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19 de maio de 2011
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23:31

Legalidade: esses nós do tempo

Por
Sul 21
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Legalidade: esses nós do tempo
Legalidade: esses nós do tempo


Flávio Aguiar *

Todos aqueles momentos se perderão no tempo,
como lágrimas na chuva.

Roy, o replicante (Rutger Hauer),
em Blade Runner, de Ridley Scott.

Eu tinha 14 anos. Começava na política estudantil. Há pouco fundáramos o Grêmio Estudantil Anchieta, e o colégio ficava ainda na rua Duque de Caxias. Eu era representante da 4ª série B, do Ginásio, no Conselho Deliberativo.

Naquele meio predominantemente de classe média alta ou média-média, eu era um caso à parte. Vinha de uma família getulista e brizolista. Meu pai votara, em 1960, para presidente na “chapa” Jan-Jan. Pela primeira vez deixara de votar para presidente num candidato do PTB. Eu ouvia os comentários — também do meu irmão mais velho, que já estava na Medicina da URGS (assim se escrevia na época) e até seguia o noticiário. Assim a notícia da renúncia de Jânio não me surpreendeu muito. Eu sempre o achara meio maluco mesmo. E fiquei indignado — como muita gente — quando chegou a notícia de que os ministros militares queriam impedir a posse de Jango. Mas fora a indignação, eu não podia fazer muita coisa.

Assim, tive uma participação muito passiva naquele “levante popular”. Ela foi mais auditiva do que outra coisa. Um pouco visual também. Mas foi marcante para minha formação. Minha primeira marca auditiva forte se deu numa manhã que ia pelo meio. As aulas tinham sido suspensas, com o cheiro de crise grossa já no ar. Não sei quem acendeu o rádio (naquele tempo se acendia o rádio). Talvez tenha sido eu mesmo. Caí em cheio no discurso de despedida de Brizola, dizendo que ficaria no Palácio Piratini até morrer, se fosse o caso. Que os ministros militares tinham dado ordens para que o Palácio fosse bombardeado. Nossa casa, na rua Demétrio Ribeiro, ficava a pouco mais de um quilômetro, em linha reta, do Palácio. Além do espantoso da notícia — um bombardeio aéreo — criou-se o estapafúrdio sentimento de que poderíamos ser atingidos. Estávamos em casa eu, minha avó, minha mãe e a empregada. Meu pai saíra para o trabalho e meu irmão para a Faculdade.

Brizola: discurso emocionante - Foto: Acervo Fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa

Algum tempo depois do fim (emocionado) do discurso (emocionante), meu pai ligou do trabalho. Em conversa com minha mãe, ficou acertado que “bateríamos em retirada” para a casa de uma sua amiga, na rua Avaí, perto da Faculdade de Direito. Nesse meio tempo, tive a segunda impressão auditiva fortíssima. De longe (da Praça da Matriz) eu ouvia nitidamente o Hino Nacional, cantado por milhares de vozes. Aquilo foi impressionante: até hoje meu peito bate forte quando me lembro da cena (e a ouço na memória).

Fui designado pela minha mãe para fechar as janelas superiores do sobrado em que morávamos. Corri para cima, fui às janelas, e então presenciei uma cena carregada de contradições e de tensão. Pela rua, desfilavam famílias em fuga, levando o que podiam: malas, carrinhos, animais de estimação, tudo. Portas e janelas — assim como as nossas — batiam e fechavam. Parecia coisa de filme italiano da Segunda Guerra. Ao mesmo tempo, passaram pela rua dois carros pretos, oficiais, em grande velocidade. Vinham do lado da Avenida Borges de Medeiros, dobraram na rua Bento Martins e desapareceram. Algo de diferente ocorria, pensei.

Desci e acendi de novo o rádio: as notícias vinham, emboladas. O comandante do 3º Exército, General Machado Lopes, estivera no Palácio. Levara sua solidariedade ao Movimento pela Legalidade, liderado por Brizola. De momento, pelo menos, o perigo do bombardeio fora neutralizado. Aquele hino, que eu ouvira, fora cantado na chegada do general à praça da Matriz. Consta que ele desceu do carro e cantou junto. Também vieram notícias de que uma coluna de tanques viera do quartel da Serraria para o centro e assumira o controle do cais do porto, onde havia corvetas da Marinha, cujos comandantes eram golpistas.

Machado Lopes: visita de apoio à Legalidde - Foto: Acervo Fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa

Assim mesmo, preventivamente, naquela noite fomos dormir na casa da amiga de minha mãe, na rua Avaí. Fizemos também nosso desfile pela rua, com malas e mochilas. Dormimos no chão: não havia cama para todos.

No dia seguinte, novas notícias chegaram, pelo rádio e pelos comentários gerais. As mais espetaculares falavam da situação na Base Aérea de Canoas, onde houvera um clima de guerra entre os sargentos e os oficiais legalistas, e os golpistas, incluindo entre estes os pilotos que deveriam cumprir a ordem de bombardeio. Hoje se propala uma versão de que os pilotos realizariam voos rasantes sobre o palácio e a praça. Entretanto, os documentos das ordens são muito claros: falam em “silenciar” o palácio, utilizando inclusive a força aérea, se necessário (se isso é voo rasante, eu sou mico de circo). Ademais, depoimentos como os do escritor Oswaldo França Júnior, que era um dos pilotos então, e que confessou ter passado uma noite inteira em claro refletindo sobre a ordem a ser cumprida, são eloquentes sobre a violência a ser cometida. Oswaldo, que conheci pessoalmente, e que era uma pessoa extraordinária, acabou sendo cassado depois do golpe de 64.

A amiga de minha mãe tinha relacionamento familiar (através de seu ex-marido) com um dos comandantes da Base Aérea, o brigadeiro Aureliano Passos. Ao confirmar que a ordem não seria cumprida (na verdade graças aos esforços dos sargentos e dos oficiais leais à ordem constitucional), ela ligou para sua casa, para cumprimentá-lo. Foi um balde d’água gelada. Alguém falou para ela que o brigadeiro era a favor do estrupício, e que fora para o Rio de Janeiro com a família quando os oficiais e sargentos legalistas, com apoio do 3º Exército, tinham tomado conta da base aérea e o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro (assassinado em 1964 na própria base) assumira o comando.

Voltamos para casa. A cidade vivia um clima de ferveção (mais do que efervescência extraordinário) extraordinário. Eram estudantes para todo o lado, gente se alistando no “Mata-Borrão”, um prédio com essa forma (influência de Brasília, certamente) na avenida Borges, tropas se mobilizando, e no rádio, o tempo todo, o hino da Legalidade (“Avante, brasileiros, de pé,/unidos pela liberdade”…) tocando e o “comandante Brizola” deitando o verbo.

Palácio Piratini: preparado para responder o possível ataque - Foto: Acervo Fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa

Mas a estadia durou pouco. Uns dias depois, meu pai (me lembro muito bem da cena) abriu a janela do nosso quarto de dormir (meu e do meu irmão), nos fundos do sobrado, e deu de cara com um canhão antiaéreo encarapitado no alto de um dos primeiro edifícios que fora construído na região, na esquina da rua General Auto com a Duque. Foi a conta. Obedecendo as ordens do general meu pai, a família inteira bateu em retirada estratégica para nossa casa na praia da Alegria, do outro lado do rio Guaíba (para mim lago Guaíba é um “gagófato”, desculpem). De lá, acompanhamos o desenrolar da crise pelo rádio. Nem praia deu para curtir, porque fazia frio (era fim de inverno, mas inverno) e chovia bastante.

Voltamos para a casa em Porto Alegre com a aceitação da emenda parlamentarista e a decepção generalizada, pois a esmagadora maioria das pessoas (pelo menos tanto quanto eu me lembro) era a favor de que o 3º Exército marchasse para Brasília e pusesse Jango na presidência, nem que fosse na marra. Seria esse o caminho certo? Vá se saber. O certo, em todo caso, é que o outro acabou em desastre.

Dos episódios curiosos vividos na ocasião, registro um, dos mais engraçados, que me foi contado muito depois pelo ator/diretor Fernando Peixoto, que na época trabalhava no Correio do Povo/Folha da Tarde. No meio da confusão daqueles momentos um Gre-Nal foi transferido, e se realizou alguns dias depois do fim da crise, no dia 13 de setembro. O Internacional (êba!) venceu por 2 x 1, no Olímpico, gols de Gilberto Andrade e Alfeu. Muitos repórteres internacionais ainda estavam em Porto Alegre, entre eles um norte-americano que, na véspera, bebera umas quantas e fora dormir muito tarde. Acordou no hotel, em meio a um foguetório enorme e, saindo à rua para ver o que se passava, deparou com um mar de bandeiras vermelhas em desfile. Contou-me o Fernando que o repórter invadiu a sala da redação da Caldas Júnior, aos berros, em inglês: “É a revolução! É a revolução!”. Enfim, foi, digamos, uma comemoração pelo que acabou não acontecendo.

Tudo isso ficou em minha vida como uma cicatriz, ora querida, ora dolorosa, sempre honorável.

Pra da Sé: 25 de janeiro de 1984

Lembro-me ainda de outro episódio, que narro para terminar. Depois do golpe de 1964 nunca mais cantei o Hino Nacional. Quando o ouvia, ficava em silêncio, a boca cerrada, os dentes apertados. E eu sabia — sei até hoje — a letra de cor. Assim foi até o dia 25 de janeiro de 1984. Nesse dia se realizou, na Praça da Sé, em São Paulo, o primeiro grande comício na campanha das Diretas-já, no Brasil. Dizem as estatísticas que umas 300 mil pessoas compareceram. Lá fui, com aquela fusão de expectativa e medo de que tudo desse em nada, como em 61. Já de noite, chovia. Havia muita gente ao redor, muita emoção. A multidão irrompeu a cantar o Hino Nacional. De repente subiram-me à lembrança as vozes daquele hino, que eu ouvira na manhã de agosto, em que Porto Alegre escapou de um bombardeio. E o que me veio da memória me saiu pela garganta. Pela primeira vez em 22 anos cantei, de novo, o nosso hino, enquanto a água me escorria pelo rosto, misturando tudo, perda e recuperação, emoção e canção, passado e presente, reabrindo em plena noite uma nesga de futuro. Mas isso é outra história, outra crônica.

* Romancista e crítico literário. Atualmente, vive em Berlim


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