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25 de agosto de 2011
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15:36

Na memória dos filhos, ficaram a luta e a tristeza de Jango e Brizola

Por
Sul 21
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Jango com a mulher e os filhos l l Foto: Instituto João Goulart

Nubia Silveira

A renúncia de Jânio Quadros há exatos 50 anos marcou a história brasileira e, em especial, a vida de cinco crianças, de 2 a 10 anos, filhos de dois dos principais personagens da crise de 1961: o então vice-presidente João Goulart e o governador gaúcho Leonel Brizola. João Vicente, 3 anos, e Denise, 2 anos, filhos de Jango, estavam na Espanha, com a mãe Maria Tereza Goulart, esperando que o pai concluísse a viagem à China. José Vicente, 10 anos, João Otávio, 8 anos, e Neusa, 6 anos, foram retirados do Palácio Piratini e levados para a casa da amiga e escritora Mila Cauduro, pela mãe Neusa Brizola. Passadas cinco décadas, João Vicente e Denise Goulart dizem que as lembranças daqueles tempos foram sendo formadas em suas memórias já no exílio, depois do golpe de 1964. “Só lembro pelo relato do meu pai. Aquele foi um momento muito difícil”, afirma Denise. “Não tenho lembrança viva, mas de referência”, diz o irmão João Vicente. “Só retornamos da Europa depois da posse do meu pai”. O primo dos dois, João Otávio Brizola, ao contrário, lembra bem daquele 25 de agosto de 1961: “Fui com o pai ao desfile do Dia do Soldado, ali na Redenção, quando ele soube da renúncia de Jânio”, recorda o filho de Leonel Brizola.

João Otávio considera que a crise se aprofundou dois dias após a renúncia de Jânio. “Foi no dia 27 que nós saímos do Palácio e foram para a casa da Mila Cauduro, onde ficamos entre quatro e cinco dias”. Neste período, a mãe telefonava para os filhos várias vezes ao dia. Eles chegaram a visitar os pais no Palácio, por três vezes. Nas duas primeiras não puderam entrar pela porta da frente, porque o prédio estava protegido pela Brigada Militar. “Entrávamos pela rua de baixo (Fernando Machado)” – conta. “Ver meu pai era mais difícil. Ele estava visivelmente nervoso, com a barba por fazer”. Dona Neusa, lembra, se mostrava muito nervosa e estressada. “Ela nos explicou toda a situação, mas não entendíamos a gravidade do momento. Em 64, minha mãe explicou muito mais ainda. E o meu pai também”.

Neusa Brizola retirou os três filhos do Palácio Piratini l Foto: Reprodução do livro Nós e a Legalidade

Mila Cauduro, madrinha de João Otávio, também fazia o possível para que as crianças entendessem o que estava acontecendo. Respondia todas as perguntas que lhe faziam. Nas lembranças da infância dividem espaço os sacos de areia que protegiam o Palácio, as armas usadas pela Brigada Militar e nomes como o do coronel Átila Escobar, então chefe da Casa Militar. “Lembro do coronel depositando as armas no pátio em frente à entrada da ala residencial do Palácio e dizendo para o meu pai: ‘Estas armas vão estar ao seu dispor para sempre’”.

Tentativa de golpe começara em 53

Denise ressalta que a postura dos ministros militares, contrários à posse de Jango na Presidência, não era nova. A oposição ao vice- presidente começara em 1953, quando ele era ministro do Trabalho de Getúlio Vargas e concedeu aumento de 100% ao salário mínimo, lembram ela e seu irmão João Vicente. “O desfecho veio com o golpe de 1964”, afirma Denise, por telefone do Rio de Janeiro, onde vive. “A Legalidade foi um prenúncio de 64”. O mesmo pensam João Vicente e João Otávio.

Denise Goulart (E) com a mãe, Maria Tereza: oposição a Jango vinha desde 1953 l Foto: PDT

Formada em História, Denise considera a Legalidade “um movimento mais popular do que uma organização política, em que houve uma ampla oposição à intenção de golpe”. Para ela, este foi o mais popular de todos os movimentos brasileiros. Já para João Vicente, que tomou conhecimento da Legalidade em conversas com o pai, este “foi um movimento de apoio à democracia, como nunca se viu no século XX, com sentido de patriotismo e amor à Constituição”.

A dor dos pais

Nenhuma das crianças tinha idade para sentir medo das ameaças feitas pelos ministros militares. No entanto, não esquecem a desilusão e a dor, sentidas pelos pais, nos acontecimentos de 1961 e 1964. João Otávio Brizola lembra que o ambiente no Palácio começou a ficar “mais desestressado” e ele e os irmãos puderam retornar ao local, logo após a adesão do comandante do III Exército, general Machado Lopes. O que surpreendeu foi a disposição do “tio Jango” em negociar a posse sob o parlamentarismo. A família Brizola foi – segundo João Otávio – se despedir do irmão, cunhado e tio no Aeroporto Salgado Filho, quando Jango embarcou para Brasília. “Fomos num Chevrolet 57 Bel Air”. Naquele momento, porém, o que ficou marcado na memória do segundo filho de Neusa e Brizola foi “o desgosto do pai”. O governador, que liderara o movimento da Legalidade, “não gostou da solução” encontrada para a posse de Jango. Brizola era contra o parlamentarismo. “Ele não gostou do desfecho. Dizia que a História nos deu uma oportunidade e não soubemos aproveitá-la”, diz João Otávio, de Montevidéu, onde vive como fazendeiro. Ele revela uma certeza que tem ainda hoje: João Goulart poderia ter assumido, mesmo que não aceitasse o parlamentarismo.

"Brizola dizia que a História nos deu uma oportunidade e não soubemos aproveitá-la", lembra o filho João Otaviol Foto: wikipedia.org

Denise, ao contrário do primo, diz que a única forma de Jango assumir a presidência, naquele momento, era sob o sistema parlamentarista. “Meu pai fez a conciliação para assumir. Logo depois, com o plebiscito, voltamos ao sistema presidencialista. Aquele era um momento de muita tensão, em que não se tinha a comunicação que se tem hoje. Tudo era imprevisível”, afirma. “Ele aceita o parlamentarismo para que os ânimos não se acirrem”, completa João Vicente.

Tanto João Vicente quanto Denise lembram da tristeza do pai no exílio, depois do golpe de 64, que – concordam todos – começou a ser tramado ainda em 61. “Por trás da conciliação sobrevivia a conspiração que acabou por derrotar o governo constitucional”, afirma a filha. Os militares e as elites brasileiras, segundo ela, sempre tiveram Jango como um político de esquerda, que “era realmente”, como um socialista ou comunista. Para Denise o pai era, antes de tudo, um nacionalista. “Se cometeu algum erro, foi o de propor reformas para o país naquele momento”.

João Vicente, com os pais, Jango e Maria Tereza l Foto: novademocracia.com.br

Ainda criança e adolescente, Denise sofria ao ver a tristeza de Jango, por não voltar ao Brasil. “Não podia voltar por ter acreditado num projeto para o país”, ressalta a filha, que pretende voltar a trabalhar com a História do Brasil, pela qual começou a se interessar ainda muito jovem, aos 10 anos, no exílio, no Uruguai.

Na família Brizola, a dor do exílio acabou sendo dupla para Neusa, esposa de Leonel e irmã de Jango. Os dois políticos brigaram, porque Brizola – conta o filho – acreditava ser possível empreender “uma luta mais intensa contra a ditadura”. Mais tarde, segundo João Otávio, reconheceu que a impossibilidade de resistir. Os cunhados voltaram a falar e se encontraram apenas uma vez, “pouco antes da morte de Jango”. Dona Neusa, diz o filho, “sempre foi muita ligada ao Jango. Para ela, a briga foi pior que o próprio exílio. Ela via o irmão, mas não era a mesma coisa”.

Espaços reduzidos

“Aqui na América Latina, os espaços para os que queremos e lutamos pela democracia e liberdade estão cada vez mais reduzidos”, disse Jango ao filho, quando golpes militares começaram a derrubar, também, os governos do Uruguai, da Argentina, do Chile, da Bolívia. “Houve um momento em que só restou o governo democrático da Venezuela”, lembra o diretor do Instituto João Goulart, por telefone, desde Brasília, onde vive e mantém o Instituto.

João Vicente Goulart fala como um político em palanque. Entusiasma-se ao denunciar a participação do governo militar brasileiro na queda dos regimes democráticos latino-americanos. “Fui para o exílio com seis anos. À medida que crescia tomava conhecimento da resistência dos latino-americanos às ditaduras”. Ele recorda que queria saber por que não podiam “retornar à pátria”. E foi este questionamento que o levou a lutar pela democracia.

Jango com os filhos Denise e João Vicente l Foto: José Abraham

Em 1975, com os países da América Latina presididos por militares, Jango enviou os filhos para Londres. Em 11 anos de exílio já tinham vivido no Uruguai e na Argentina. Denise fala com alguma tristeza sobre o exílio: “Sou brasileira. O Brasil é a minha pátria, mas tenho identidade com o Uruguai”. Recorda que foi alfabetizada em espanhol, passou a infância no Uruguai onde tinha amigos. Até hoje, quando volta para lá, vai atrás do que viveu em terras uruguaias. “Sempre falo que a gente sofre com a falta de identidade, no exílio. É estrangeiro no exílio e quando volta é estrangeiro. Não tem raízes”. Um mal do qual não padecem suas filhas, Bárbara e Isabela, que sentem orgulho de serem netas de João Goulart.

Expedição pelos túneis

Com a posse de Jango, a tranquilidade voltou ao Palácio Piratini e as crianças, afirma João Otávio Brizola, puderam fazer uma expedição pelos túneis do Palácio. “Há um túnel que vai do porão do Palácio até a rua Jerônimo Coelho, onde ficava uma garagem. Nós fomos com os motoristas por este túnel”. A aventura é revivida com alegria. “Meu pai nos levou ao porão uma vez só para vermos o local onde funcionava a Rádio da Legalidade. Era uma sala apertada, com paredes amarelas. O coordenador ali era o Hamilton Chaves. Tinha também o Hélio Fontoura e o coronel Neme, que coordenava a colocação dos sacos de areia”, recorda.

João Otávio lembra de Hamilton Chaves (C) nos porões do Palácio l Foto: Reprodução

Foi nos porões, com a Rádio da Legalidade, que Brizola firmou o seu papel na História brasileira. Hoje, seu nome ainda tem força na política, como prova a eleição de três de seus netos pelo PDT: Juliana Brizola, deputada estadual, no Rio Grande do Sul; Leonel Brizola Brizola Neto, vereador do Rio de Janeiro, e Brizola Neto, deputado federal pelo Rio. Mas, se os descendentes de Brizola não têm do que se queixar, os filhos de Jango reclamam do mau tratamento dado ao governo Goulart nos livros escolares, por exemplo. “Há um grande silêncio em volta dele, o que é terrível”, declara Denise. João Vicente vê, neste silêncio sobre a biografia e a trajetória política do pai, o desejo de esconder a necessidade que o país ainda sofre de reformas, como as pretendidas por Jango. “Trazer a memória de Jango à luz é trazer a luta pelas reformas de base”.


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