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14 de março de 2014
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15:18

Brasil lembra centenário de escritora que definiu favela como quarto de despejo

Por
Sul 21
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Brasil lembra centenário de escritora que definiu favela como quarto de despejo
Brasil lembra centenário de escritora que definiu favela como quarto de despejo

Camila Maciel
Agência Brasil 

“Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.” A metáfora é forte e só poderia ser construída dessa forma, em primeira pessoa, por alguém que viveu essa condição. Relatos como este foram descobertos na final da década de 1950 nos diários da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Moradora da favela do Canindé, zona norte de São Paulo, ela trabalhava como catadora e registrava o cotidiano da comunidade em cadernos que encontrava no lixo. O centenário de nascimento de uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil é comemorado nesta sexta-feira (14).

Nascida em Sacramento (MG), Carolina mudou-se para a capital paulista em 1947, momento em que surgiam as primeiras favelas na cidade. Apesar do pouco estudo, tendo cursado apenas as séries iniciais do primário, ela reunia em casa mais de 20 cadernos com testemunhos sobre o cotidiano da favela, um dos quais deu origem ao livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado em 1960. Após o lançamento, seguiram-se três edições, com um total de 100 mil exemplares vendidos, tradução para 13 idiomas e vendas em mais de 40 países.

Autora de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, a escritora negra Carolina Maria de Jesus nascia há 100 anos / foto: Audálio Dantas
Autora de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, a escritora negra Carolina Maria de Jesus nascia há 100 anos / foto: Audálio Dantas

 

“É um documento que um sociólogo poderia fazer estudos profundos, interpretar, mas não teria condição de ir ao cerne do problema e ela teve, porque vivia a questão”, avalia Audálio Dantas, jornalista que descobriu a escritora em 1958. O encontro ocorreu quando o jornalista estava na comunidade para fazer uma reportagem sobre a favela do Canindé. “Pode-se dizer que essa foi a primeira [favela] que se aproximou do centro da cidade e isso constituía o fato novo”, relembrou. Ele conta que Carolina vivia procurando alguém para mostrar o seu trabalho.

Uma mulher briguenta que ameaçava os vizinhos com a promessa de registrar as discórdias em um livro. É assim que Audálio recorda Carolina nos primeiros encontros. “Qualquer coisa ela dizia: ‘estou escrevendo um livro e vou colocar vocês lá’. Isso lhe dava autoridade”, relatou. Ao ser convidado por ela para conhecer os cadernos, o jornalista se deparou com descrições de um cotidiano que ele não conseguiria reportar em sua escrita. “Achei que devia parar com a minha pesquisa, porque tinha quem contasse melhor do que eu. Ela tinha uma força, dava pra perceber na leitura de dez linhas, uma força descritiva, um talento incomum”, declarou.

Apesar de os cadernos conterem contos, poesias e romances, Audálio se deteve apenas em um diário, iniciado em 1955. Parte do material foi publicado em 1958, primeiramente, em uma edição do grupo Folha de S.Paulo e, no ano seguinte, na revista O Cruzeiro, inclusive com versão em espanhol. “Houve grande repercussão. A ideia do livro coincidiu com o interesse da editora Francisco Alves”, relatou. O material, editado por Audálio, não precisou de correção. “Selecionei os trechos mais significativos. [O texto] foi mantido na sintaxe dela, na ortografia dela, tudo original”, apontou.

Entre descrições comuns do cotidiano, como acordar, buscar água, fazer o café, Audálio encontrou narrativas fortes que desvendavam a vida de uma mulher negra da periferia. “Ela conta que tinha um lixão perto da favela, onde ela ia catar coisas. Lá, ela soube que um menino, chamado Dinho, tinha encontrado um pedaço de carne estragada, comeu e morreu. Ela conta essa história sem comentário, praticamente. Isso tem uma força extraordinária”, exemplificou.

Para Carolina, a vida tinha cores, mas, normalmente, essa não é uma referência positiva. A fome, por exemplo, é amarela. Em um trecho do primeiro livro, a autora discorre sobre o momento em que passa fome. “Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.” Para Audálio, o depoimento ganha ainda mais importância por ser real. “Um escritor pode ficcionar isso, mas ela estava sentido”, disse.

Audálio relata que Carolina tinha muita confiança no próprio talento e já se considerava uma escritora, mesmo antes da publicação. “Quando o livro saiu, a alegria dela foi muito grande, mas era uma coisa esperada”, relatou. O sucesso da primeira publicação, no entanto, não se repetiu nos outros títulos. Após o sucesso de Quarto de Despejo, a editora Francisco Alves encomendou mais uma obra, a partir dos diários escritos por ela quando já morava no bairro Alto de Santana, região de classe média. Surgiu então o Casa de Alvenaria (1961) que, segundo o jornalista Audálio Dantas, responsável pela edição do material, vendeu apenas 10 mil exemplares.

Audálio lembra que Carolina se considerava uma artista e tinha pretensões de enveredar por diferentes ramos artísticos. Um deles foi a música. Em 1961, ela lançou um disco com o mesmo título de seu primeiro livro. A escritora interpreta 12 canções de sua autoria, entre elas, O Pobre e o Rico. “Rico faz guerra, pobre não sabe por que. Pobre vai na guerra, tem que morrer. Pobre só pensa no arroz e no feijão. Pobre não envolve nos negócios da nação”, diz um trecho da canção.

Para o jornalista, a escritora foi consumida como um produto que despertava curiosidade, especialmente da classe média. “Costumo dizer que ela foi um objeto de consumo. Uma negra, favelada, semianalfabeta e que muita gente achava que era impossível que alguém daquela condição escrevesse aquele livro”, avaliou. Essa desconfiança, segundo Audálio, fez com que muitos críticos considerassem a obra uma fraude, cujo texto teria sido escrito por ele. “A discussão era que ela não era capaz ou, se escreveu, aquilo não era literatura”, recordou.

Carolina de Jesus publicou ainda o romance Pedaços de Fome e o livro Provérbios, ambos em 1963. De acordo com Audálio, todos esses títulos foram custeados por ela e não tiveram vendas significativas. Após a morte da escritora, em 1977, foram publicados o Diário de Bitita, com recordações da infância e da juventude; Um Brasil para Brasileiros (1982); Meu Estranho Diário; eAntologia Pessoal (1996).

Coletivos de cultura reacendem interesse por obra de Carolina Maria de Jesus

Se por um lado, a obra de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é esquecida pelo mercado editorial brasileiro, por outro, coletivos de cultura se esforçam para multiplicar o testemunho de uma das mais importantes autoras negras do país. Em Salvador (BA), um grupo de mulheres negras formou o Coletivo Carolinas para propor atividades de reflexão no ano do centenário da escritora. Em São Paulo, na capital e no interior, raps e saraus de poesia inspiram-se nos textos de Carolina para pensar os desafios de uma realidade descrita na década de 1950, mas que se revela atual.

“Colocamos a necessidade de celebrar a obra de Carolina, fazê-la emergir e formar novas plateias, seja do ponto de vista da criação literária, seja pela frequência nos espaços”, explicou a socióloga Vilma Reis, integrante do Coletivo Carolinas, lançado em 21 de janeiro. O grupo, que atua em parceria com o Instituto Odara da Mulher Negra, faz neste ano uma série de atividades para marcar o centenário da escritora, como formações em comunidades sobre escrita criativa, cafés literários e a montagem de um espetáculo teatral, cujo texto foi encomendado à escritora Conceição Evaristo.

Vilma relata que esse projeto já se revela de muita força, sobretudo, a partir do contato de mulheres jovens com a escrita de Carolina de Jesus. “Participamos de um encontro na região do Recôncavo Baiano e muitas mulheres diziam: ‘quando eu leio Quarto de Despejo, ela está falando da minha vida hoje’. Os desafios que estavam postos para Carolina em 1955 continuam, por isso que a chamamos de centenária e atemporal”, declarou.

Por meio do texto de Carolina de Jesus, as periferias brasileiras se encontram. O depoimento das jovens baianas se aproxima do som feito pela rapper Sara Donato, de 23 anos, moradora de São Carlos, interior paulista. “Literatura marginal inconsciente foi escrita, marcando vidas mesmo sem ser conhecida. Respeito é chave para alguém que morreu no anonimato, talentosa, guerreira, para muitos em formato abstrato. A favela nada mais é um quarto de despejo, a burguesia joga aqui, tudo o que não é do se desejo”, revela o trecho do rap escrito por ela.

Sara, que é integrante da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop, conheceu a obra de Carolina quando ainda estava na escola. “A professora colocou em um trabalho de português aquela frase ‘A fome é amarela’. Fiquei interessada e fui pesquisar”, relatou. O exercício de pesquisa, no entanto, não foi fácil. “Tive que ir na biblioteca do centro, porque procurei em outras aqui do bairro, mas não achei nada”, apontou. Inspirada pelo livro Quarto de Despejo, Sara escreveu o rapcom a ideia de alcançar outras mulheres, que também enfrentam uma vida dura, e lembrar o quanto é importante a presença da mulher na literatura.

Na zona sul da capital paulista, é nos saraus da Cooperifa que a palavra de Carolina ressurge. “Quando ela dizia [que a favela é o] quarto de despejo, era isso mesmo e, em muitos lugares, é ainda. Nessas leituras, a gente faz a reflexão de como podemos mudar a nossa realidade”, disse o poeta Sérgio Vaz, coordenador da Cooperifa, movimento cultural organizado há 12 anos que promove saraus de poesia no bar do Zé Batidão, no bairro Jardim Guarujá.

Sérgio considera Carolina de Jesus uma inspiração para mudar coletivamente a realidade das periferias. “Para mim, [ela] é o Dom Quixote da mulher negra. É uma sonhadora que enfrentou moinhos de mãos afiadas. Como, nos anos 1950, na favela do Canindé, alguém pensa em escrever um livro? Só sendo um Dom Quixote mesmo, só sendo uma sonhadora”, declarou. O poeta destaca a literatura periférica como uma referência atual à obra de Carolina. “É justamente o desejo de mudar essa condição, de não ser mais o quarto de despejo, de se impor”, apontou.


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