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15 de junho de 2011
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22:32

Os guris de Porto Alegre

Por
Sul 21
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A resistência se concentrava em frente ao Palácio Piratini - Foto: Acervo Fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa

Marcos Faerman *

Nós sabíamos de tudo pelo Julinho. O Julinho era nosso colégio e nossa vida – nossos sonhos eram todos no Julinho, e nós queríamos apenas ficar como Beethoven: agarrar o destino pela garganta. Mudar a cara do mundo, se é que o mundo tinha uma cara. E nos disseram que Jânio tinha renunciado. Há muito, sabíamos o que fazer. Tínhamos nascido para aquele momento. Era a hora da História. Simplesmente.

Pegamos bondes e fomos para o centro. Gostávamos de horas como aquela – e alguns éramos meninos. Guris. Gurizinhos como o Isaac Ainhorn, como o Trajano Ribeiro. Citadores de Drummond como o Tabajara. Mas todos sabíamos cantar os hinos da Guerra Civil da Espanha. Alguém não disse que a Revolução fala espanhol? Havia um medo muito grande no ar – mas nós não tínhamos medo. Éramos jovens e ousados e tínhamos lido uns poemas de Maiakowski.

II

Uma passeata pela Borges. Qual é a palavra de ordem? Começou aquela serpente a descer a Borges entoando Jânio sim, tanques não. Veio a contra-senha e era agora Jango sim, tanques não. Jango! Jango! Jaaaannggggoooo. Nossa alma grita Jango. Jaaaannnnggggoooo. Punhos cerrados como na Espanha. No Pasaran. No. No. E veio a noite sobre Porto Alegre. Os estudantes vão se reunir na Faculdade de Direito… Árvores misteriosas. Senhas e contra-senhas. Os dias e as noites começam a se confundir. Chegar em casa. O mundo ia mudar? Jango estava tão longe! Na China.

E os militares? E as armas? E a polícia? E os olhos da polícia? Quem está do nosso lado? Um filme de suspense, esse? E a lembrança vaga de um desfile na Praia de Belas. Os estudantes saem enfileirados em direção ao Palácio e são recebidos com gritos pelos operários. Viva os estudantes! Viva os operários. – Vamos ser atacados. Alguém fala assim e estamos na frente do Palácio Piratini que nunca tinha sido tão Piratini – e o nome do Palácio parecia vindo de um livro de História. De História. Ninguém foge de um ataque, seja de quem for. Vamos beijar a boca da História. E começamos a fazer barricadas nos cantos, nas ruas que dão acesso ao Palácio. Um casal de namorados não quer sair do banco.

— Vocês não entendem que esse namoro prejudica a Revolução?

III

Quando um jipe do Exército é anunciado ao lado do Palácio – não pense que alguém foge. Os guris – eu estou entre eles – se atiram no chão. Uma barreira com nossos corpos. O jipe pára. O milico vai discursar abraçado no Petraco. Puxa. Ganhamos. Ganhamos. Eles não passaram pela nossa barreira. E a noite vem vindo de novo sobre Porto Alegre e nosso sonhos. Cada vez mais nós vamos nos acostumando a ir até a Praça da Matriz – pelo menos para olhar o Palácio. Sabemos que uma coisa nova ia acontecendo, ali, no Palácio.

IV

"A palavra do governador parecia cada vez menos a do governador e cada vez mais a de um companheiro" - Foto Acervo Museu de Comunicação Hipólito José da Costa

E o nome do que ia acontecendo ali era que nós íamos descobrindo que existia Leonel Brizola. A palavra do governador parecia cada vez menos a do governador e cada vez mais a de um companheiro. A palavra amiga falava o que nós queríamos falar. (Como é que ele descobria?) E foi sendo assim, depois, que a Cadeia da Legalidade começava a falar – pela voz de Brizola e pela voz de cada um de nós, E era tão incrível, a cadeia falando em inglês, em francês. E nós nos despedimos de nossos pais. Íamos lutar. E quando disseram que o Palácio ia ser atacado, uma, duas, três vezes. Dez vezes. Nós corremos para o Palácio. Que jogassem as bombas em cima de todos nós. Mas o Brizola não ia ficar sozinho. Não sabíamos que um dia existiria o bombardeio de La Moneda, em Santiago do Chile, mas não queríamos La Moneda em Porto Alegre.

V

Gaúchos vieram do interior mais fundo em seus cavalos. Alguns traziam lenços vermelhos, outros, lenços brancos. Todas as cores eram boas para nossa causa. Não tínhamos bacamartes como os gauchões do interior. Mas não deixávamos nem as sombras do Palácio sozinhas com os fascistas as ameaçando. Treinávamos ordem unida com cabo de vassoura nas mãos. Nossos fuzis eram implacáveis. As gurias da Enfermagem tiraram o sangue de cada um de nós. Para saber o tipo de sangue. Se fôssemos feridos… Mas não íamos deixar os sangues sugas tirarem o sangue de nossa gente. Corriam histórias de estudantes treinando tiro-ao-alvo no Morro da Polícia.

VI

Faziam comícios de bonde-em-bonde na luta feroz do dia-a-dia. Um guri entrava no bonde com uma bandeirinha FEL – Frente Estudantil da Legalidade. Um outro guri panfleteava. Um outro, discursava dentro do bonde. Sidney, tu lembras destes bondes? Daqueles discursos que eu fazia: nosso sangue … o sangue da juventude… Todo muno de olho arregalado. À noite, na Federação dos Estudantes, vinha o balanço do dia. “Companheiros – vai dizendo Paulo Chanan …, — companheiros … às seis da tarde eu peguei um bonde Gasômetro muito reacionário!”

VII

Minha mãe, pode ser que a gente morra nesta luta, a senhora perdoa mãe, perdoa? A mãe triste nos olhando, me olhando, ali na rua Felipe Camarão, no Bom-Fim. Os filhos se despedindo dos pais, melodramáticos, generosos guris de minha geração. Guris conspiradores, atrevidos guris, lembrando da Condição Humana de Malraux, nas ruas de Porto Alegre, ou de L’Espoir – A Esperança – o coração na Espanha, na Indochina, no Palácio Piratini, na Cadeia da Legalidade transmitindo em francês, em espanhol .. Ici … Aqui …

VIII

"Os ninhos de metralhadoras faziam nossos corações pulsarem" - Foto: Acervo Fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa

Lutaríamos. Disso eu tenho certeza. Eu vi esses guris de Porto Alegre fazerem cada coisa. Todo o sangue de nossas veias seria pouco. O fascismo não passaria – era isso o que dizia Brizola, em outras palavras, no Palácio, seus ninhos de metralhadoras faziam nossos corações pulsarem. Jaaannngoooo. Dez pulmões seriam poucos para gritarmos com mais força teu nome, velho Jango, companheiro Brizola. Que viessem os tanques, os aviões, as bombas. Nós éramos o prolongamento de alguma coisa estranha e real – maior do que cada um – era um destino, e tínhamos nascido para viver e talvez morrer naquela hora. Nossa pátria não seria tornada o galpão imundo daquela gente. As esporas dos golpistas não pisariam nosso rosto, nossa alma, nossos sonhos. Os guris de Porto Alegre estavam nas ruas – e essas ruas eram pequenas para nossas pernas. E no porto batia o coração do Batalhão Praiano da Legalidade. Dois mil operários. Pediam respeito e metralhadoras. Eu ouvi essa história de meu amigo Miguel do Porto, ele me contou isso dias atrás em São Paulo. Vocês entendem? Essa história não acabou. Nem sei se começou. Mas houve um dia em que Porto Alegre nos viu andando por suas ruas, pernas de pau e cabeças nas nuvens. E nós continuamos. Jorge Semprum. A Longa Viagem. Última cena: essa não é uma conversa de ex-combatentes. Não.

* São Paulo, madrugada de 13 para 14 de agosto. Vinte e cinco anos depois.
* Jornalista gaúcho, já falecido, trabalhou, entre outros, nos jornais Zero Hora, Versus e Jornal da Tarde
* Texto publicado no jornal Clarim – edição histórica nos 25 anos da Legalidade


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