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30 de dezembro de 2010
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16:25

A função dos juízes frente ao corte dos Direitos Sociais

Por
Sul 21
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A metabolização pelos governos nacionais, das políticas econômicas determinadas pelo eixo Frankfurt-Bruxelas, no sentido de baratear e flexibilizar os salários, reduzir o gasto social e as pensões (sempre com a finalidade de reduzir o déficit e de aumentar a produtividade) estabelece graves problemas no terreno da administração e governo dos litígios gerados com tais medidas. Concreta e claramente suscita o papel a ser ocupado pelos juízes no âmbito da administração da justiça e da aplicação da lei.

A aplicação pelos países-membros das posições das Autoridades Europeias, independentemente de suas orientações políticas à direita ou à esquerda, é a afirmação do caráter subalterno dos direitos sociais em relação à recuperação econômica europeia. Isto é, a submissão da “dimensão social” aos interesses de redução do déficit financeiro dos Estados. Significa que os direitos sociais somente podem ser garantidos quando exista uma situação de crescimento econômico e de estabilidade financeira. Assim, a relação entre o nível dos direitos sociais que os cidadãos europeus estão em condições de usufruir passa a depender diretamente da recuperação do excedente empresarial e da restauração da economia “financeirizada”. Ou seja, o rebaixamento dos direitos sociais é encarado como condição para a recuperação econômica e a pressão é para que isso ocorra rapidamente para não atrapalhar o ritmo das reformas.

Para o olhar do jurista essa relação negativa entre recuperação econômica e degradação das regras sobre os direitos fundamentais da cidadania social se expressa de muitas formas. Mas provavelmente o território onde ela se manifeste de maneira mais clara é no espaço da atuação judicial. Ocorre que a função garantista dos direitos laborais e da seguridade social que tradicionalmente vem sendo realizada pelos juízes também é objeto de críticas do poder político e de suas “reformas estruturais”. Com efeito, desde o ponto de vista das mal chamadas “políticas de austeridade”, há uma hostilidade aos poderes dos juízes para controlar os atos privados, principalmente os atos dos empregadores. Dizendo de outra forma, a redução dos padrões dos direitos laborais e sociais como condição da recuperação econômica implica necessariamente na exclusão e no enfraquecimento dos mecanismos de garantia judicial desses direitos. Assim, a “desjudicialização” dos espaços de garantia jurídica é um objetivo central das medidas anti-déficit na Europa. É uma tendência constatável nas reformas legais que vêm ocorrendo em distintos países, e que tem como objetivo uma nova configuração da demissão.

Ocorreu na Itália, com a instituição da arbitragem individual (substitutiva do controle judicial), na França, com a demissão por acordo que criou a lei de “modernização” de 2008, e na reforma espanhola ao menos em dois aspectos relevantes. Na ampliação exorbitante dos poderes atribuídos ao empregador para utilizar-se da demissão sem justa causa pondo à disposição do empregado uma indenização correspondente, com a consequência de o empregado não poder receber parcelas a que tem direito se impugnar tal demissão ante os tribunais, e a definição em termos tão genéricos como ampliativos das causas da demissão por motivo econômico, de forma que a alegação do motivo apresentado pelo empregador dificulte extraordinariamente o seu controle judicial.

Junto a essa pressão para a “desjudicialização” das garantias do emprego, avança outra afirmação não menos importante porque tem a ver com um elemento extremamente decisivo na justificação das medidas de saída da crise que é a geração de confiança nos mercados e nos operadores financeiros. Constata-se, ou ao menos se afirma que é assim, uma evidente desconfiança dos sujeitos intervenientes nos mercados financeiros em relação ao funcionamento da justiça em geral e da prestação jurisdicional social em particular, com base em dois motivos: uma certa imprevisibilidade da resposta judicial quanto aos resultados desejados pelos legisladores, e a convicção de que essa justiça é incapaz de realizar mediações que compreendam e recomponham, no terreno da aplicação da lei, a posição de subordinação dos direitos laborais ao interesse de empresa e ao interesse econômico que está presente como tendência nas reformas legais empreendidas. Essa desconfiança está relacionada com as iniciativas de “desjudicialização”, mas centra-se antes de tudo em outro objetivo. O aplicador do direito deve, por coerência institucional, incorporar à sua ação quotidiana a defesa da economia, restaurando a confiança dos meios econômicos na justiça mediante a elaboração de linhas de interpretação da norma nas quais os direitos sociais e laborais sejam funcionais, submetidos, à realização das liberdades econômicas e fundamentais.

Essa situação está gerando ao mesmo tempo uma ampliação e extensão dos conflitos e uma crise de legitimidade da governança tanto da Europa como de seus países-membros. Ela é produzida pela afirmação cada vez mais generalizada de que a Europa e sua capacidade de governo econômico e social situa-se em uma determinada posição “de classe”. Isto é, evidencia políticas hostis aos trabalhadores, aos aposentados, aos desempregados, aos imigrantes e aos informais. A reação frente a essas políticas é complicada. Requer uma organização articulada, dentro e fora da reposta jurídica, e da representação política do sindicalismo confederal em distintos países da Europa, que atualmente a está protagonizando com uma tênue coordenação a cargo da Confederação Europeia de Sindicatos. São muitas as medidas que integram essa estratégia, mas uma delas é bastante clássica e tem acompanhado há muito tempo a prática sindical de nosso país. Consiste em forçar o pronunciamento dos juízes sobre aspectos essenciais das reformas ocorridas, de forma que mediante o acesso à justiça obtenha-se certa reformulação dos elementos presentes na norma, restabelecendo um certo equilíbrio e limitando a assimetria de poder que foi criada.

Essa estratégia de defesa desafia os juízes a desenvolver um rol ativo na definição do conteúdo e das garantias dos direitos laborais e sociais. Em primeiro lugar desempenhando seu papel de garantidores do marco constitucional esclarecendo as condições de exercício dos direitos fundamentais e os limites ao poder público para a regulação de seu conteúdo essencial. Nesse sentido, em nosso país contamos com uma primeira experiência de enorme importância que é o Auto da Audiência Nacional propondo a Questão de Inconstitucionalidade do RDL 8/2010 e sua violação da liberdade sindical associada à força vinculante do convênio coletivo e o princípio de igualdade. Mas certamente haverá mais casos derivados de elementos de duvidosa constitucionalidade na Lei 35/2010. É também significativa a “judicialização” dos litígios derivados da aplicação concreta do contrato de trabalho e de sua extinção segundo a nova normativa promulgada, como efetivamente está começando a suceder em matéria de contratação temporária irregular e com a nova regulação das demissões objetivas. O planejamento da ação jurídica por parte de CCOO e UGT se inclui nessa linha e comparte esses objetivos.
Aqui a justiça estará sendo posta à prova e nesse particular a atitude do juiz será decisiva. O juiz certamente não pode mudar a norma, mas sempre deve partir do paradigma democrático que legitima sua função enquanto reconhece o rol dirigente e canalizador do direito sobre a desigualdade e a violência dos mercados e da competição econômica sobre as condições de existência digna das pessoas e de preservação do trabalho decente como obrigação constitucional. Nos próximos meses poderemos analisar as reações do aparelho judicial a essa pressão para a redefinição dos direitos sociais e a consideração dos limites de ação do governo.

* Professor de Direito Trabalhista


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