabelecimento que eu tinha.” Quando chegou a vez de Zezo responder se trabalhava, ele decidiu afirmar que sim. “Aonde? – No Teatro de Arena! – eu respondi. E o soldado sem pensar duas vezes me deu uma bofetada.”

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

O Arena publicava também as edições de Teatro em Revista, um projeto paralelo sobre as encenações do teatro, eventualmente o programa de apresentações, tudo datilografado por Hamilton. Na primeira fase do teatro, foram apresentadas peças como Álbum de família (de Nelson Rodrigues, recém liberada pela censura, em 1968), Quando as máquinas param (de Plínio Marcos), Arturo Ui e Os Fuzis da Senhora Carrar (ambos de Bertold Brecht), Mockinpott (de Peter Weiss), e Cordélia Brasil (de Antônio Bivar), além de outras. Pelo caráter político das apresentações, era raro que não houvesse intervenções do exército.

Em Os Fuzis da Senhora Carrar, por exemplo, que tinha fuzis desativados emprestados pela Brigada Militar como objeto cênico, o exército apreendeu de forma violenta, mesmo com o documento de empréstimo assinado pela Brigada Militar. Tudo permeado por confusão e violência, claro, que resultou na detenção de Jairo de Andrade por várias horas para prestar depoimento no 18º R.I.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

“SR. MOCKINPOTT – Mas será que nesta terra não há mais justiça? Eu nunca ofendi a lei, nem a polícia. Eu nunca comprei a briga de ninguém. Eu nunca cobicei o que o outro tem. Sempre com modéstia eu acho ter vivido. E sempre procurei evitar mal-entendidos. Um dia, de repente, sem saber como é que é, a gente acaba preso e acorrentado no pé.” (Trecho de Mockinpott proibido pela censura brasileira, retirado do livro Teatro de Arena – Palco de resistência [Libretos, 2007])

Constantemente vigiados, os atores, bem como as prostitutas, possuíam uma carteirinha de identificação para transitar na cidade, significado de que estavam “limpos”. Era comum a presença de militares à paisana nos arredores do Arena, assim como a presença durante os espetáculos. “Tu começas a ser amordaçado e vai perdendo as forças”, define Zezo, que inclusive foi detido em um dia que não portava a tal carteirinha.

No início de 1975, uma atividade bastante marcante do Teatro de Arena eram as “Rodas de som”, produzidas por Carlinhos Hartlieb, que aconteciam sempre nas sextas-feiras à meia-noite, com o objetivo de apresentar ao público novos nomes da música gaúcha. De lá saíram e ganharam repercussão trabalhos como de Bixo da Seda (antiga banda Liverpool), Bebeto Alves, Nelson Coelho de Castro, Mutuca, Mauro Kwitko.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Zezo Vargas: “Era uma forma de mostrar para quem não enxergava, o que realmente estava ocorrendo”  | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Mesmo com a repressão, o fechamento veio em 1979 por motivos financeiros. Apesar de protestos pela reabertura em 1980, foi somente em 1988, quase dez anos depois sem atividades, que o espaço passou a ser considerado utilidade pública e integrar a Secretaria estadual de Cultura. A reinauguração oficial ocorreu em 1991.

A reabertura e o movimento atual constante

De volta à ativa há mais de duas décadas, o Teatro de Arena abriga o Espaço Sonia Duro, um Centro de Documentação e Pesquisa em Artes Cênicas, que inclusive reúne textos provenientes do Departamento de Censura da Polícia Federal à época do regime militar, com 2.100 textos dramáticos censurados, e o projeto Memória Viva, com arquivos históricos de vídeo. Devido às dificuldades de conservação, o próximo passo, agora, é digitalizar todo o material.

O Arena mantém-se vivo de forma muito forte atualmente. A diretora Marlise Damin explica que a rotina do teatro às vezes tem ocupação de domingo a domingo, não só com peças e ensaios, mas com projetos paralelos, como o ensino de música para crianças, o Projeto Música Autoral, em parceria com o músico Mozart Dutra, que abre espaço mensalmente para o aparecimento de novos compositores e bandas, e um projeto de teatro clown para deficientes em recuperação. Além disso, o Arena recebe, todo ano, os festivais Palco Giratório, Porto Alegre em Cena e Porto Verão Alegre, e tem já consolidado o Prêmio de Incentivo à Pesquisa Teatral no Teatro de Arena, edital que dispõe de R$ 30 mil e estrutura física para dois grupos desenvolverem um projeto, cada um em um semestre. Além da já tradicional semana de aniversário, em outubro, em que acontecem atividades especiais todos os dias.

Com essa atividade intensa, porém, a estrutura vai ficando debilitada. Marlise espera ansiosa por recursos de uma emenda parlamentar que deve contemplar o projeto de reforma total do teatro, um novo passo na história do Arena. “A gente vai tentando sempre fazer o máximo com o mínimo. Isso aqui é um lugar precioso que precisa ser mantido”, sintetiza. Ela conta que também está tentando conseguir uma sala de ensaios à parte ao teatro — que já está pequeno para a agenda que oferece, e que também está começando os diálogos para intercâmbios artísticos com o Teatro de Arena do Rio de Janeiro. É muita coisa.

“Até hoje ele mantém o clima dos primeiros tempos”, afirma Hamilton, sentado na plateia, contemplativo. E não é de se duvidar. A própria atmosfera do lugar é diferente. Ao entrar, as paredes pretas com o ar de enigma, sufocante e ao mesmo tempo íntimo, convidam à suspeita. A sensação é de que a memória continua ali, em algum lugar, inaudível. Mas muito presente.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Teatro fica nos altos do viaduto Otávio Rocha, na Av. Borges de Medeiros | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
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A pedra. | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
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Foyer do teatro abriga os cartazes antigos e novos, a Pedra da Resistência e o antigo letreiro | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

 


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