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26 de junho de 2011
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22:13

Lauro Hagemann, a voz que deu credibilidade à rede da Legalidade

Por
Sul 21
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Lauro Hagemann, o Repórter Esso: "entrei nessa Legalidade meio que por acaso" l Foto: carosouvintes.org

Lorena Paim

Conhecido como “a voz do Repórter Esso”, Lauro Hagemann emprestou seu prestígio como locutor do principal noticiário do país nos anos 50 e 60 para fortalecer a Rede da Legalidade. Foi o primeiro a se oferecer para falar na cadeia de rádio que transmitia as mensagens de resistência em agosto de 1961, sob a liderança do governador Leonel Brizola. Além de radialista, Hagemann teve mandatos como vereador de Porto Alegre e deputado estadual. Integrou a primeira bancada do PCB na Câmara Municipal, quando o Partido Comunista veio para a legalidade. Nesta entrevista, ele fala sobre sua participação no movimento promovido para conduzir João Goulart à presidência, em substituição a Jânio Quadros, que renunciara.

Sul21 — O que foi, para o senhor, o movimento da Legalidade?
Lauro Hagemann —
A Legalidade foi um exercício histórico muito interessante. Pôs a nu um dado muito importante da nossa civilização, que é a comunicação e, principalmente, um veículo, o rádio, que até então nunca tinha sido usado neste tipo de coisa. O rádio foi a alavanca que proporcionou o estado de legalidade em que nos encontramos. Foi através do rádio que Brizola conseguiu arregimentar toda uma sociedade. Impressionante o caráter de solidariedade que se estabeleceu. Esse episódio que se chamou Legalidade nada mais é do que o cumprimento de um preceito constitucional: a Constituição diz que o presidente, em caso de falta, será substituído pelo vice. E os militares da época queriam impedir a posse de Jango, sob o pretexto de que ele estava aliado aos comunistas, e que isso produziria um desequilíbrio continental. Claro que, atrás disso, tinham outros interesses.

Sul21– Como o senhor ingressou no movimento?
Lauro —
Eu entrei nessa Legalidade meio que por acaso. E não é outra a minha percepção de que tenha sido também essa sensação que levou Brizola a isso. Os fautores da Legalidade, da campanha, da pregação radiofônica e cívica, são três pessoas. Primeiro, Hamilton Chaves, que era o secretário de Imprensa do Palácio Piratini. Segundo, o engenheiro Homero Simon, da Guaíba, compadre de Brizola, que assoprou na orelha dele que ele devia, através do rádio, conclamar a população a resistir. E Brusa Neto, que era membro do governo do Brizola, um político ligado ao PTB e muito atilado. Foram esses três que constituíram a cadeia de rádio da Legalidade. Porque a Legalidade não foi senão um movimento radiofônico que abrangeu praticamente todo o país e as redondezas.

Sul21 — E o papel de Brizola?
Lauro —
Pela percepção e pela intuição política, que eram características dele, quando Brizola viu aquilo que tinha sido esboçado através daqueles três nomes, ele resolveu encampar — e ficou de dono da Legalidade. Eu acho que ele pegou o barco já andando. Brizola teve um papel preponderante no episódio da Legalidade, não se pode negar.

"Hamilton Chaves, Homero Simon e Brusa Neto construíram a Rede da Legalidade" l Foto: Vozes gaúchas

Sul21 — Foi difícil equacionar a parte operacional da rádio?
Lauro —
Homero Simon foi o grande construtor da Rádio da Legalidade; era um técnico reconhecido internacionalmente, especialista em antenas de transmissão. Era um homem político também. Acredito que Breno Caldas, proprietário da Rádio Guaíba, e os militares se viram diante de fatos consumados: quando se deram conta, a Rádio Guaíba estava instalada no Palácio.

Sul21 — Como foi a sua chegada no Palácio?
Lauro —
Quando houve o episódio, todas as emissoras de Porto Alegre foram requisitadas e transmitiam o que a Guaíba transmitisse. Como eu era da Farroupilha, onde fazia o Repórter Esso, fiquei vagando, porque não havia programação normal na emissora onde eu trabalhava. Como eu já tinha um laivo esquerdista, esta foi outra razão de eu me apresentar no Palácio Piratini, além do fato de eu estar à deriva. Lá chegando, me agarraram com as duas mãos.

Sul21 — E o senhor já começou a falar ao microfone?
Lauro —
Sim. Eu tenho consciência muito clara de que contribuí, querendo ou não, com uma parcela grande para dar credibilidade à cadeia da Legalidade. Eu era a voz conhecida. Quando eu apareci no rádio, dando notícias, lendo os boletins e as proclamações, dando uma certa direção às emissões radiofônicas, o pessoal começou a se dar conta que alguma coisa estava acontecendo além daquela farândula que se estabeleceu no Palácio. Não era brinquedo; era coisa séria. Isso ajudou a movimentar a sociedade toda em direção à Legalidade.

"Eu já tinha um laivo esquerdista" l Foto: Vozes gaúchas

Ao locutor Naldo Charão de Freitas, da equipe de Imprensa do Palácio, deram a incumbência de ler as primeiras manifestações, mas ele era empregado do Palácio. Eu fui até lá por minha conta — parece que no segundo dia — e outros companheiros de outras emissoras que também estavam à deriva começaram a se incorporar à equipe e ajudar.
No subsolo do Palácio — os “porões”, como se dizia — havia uma cabine de madeira compensada, com janelas de vidro, era um estúdio pequeno. Tudo o que falávamos ia diretamente para o transmissor da Guaíba localizado da Ilha da Pintada. Quem organizou tecnicamente as transmissões foi Homero Simon, do jeito dele, e deu certo. Brusa era o secretário da redação, o coordenador que fazia a triagem e autorizava o material para leitura.

A gente não tinha horário, a coisa era contínua. Eu saía de noite, ia para casa trocar de roupa, ver a família. Éramos todos voluntários. E estavam ali também os técnicos das diferentes emissoras prestando serviço. Ficamos na Rede da Legalidade até o final, quando cada um de nós voltou normalmente ao seu emprego.

O governador Brizola, por sua vez, tinha o microfone na mesa dele, no gabinete, e só desceu aos porões para se pronunciar nas primeiras vezes. Era ele quem dizia a hora mais adequada para entrar no ar.

Observo que, a partir dessa cadeia radiofônica, surgiu, de maneira muito concreta, a ideia da necessidade de uma entidade que congregasse esse pessoal. Foi então que, logo depois, nasceu o Sindicato dos Radialistas. Eu, pela Farroupilha, e Adroaldo “Vovô Guerra”, pela Gaúcha, fundamos o Sindicato.

Sul21– Houve momentos mais descontraídos?
Lauro —
Circulavam anedotas, depois que tudo acabou. A Central da Legalidade ficava no pavilhão do Mata-Borrão e para chegar até lá havia uma pinguela de madeira. Consta que havia, até, um guardião da pinguela. As pessoas se apresentavam a todo momento como voluntárias. Certo dia apresentou-se um CTG inteiro. Pediram o nome do patrão, do capataz; eles falaram. E os demais? “Não. De briga, só nós dois; o resto é invernada artística”.

"Éramos todos voluntários" l Foto: Reprodução vídeo PMDB

Sul21 — Como a Cadeia da Legalidade atingiu todo o país?
Lauro —
A Rádio Brasil Central de Goiás, que era uma estação poderosa, fez cadeia com a Guaíba e inundou o norte, centro e nordeste com o noticiário que recebia daqui do Sul. Isso por determinação do governador Mauro Borges, que aderiu à Legalidade.

Depois, aqui, começou a juntar gente para fazer boletins em línguas estrangeiras e transmitir para fora. Chegaram ao Palácio pessoas que falavam inglês, alemão, que era para o mundo ficar sabendo o que estava acontecendo aqui. Porque a Legalidade foi um episódio de repercussão mundial. Sabia-se, lá fora, que um presidente tinha sido impedido de assumir. Isso foi o que causou espanto, pois um fato desses significa um golpe, em qualquer lugar do mundo. As agências noticiosas do mundo estavam transmitindo tudo o que acontecia aqui.

Sul21 — Qual a reflexão nesse ano do cinquentenário?
Lauro —
O Instituto Histórico do Rio Grande do Sul resolveu fazer uma série, com a reconstituição histórica do movimento, e estou colaborando. O que estamos fazendo agora é esmiuçando, penetrando abaixo da superfície da Legalidade. Ver o que motivou isso, as implicações sociológicas, antropológicas, políticas, econômicas, de toda ordem. Porque foi um movimento da sociedade, isso não se pode negar. E a sociedade rio-grandense foi movida por essa coisa muito simples: o cumprimento do preceito constitucional. Eu acredito que os militares queriam impedir a posse de Jango até por influência estrangeira, porque ele teria uma certa inclinação para o lado esquerdo. E isso naquele tempo era muito perigoso. Os americanos não iam suportar essa colocação do Brasil, já uma potência emergente, ao lado das forças do outro lado.

Na época, a gente intuía isso, mais do que sentia. Sabíamos que por trás disso tinha alguma coisa que não combinava com aquilo que estava posto. Tudo caminhava para um determinado desfecho ao gosto deles, do outro lado.

Foi um momento muito importante no mundo, Fidel tinha se assentado em Cuba, a Guerra Fria estava em plena efervescência, tudo contribuía para que o mundo estivesse convulsionado. E aqui o processo não destoava desse contexto.

"a Legalidade não foi fruto de uma tendência, mas de uma comunidade que se envolveu" l Foto: Elson Sempé Pedroso / CMPOA

Sul21 — Qual a direção que deve ser dada a esta análise?
Lauro —
Eu pedi ao Instituto Histórico que eles tomassem conta disso, para que outras pessoas que não têm nada a ver com a história não se adonem da história da Legalidade. Queremos abranger todos os setores que participaram, todas as forças políticas, e não privilegiar ninguém. Porque a Legalidade não foi fruto de uma tendência, mas de uma comunidade que se envolveu. Ela se presta hoje a muitas interpretações particulares; há muitas correntes políticas querendo assumir uma espécie de apadrinhamento da Legalidade, coisa que não existiu. O movimento manifestou a intenção de um povo de preservar uma coisa muito séria, que é a legalidade. Ninguém foi contra; todo mundo era legalista, e isso foi o que deu base ao movimento em si.


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