Geral
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22 de agosto de 2011
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23:01

Legalidade: ilusão e eternidade

Jânio Quadros e João Goulart tomaram posse como presidente e vice-presidente da República, em 31 de janeiro de 1961 l Foto: projetomemoria.art.br
Jânio Quadros e João Goulart tomaram posse como presidente e vice-presidente da República, em 31 de janeiro de 1961 l Foto: projetomemoria.art.br

Paulo Cezar Timm*

O Brasil começara bem o ano de 1961, com a posse de Jânio Quadros, candidato de grande carisma, eleito pelas forças conservadoras contra o General Henrique Teixeira Lott, um abnegado legalista, sem muito apelo popular, apoiado pelo PTB e PSD, uma espécie de PT/PMDB dos dias atuais. O vice-presidente, porém, era votado independentemente do cabeça de chapa e resultou no paradoxo de pousar a preferência em João Goulart, do PTB, ex-ministro do Trabalho de Vargas, pouco antes de seu suicídio, enquanto Jânio era da UDN. Mas Jânio surpreendia a cada dia seus próprios aliados, chegando mesmo a condecorar, em Brasília, o líder Che Guevara, além de um conjunto de outras medidas extravagantes como a preocupação com as rinhas de galo ou as vestes femininas. Em pouco tempo estava sem apoio no Congresso Nacional. E, denunciando forças ocultas, jamais reveladas, renuncia peremptoriamente no dia 25 de agosto de 1961.  A Lei mandava o vice João Goulart, então em viagem à China, assumir. As tensões internas explodem e os militares pró-americanos tentam evitar a posse de Jango sob o pretexto de que este poderia aprofundar e até aliar-se ao bloco comunista. No vácuo de poder em Brasília, instala-se o golpismo.

Leonel Brizola, jovem e progressista Governador do Rio Grande do Sul, do mesmo Partido de Jango – o PTB –, percebe a manobra conservadora e se insurge em defesa da Lei. Em pouco tempo certifica-se de alianças no Estado e proclama, do Piratini, o Movimento em Defesa da Legalidade, um dos mais importantes momentos da história política do Brasil.

Não vou me estender sobre as características e projeções da “Legalidade”. Aos mais interessados sugiro uma olhada na coletânea “Legalidade 50 Anos”.  Mas vou contar um pequeno episódio que ocorreu comigo, naqueles dias, para transmitir um pouco do sentimento que ela provocou na sociedade.

Tinha eu, na época, 16 anos e estava na Escola Preparatória de Cadetes, hoje Colégio Militar, na Redenção. Era já um portoalegrino assimilado, pois chegara em Porto Alegre em 1955 e passara pelo Ginásio no Colégio Julio de Castilhos, uma verdadeira escola de quadros republicanos com grande efervescência política. Muito precoce, frequentava, com desenvoltura, todos os recantos tanto da boa como da sutil sociedade local, descendo do Alto de Bronze para os baixios cercanos ao porto, ao cadeião do gasômetro e à Pantaleão Teles com a mesma naturalidade como entrava nas rasas águas do Guaíba, ao fundo das Ruas Riachuelo e Duque. Curioso e atrevido, até para a época, viajava de carona nos trens “noturnos” para Santa Maria e amanhecia na casa da minha avó para tomar café. Ia e voltava, toda hora… Lá estava, aliás, quando soube de minha aprovação na Escola de Cadetes e apressei-me, no início de 60, para vir de volta de uma destas férias, junto com Santini, Pavani, José Carlos Codevilla Pinheiro e Bolhovar, para trilhar a carreira das armas.

Em 1961, sentia-me senhor de mim e do meu mundo, que ia do Alto da Bronze até o Rio da Prata, que já visitara várias vezes, em excursão com os colegas do Julinho, todos nós liderados por João Alberto Pratini de Moraes, de quem eu era fiel escudeiro. Ali, do outro lado da fronteira, esticando até Montevidéu, Colonia e Buenos Aires. Daí sentir-me, até hoje, gaúcho pelo amor ao pampa sem cercas, pela aventura sem nenhum medo e pelo travo amargo do chimarrão arranhando a madrugada…

Pegou-me a Legalidade ali no casarão militar, já veterano. Pouco depois da cerimônia do Juramento à Bandeira, no dia 25 de agosto de 1961, havia recebido o pequeno soldo a que fazíamos jus, além de tudo o que já tínhamos de graça: elevado nível educacional, alojamento, disciplina, noções básicas de civilidade e patriotismo e me preparava, junto com Rosés, para uma jornada de bailes e grossas farras na cidade. Minha função, então, era de assessor de assuntos sociais, encarregado de conseguir convites que fôssemos pares em aniversários de 15 anos por toda a cidade ou em algum baile de debutante. O que me faltava em garbo militar, sobrava-me em jeito como “macetoso” – um cara que sabia de tudo. Lá íamos nós, pois, em alvo traje de gala militar, com botões dourados, sonhar o sonho da juventude. Fazia frio naquele dia, mas me lembro que havia sol. A noite prometia. Mas logo começou um corre-corre e se soube da renúncia inesperada de Janio Quadros. Fim dos grandes planos para a noitada. Todo mundo de prontidão. Éramos militares. Por todos os desvãos viam-se oficiais tensos, enquanto nós, até então mergulhados em devaneios, procurávamos nos inteirar de tudo o que acontecia.

O universo militar em 1961 refletia o mundo do pós-guerra, embora os oficiais da tropa, que comandavam as Companhias – havia três na EPPA, cada uma com cerca de 120 cadetes –, fossem severamente anticomunistas e pródigos em suas preleções, como o famoso Capitão “Brocoió”. Outros, porém, como o Capitão Púglia, quem revi em Brasília muitas vezes, décadas mais tarde, onde veio a falecer, eram mais abertos e procuravam dar mais lições de patriotismo do que de ideologia. Púglia tinha feito a II Guerra, na FEB e isto, no Exército, fazia toda a diferença… Já os oficiais professores, intelectualizados e articulados com a vida civil, eram muito divididos em suas preferências políticas, mas não era raro ouvir palavras de simpatia ao nacionalismo. Raras ao socialismo. Sob tais influências, nós, cadetes, nos dividíamos. A grande parte era conservadora, como sói nas casernas de qualquer parte do mundo, mas já apareciam vozes dissonantes. Eu, honestamente, preferia as festas…

Então, numa daquelas noites, começaram a chegar oficiais de outras guarnições presos e confinados a algumas das salas de aula e, pela manhã, os sacos de areia começaram a ser empilhados à entrada principal do casarão. A guarda foi reforçada, as preleções elevavam o tom e éramos informados de que o país estava à beira da guerra civil, com o governador Brizola comandando uma rebelião contra a vontade do Alto Comando Militar, que não desejava a posse de Jango na vaga deixada por Jânio. Nós, da Escola de Cadetes, como estabelecimento de Ensino Militar, éramos subordinados diretamente ao Rio de Janeiro, e aguardávamos instruções sobre qual seria a posição do III Exército, no tocante ao Movimento da Legalidade, e sobre a Direção de Ensino Militar, no Rio. Veio, primeiro, a informação de que o III Exército apoiara Brizola. Depois, um ou dois dias, quando ficamos extremamente vulneráveis do ponto de vista militar, visto dispormos de um ínfimo poder de fogo sob ação de meninos com pouca experiência militar, veio o pronunciamento do Comandante Cel. João de Deus:  “A Escola Preparatória de Porto Alegre, um dos centros mais tradicionais de formação militar do Brasil, passa a subordinar-se ao III Exército, está pela posse legal do Presidente Goulart, na forma da Constituição, sob o comando do governador Leonel Brizola e passamos a nos constituir em soldados da Legalidade”.

A partir daí a Escola movimentou-se mais ainda. Jeeps carregados de oficiais presos por não aderirem à Legalidade chegavam a cada momento e nós mergulhávamos na defesa de pontos importantes do estabelecimento e cercanias. A mim coube a guarda de um canhão antiaéreo que se postara junto ao monumento do Expedicionário, na Redenção, precisamente para proteger a EPPA em caso de ataque aéreo. A prontidão era severa e ninguém podia sair, sob qualquer pretexto. Um clima de guerra reinava por todos os lados. Assim permanecemos, tensos vários dias, passando dia e noite dormindo em “uniformes de instrução” e bursiguins postos, prontos para qualquer emergência. Nesse ambiente, claro, as conversas entre nós, se aprofundavam e procurávamos entender o que era tudo aquilo: nacionalismo, legalismo, democracia, comunismo, socialismo, um conjunto de palavras que até então tinham um significado muito distante, quase inacessível, para todos nós, muito jovens.

Um belo dia, sentiu-se que o clima de tensão começou a diminuir. Não sabíamos exatamente o porquê, mas sentia-se no ar um certo relaxamento da prontidão. “Tanto melhor”, pensava eu. “Vou voltar às minhas festas no Moinhos de Vento”, onde a comida era boa e a cuba-libre, esta bem conhecida, farta… Mas continuávamos de prontidão. Até que veio nova ordem: “Aqueles que tiverem casa em Porto Alegre, têm três horas para ir a voltar. CORRENDO…!!!! Mas sem trocar de farda. Saiam com uniforme de instrução”. Era meu caso, morava ali perto, na José do Patrocínio, perto da Borges, um pulo. — Mas com uniforme de instrução? Estamos mesmo em guerra, pois isso nunca acontecera antes. Essa era uma roupa de serviço, que, para o militar, é a guerra. Mas, inteirei-me bem da ordem, já havia saído da guarda do canhão e entregado o fuzil e me pus a caminho de casa, sem pensar muito na vida, a não ser que comeria algumas guloseimas domésticas da Dona Amélia, veria a vizinha de cabelos negros e olhos verdes da esquina, veria o Pelé, engraxate na Praça Daltro Filho, passaria defronte o Cine Marabá pra ver o que estava passando, daria um ou outro telefonema para o Jorge Marino, da Duque, amigo fraterno, que me transmitia as dicas das festas e voltaria para o quartel.

Contornei o quarteirão, compassadamente, com aquelas botinas me encorpando o passo, o cinturão cheio de porta-trecos, onde se metiam as balas e se penduravam outros artefatos de guerra, capacete maiúsculo dançando sobre a cabeça raspada e miúda, corpo franzino com 44 quilos distribuídos em insignificante 1m60 de altura – eu, com Roberto Leivas, de Pelotas, éramos o cerra-fila nas formações, um disputando com o outro o troféu de mais baixo — , e fui, retórico e despido (de qualquer pretensão) a caminho de mim, até a parada da Venâncio Aires, por onde passava o bonde GASÔMETRO, que me levaria até em casa. Cheguei ali, despreocupado de tudo, junto com outras pessoas que também aguardavam o bonde e que me fitavam atentamente, mas não reparei muito. Em pouco tempo, lá vem o bonde, sacolejando e emitindo aqueles ruídos infernais do ferro contra ferro dos trilhos com as rodas. Aprontei-me um pouco, sempre desajeitado naquele uniforme e naquele imenso capacete — Por que não fazem capacetes numerados, como os chapéus? dizia-me a contragosto. Chegou o bonde, subiram todos, eu por último, educadamente. Ele estava cheio, mas não apinhado. Subi os degraus, calmamente e quando aportei à cabine todos me olharam de cima abaixo. E não tiravam os olhos. Senti-me ligeiramente ridículo. “Que passa?”, pensei rápido. De uma hora para outra, porém, fui percebendo que me olhavam, olhavam, olhavam… e começavam a bater palmas. Batiam freneticamente. Batiam tão completamente e me olhavam tão espantados e encantados que eu fui tomado por um sentimento súbito de orgulho de mim mesmo. Agradeci com suavidade, sorri um pouco, ganhei mais olhares ainda de simpatia. Súbito, aquela coisa já tinha acontecido. Era o povo aplaudindo um menino de 16 anos, em uniforme de guerra, soldado da Legalidade, pronto para morrer por uma boa causa. Fiz-me cidadão naquele momento. Entendi tudo o que jamais tinha entendido direito. Não abandonaria as festas de uma hora para outra. Era muito jovem. Tinha um mundão pela frente. Mas chamaria Brizola de “Comandante” até o final de sua vida, em 2004, vindo a recebê-lo em Paris, quando saiu do Uruguai, em 1978, junto com Trajano Ribeiro, Miguel Bodea e Sidney Miguel, e a firmar, com ele, em 1979, em Lisboa, a histórica Carta de Lisboa.  Não me arrependo. Como dizia Gilberto Amado: Dura um segundo uma ilusão e dura a eternidade uma saudade.

* Foi um dos que assinou a Carta de Lisboa – [email protected]


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