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6 de dezembro de 2019
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11:47

Na reta final do governo, Marchezan avança plano de terceirização total da saúde

Por
Sul 21
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Saúde pública de Porto Alegre em 2019 foi marcada por tentativas de terceirizações, aumento do atendimento estendido e sucateamento da saúde. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Annie Castro 

Defensor ferrenho das chamadas “parcerias” com a iniciativa privada, o governo Nelson Marchezan Júnior (PSDB) esforçou-se para, ao longo dos três últimos anos, terceirizar parte da gestão da saúde municipal em Porto Alegre, fazendo desta a marca de seu mandato. Em entrevista à rádio Gaúcha em abril deste ano, o prefeito afirmou que a iniciativa privada “é muito mais ágil” ao explicar suas intenções. Em outubro, após meses de batalha judicial, os pronto-atendimentos Bom Jesus e Lomba do Pinheiro passaram a ser geridos por uma organização social sem fins lucrativos dando início à concretização dos planos do prefeito.

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Ainda não é possível saber se, até o fim do governo, Marchezan conseguirá repassar a empresas privadas a administração de outras unidades de saúde da Capital. No primeiro semestre deste ano, o prefeito manifestou a intenção de também compartilhar a gestão do Hospital de Pronto Socorro e uma consultoria chegou a ser contratada para avaliar a possibilidade. O anúncio foi imediatamente alvo de críticas de diversos setores, embora o Executivo argumentasse que facilitaria a contratação de pessoal, manutenção e compra de equipamentos. Para os servidores, a Prefeitura operava um sucateamento do hospital para então obter apoio em defesa da concessão.

O médico e professor do Curso de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alcides Miranda, que tem estudado os impactos da terceirização na saúde há pelo menos 10 anos, entende que o governo Marchezan tem feito um ‘agenciamento’, “não só da prestação de serviços, mas da gestão e da autoridade sanitária para terceiros”

“Isso demonstra a incompetência auto declarada do governo em fazer a gestão pública e garantir a prestação de um serviço essencial. Também demonstra que governos não estão mais governando, os governos estão servindo de síndicos para agiotagem dos recursos e do orçamento público. Eles não pensam em estabelecer teto para a agiotagem do orçamento, mas querem estabelecer teto para os gastos sociais e, para diminuir os gastos sociais, estão empresariando os serviços públicos. O que deveria ser responsabilidade pública e autoridade sanitária pública, eles estão transferindo para uma gestão empresarial”, defende Miranda.

O presidente Sindisaúde-RS, Júlio Cesar Jesien, tem posição semelhante. Para ele, o poder público precariza os serviços de saúde em Porto Alegre para então apresentar a concessão ou terceirização como solução para esse sucateamento. “Tenta-se vender para a população uma precarização do serviço, dos funcionários, dos postos. Marchezan vende esse cenário e cria um imaginário de que ‘os atendimentos dos postos vão ser padrão Moinhos de Vento’ para justificar a vinda de uma terceirização”, afirma.

Miranda também contesta o repasse da gestão de instituições públicas de saúde como solução eficaz para os problemas do serviço público. Segundo ele, que já estudou o contexto internacional e analisou mais de 300 contratos com terceirizadas no Brasil, “não há nenhuma evidência, inclusive no cenário internacional, de que esse tipo de agenciamento para terceiros tenha produzido uma melhor eficiência no serviço de saúde”.

Pronto Atendimento da Lomba do Pinheiro foi um dos dois prontos-atendimentos que tiveram a gestão terceirizada neste ano. Foto: Cristine Rochol/Arquivo PMPA

Um passo importante no projeto de concessão da gestão da saúde municipal de Porto Alegre para a iniciativa privada foi dado em 22 de outubro deste ano, quando o prefeito assinou o contrato que passou a administração completa dos prontos-atendimentos Bom Jesus e Lomba do Pinheiro à Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM). A empresa, que é uma organização social sem fins lucrativos, fará por cinco anos a gestão dos postos, que são dois dos três únicos prontos-atendimentos 24 horas de Porto Alegre. O contrato firmado entre a Prefeitura e a SPDM prevê, por exemplo, o repasse de R$ 1,9 milhão mensais ao gestor, a ampliação do número de leitos de 25 para 44 e o funcionamento de farmácia e serviço social 24 horas.

Com a terceirização da gestão, os 199 servidores municipais com regime estatutário que trabalhavam nas duas unidades de saúde foram realocados para os hospitais de Pronto Socorro e Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV), assim como para o Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul e para o Samu. Integrantes de sindicatos que representam trabalhadores da saúde, estudiosos da área e usuários dos prontos-atendimentos questionam, no entanto, os benefícios apontados pela Prefeitura com a mudança na gestão e reclamam, principalmente, da falta de profissionais para atendimento nos locais.

De acordo Alessandra Felicetti Pires, diretora do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) na Região Metropolitana, é frequente a falta de médicos para atendimento nos prontos-atendimentos após a mudança de administração. “Na metade do mês passado, quando assumiu de vez essa empresa, tivemos problemas de não ter atendimento médico e de ter apenas um médico no local. Estivemos lá na semana passada e tinha um clínico atendendo e mais de 60 pessoas esperando para serem atendidas. Não há médico contratado de referência e isso torna o atendimento mais precarizado”, relata.

Procurada pelo Sul21, a SPDM afirmou que “nos primeiros dias de gerenciamento dos serviços as escalas médicas apresentaram dificuldades pontuais de cobertura, porém, prontamente foram adotadas todas as medidas necessárias para manter as escalas cobertas e menor impacto à assistência”. A empresa afirma ainda que, desde então, “as escalas se encontram completas” e garante que, em ambas as unidades, “o número de funcionários segue o que foi pactuado com a Prefeitura de Porto Alegre, para o tipo de assistência prestada nos locais referidos”.

Alessandra, que desde o início deste ano tem visitado, instituições públicas de saúde na Capital, como as UBS, os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), o HPS e os prontos-atendimentos, afirma que estes últimos concentram os problemas. Segundo ela, a realidade atual dos postos contradiz o discurso da Prefeitura de que a concessão para a iniciativa privada traria qualidade para os atendimentos: “A Prefeitura está pensando em terceirizar o serviço, e o que vimos em termos de terceirização está muito ruim”.

Ao longo dos últimos anos, sindicatos representantes de trabalhadores da saúde pública veem criticando terceirização na área. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Para o professor Miranda, os problemas enfrentados pelos dois prontos-atendimentos de falta de profissionais é um efeito a curto prazo devido ao processo de transição de administração da gestão, que em breve pode ser resolvido pela SPDM. Entretanto, ele defende que os efeitos mais graves dessa terceirização de gestão serão sentidos principalmente no médio e no longo prazo, quando pode haver a desconstituição da lógica de atendimento integral do SUS.

“O que se está fazendo é subvertendo a lógica do SUS e isso é um efeito de médio e longo prazo. A Prefeitura de Porto Alegre está agora desconstituindo o SUS e introduzindo uma lógica do mercado de doenças, que é o que dá muito mais dinheiro hoje para quem lucra com o adoecimento das pessoas”, afirma.

O uso do Imesf para avançar nas terceirizações

O prefeito também aproveitou uma decisão do Supremo Tribunal Federal para avançar no projeto privatista. No dia 17 de setembro deste ano, apresentou uma proposta para terceirizar os serviços de atenção básica de saúde depois que o STF considerou que o Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (Imesf), criado em 2011, é inconstitucional por se tratar de uma fundação pública de direito privado. Dentro do projeto proposto pela Prefeitura também estava a demissão de todos os 1.840 funcionários do Imesf, assim como a baixa no CNPJ do instituto. Como resposta à decisão tomada pelo prefeito, centenas de trabalhadores do Imesf iniciaram uma paralisação da categoria em 9 de outubro, que se estendeu, com interrupções, até o dia 31 de outubro.

Os trabalhadores queriam que Marchezan cumprisse o que eles entendem como o resultado verdadeiro da decisão do STF, ou seja, a exigência de contratação direta de servidores para a atenção básica. A categoria também cobrou do prefeito a incorporação dos trabalhadores do Imesf à administração direta e a criação de uma fundação de direito público ou realização de concurso.

Em 9 de outubro, Instituto Municipal da Estratégia da Saúde da Família (IMESF) realizou ato em frente à Prefeitura de Porto Alegre. Foto: Giulia Cassol/Sul21

A última medida do Executivo a respeito do assunto foi enviar à Câmara de Vereadores um projeto de lei propondo a criação de cargos de agente comunitário de saúde e de agente de combate às endemias na administração direta do município, serviços que são prestados pelo Imesf. Como o projeto ainda não entrou em votação na Casa e a proposta de terceirização, assim como as demissões dos trabalhadores, não foram executadas, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 4ª Região está realizando a mediação do caso atualmente. Entretanto, a Prefeitura não tem enviado representantes para participar das audiências.

“As mediações estão acontecendo justamente para tentar a permanência do Imesf e a garantia dos empregos. É importante saber que não há ainda trânsito em julgado no STF, então, não tem a decisão definitiva ainda e, por isso, não há a necessidade das demissões nesse momento”, explica o enfermeiro e trabalhador da atenção básica de Porto Alegre Estevão Finger da Costa, que participou do comando de greve dos trabalhadores do Imesf.

Além da mediação do TRT, o Ministério Público de Contas do Estado (MPC-RS) solicitou em 14 de novembro que o Tribunal de Contas (TCE-RS) emitisse uma medida cautelar para que o governo Marchezan não possa contratar de forma emergencial e por dispensa de licitação os serviços de atenção básica até que saia o resultado final do STF sobre a situação do Imesf. Ainda, a medida cautelar também deveria exigir que a Prefeitura suspenda a contratação de uma empresa de recursos humanos para a realização das demissões dos trabalhadores do Instituto. “Essas duas medidas estão sob análise do TCE. Se o conselheiro do TCE acatar o pedido, o município vai ter que cumprir, porque é uma ordem. Na minha opinião, vai se arrastar via Justiça, mas já consideramos vitorioso até agora”, afirma Costa.

Para o presidente do SindiSaúde, ao propor a terceirização do Imesf, o prefeito Marchezan estaria “utilizando de uma decisão do STF para implementar uma proposta que leve a saúde pública à total terceirização, principalmente na atenção primária”. Jesien também diz acreditar que, nesta situação, o prefeito estaria pensando apenas na sua reeleição e não necessariamente em entregar uma saúde pública de qualidade à população.

Precarizar para terceirizar

Durante as visitas realizadas às instituições públicas de saúde em Porto Alegre ao longo deste ano, a diretoria do Simers diz ter se deparado com cenas de precarização, com falta de insumos e materiais básicos para os atendimentos, equipamentos estragados, ausência de medicamentos e falta de profissionais para atender as pessoas. Uma das situações que Alessandra Felicetti Pires descreve aconteceu em um posto que realizava microcirurgias e, em função disso, precisava esterilizar os materiais utilizados nos processos cirúrgicos. “Para os materiais serem esterilizados no autoclave, eles precisam estar fechados dentro de um pacote específico. O posto não tinha esse aparelho para selar o pacote e, então, eles estavam fazendo com uma chapinha, que havia sido doada por um paciente”.

No Posto Modelo, que é considerado referência dentre as Unidades Básicas de Saúde da Capital, acontecem situações de faltar, por exemplo, receituário para prescrição de medicamentos. “Volta e meia falta o receituário, aí temos que estar xerocando receituário para os colegas”, diz o agente comunitário de saúde Douglas Gomes, que há três anos trabalha no Centro de Saúde Modelo. Para ele, o modo como o prefeito lidou com o caso do Imesf não gerou somente insegurança para os trabalhadores, mas também agravou o sucateamento da saúde pública na Capital.

O agente comunitário de saúde Douglas Gomes trabalha há 3 anos no Centro de Saúde Modelo . Foto: Luiza Castro/Sul21

“Desde que o prefeito anunciou tudo, estamos bem perdidos. Eu sou um que trabalho porque gosto de trabalhar com as pessoas, de estar aqui, mas está sendo bem maçante trabalhar sem saber o dia de amanhã, sem saber se eu vou estar empregado amanhã ou no mês que vem. Prejudicou muito o trabalho do posto, mas mais pelo modo como ele lidou com a situação”, diz Gomes.

Os relatos vão no mesmo sentido do que afirma Alcides Miranda sobre o descompasso entre os preceitos do SUS e as medidas que vêm sendo adotadas pela Prefeitura. “O que se espera é que os trabalhadores de saúde constituam vínculo com os usuários dos serviços e continuidade dos cuidados, principalmente na atenção primária. Como é que um trabalhador precarizado, com contratos temporários, com insegurança por estar em uma situação incerta, vai construir vínculos com os usuários do serviço de saúde? É uma medida perversa”, avalia.

Atendimento estendido: metade da meta cumprida e elogios

Uma das principais promessas de Marchezan durante a campanha eleitoral de 2016, a ampliação do horário de funcionamento para até às 22h em, no mínimo, oito unidades distritais em oito regiões, é realidade atualmente em quatro unidades de Porto Alegre: a UBS São Carlos, no bairro Agronomia, que foi o primeiro posto de saúde a ter o horário estendido, o Centro de Saúde Modelo, no bairro Santana, a Unidade de Saúde Tristeza, na Zona Sul, e a UBS Ramos, na Zona Norte, que teve o segundo turno inaugurado em março deste ano. De acordo com informações da Prefeitura, entre o período de 2017 e 2019, mais de 100 mil atendimentos já foram realizados por essas unidades somente no turno estendido.

Em junho, a Prefeitura anunciou que 23 unidades de saúde da Capital estavam homologadas e com adesão efetivada no Programa Saúde na Hora, do Ministério da Saúde do governo Federal, para passar a funcionar no horário estendido. De acordo com as informações divulgadas na época, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) tinha o prazo de quatro meses para adequar os serviços das unidades de saúde aos critérios do programa federal, mas, até o momento, o terceiro turno continua existindo somente nos quatro postos mencionados.

Desde abril de 2017, o Posto Modelo funciona com o atendimento estendido até às 22h. No período das 18h às 22h, chamado também de terceiro turno, os atendimentos são realizados por ordem de chegada. De acordo com Gomes, agente de saúde do Modelo, os únicos retornos negativos da população acerca do atendimento estendido partem de pessoas que não estão familiarizadas com o modo de funcionamento do SUS e acham a espera para a consulta longa demais.

Posto de Saúde Municipal Modelo é referência dentre as unidades de saúde da Capital. Foto: Luiza Castro

O atendimento estendido costuma ser visto como muito positivo por aqueles que estão acostumado às longas esperas, como é o caso de Daniela Goulart Gustavo, usuária do Modelo no turno noturno há mais de um ano. “Eu sempre venho no turno da noite para consultar e sempre foi excelente, eu não tenho queixa nenhuma, tanto que toda vez que eu venho toda família gosta dos atendimentos, mesmo que a gente tenha que chegar cedo para aguardar. Eu chego por volta das 17h30 e, às vezes, saio daqui quase às 23h, mas é uma coisa que vale a pena”, diz.

Daniela, que está grávida e atualmente realiza no Modelo consultas de rotina da gestação, conta que o marido e as duas filhas também são atendidos no posto. “Até agora, eu não vi outro [posto de saúde] que faça as mesmas coisas que aqui faz, tu precisa de um atendimento tu tem, os doutores daqui não fazem aquela consultinha rápida, não, eles atendem a família inteira pelo tempo que precisar”. Outra questão positiva apontada por Daniela é a possibilidade oferecida pelo Modelo de escolher o médico ou médica de sua preferência para o atendimento, porque assim ela e a família acabam consultando sempre com a mesma profissional, que já conhece os problemas de saúde de todos.

Daniela Goulart Gustavo é usuária do Modelo no turno noturno há mais de um ano. Foto: Luiza Castro

Outras UBS da Capital, no entanto, não encontram-se na mesma situação do Posto Modelo. A enfermeira Nathália da Silva Fialho, que há sete anos é funcionária do Imesf e há um ano e meio trabalha na Unidade Básica de Saúde Cristal, diz que são frequentes as ausências de médicos e aglutinações de postos de saúde. Ela explica que, há alguns meses, a unidade Cristal foi aglutinada com o Posto Mato Grosso. “Isso ocorreu no intuito disso que a Prefeitura vem fazendo, que é diminuir as equipes e diminuir os postos de saúde, e que tem como base a questão da falta de recursos humanos, principalmente a falta de médicos”. Para a enfermeira, a aglutinação de unidades de saúde funciona como uma forma de “mascarar as deficiências” na área da saúde, principalmente a ausência de profissionais para atender a população.

“Uma unidade que deveria ter um médico e não tem, é unida com uma outra que é dupla ou tripla, que tem um ou dois médicos. Com isso, tu podes dizer à população que os postos têm médicos, já que isso não é uma mentira. Só que isso também não é uma verdade absoluta, porque, sim, os postos tem médicos, mas ao mesmo tempo a Prefeitura não diz que naquele posto onde tem um médico deveria ter cinco”, afirma Nathália.

A Prefeitura foi procurada, mas não respondeu nenhum questionamento até o fechamento da reportagem. 


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