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10 de junho de 2021
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10:56

Empresas estatais: da perspectiva individual à coletiva (por Gustavo Teixeira e Mauricio Andrade Weiss)

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Sul 21
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Empresas estatais: da perspectiva individual à coletiva (por Gustavo Teixeira e Mauricio Andrade Weiss)
Empresas estatais: da perspectiva individual à coletiva (por Gustavo Teixeira e Mauricio Andrade Weiss)
Eletrobras, maior empresa de energia elétrica da América Latina, na mira das privatizações. (Divulgação)

Gustavo Teixeira e Mauricio Andrade Weiss (*)

A intervenção/participação do Estado na economia não é um tema consensual na ciência econômica. Ela pode ocorrer de diferentes formas, e possivelmente uma das mais polêmicas é a participação estatal no setor produtivo, através da constituição de empresas públicas (estatais). Por envolver questões que transcendem a dimensão econômica, as empresas estatais estão frequentemente envolvidas em debates fortemente ideologizados, que mexem com “corações e mentes”. Exemplo recente é a enorme repercussão política que assumiu a operação Lava Jato, e que acabou resultando na condenação de empresas, públicas e privadas, no lugar de dirigentes, com severos impactos negativos para economia.

Contudo, para além da questão ideológica, existe uma questão “pragmática” que envolve as empresas estatais. Elas podem ser constituídas para atender diferentes fins, a depender de cada país e do estágio de desenvolvimento em que este se encontra, conforme observado ainda no século passado por Raúl Prebish, um dos principais economistas latino-americanos e fundadores da CEPAL [1].

Atualmente existe uma variedade de formatos possíveis para a participação estatal no setor produtivo. Ela pode ocorrer por meio de empresa pública, de capital integral do Estado (ex. Correios e Ceitec). Empresa de economia mista, com participação de capital privado, mas de controle estatal, listada ou não em bolsa de valores (ex. Petrobras e Eletrobras). Ou através de participação minoritária do Estado em empresas, de forma direta, ou indireta, através de fundos públicos ou mesmo empresas estatais, tal como ocorre em diversos conglomerados multinacionais. Por fim, no caso dos serviços públicos, existe ainda a possibilidade de retomada do serviço pelo poder concedente por motivo de interesse público.

As críticas ao emprego de empresas estatais ao nível da firma (eficiência microeconômica) podem ser resumidas em três linhas i) por serem estruturas estatais, as empresas públicas possuem maior rigidez e custos mais elevados, sobretudo custos de pessoal; ii) em grande parte delas a alta administração está vinculada aos mandatos governamentais, e, portanto, é influenciada pelos ciclos políticos. Nesse sentido, pode haver um conflito de interesses entre os acionistas (a sociedade) e os gestores e representantes do governo (problema de agência); iii) estão sujeitas a corrupção, pois se assume que os responsáveis pela administração não estão necessariamente empenhados na maximização do lucro, e, assim, são suscetíveis a busca por vantagens pessoais em detrimento de uma melhor performance das empresas (rent seeking).

Antes de passarmos para os pontos favoráveis às estatais, cabem alguns comentários sobre os pontos elencados acima. Quanto à maior rigidez na gestão (estrutura), de fato no Brasil o sistema de leilões de compras pode reduzir a agilidade de compras e eventualmente também encarecer os insumos. No que tange ao custo de pessoal, os estudos que apontam maior média dos salários dos funcionários públicos comparativamente aos trabalhadores do setor privado em geral costumam ter diversos problemas metodológicos, a exemplo do relatório do Banco Mundial decorrente da heterogeneidade do funcionalismo público e das incompatibilidades comparativas entre diferentes cargos do setor privado e público. Outro problema deste tipo de análise é que boa parte dos maiores salários do setor privado não entram no cálculo comparativo, pois estes são remunerados através de prestação de serviços nas suas empresas individuais, objetivando-se com isto a redução na alíquota efetiva do importo de renda (IR), é a chamada “pejotização”. Já o funcionário público com salário equivalente, paga alíquota máxima do IR e ainda tem o salário descontado direto na fonte [2].

Na questão da corrupção, se é verdade que foi levado à tona casos recentes envolvendo estatais, também é verdade que as empresas privadas exerciam corrupção ativa. Nesse sentido, há de se questionar o nível de fiscalização em relação à corrupção, fraudes, evasão de divisas e sonegação de impostos por parte de empresas privadas. Apenas para ilustrar este último ponto, o valor da inadimplência anual é estimado em R$ 500 bilhões ao ano, valor sete vezes superior à estimativa de corrupção no país (Carta Capital, 2015). Existem casos famosos envolvendo fraude em grandes corporações internacionais, como o do balanço contábil da Enron ou das técnicas fraudulentas sobre poluentes usadas pela Volkswagen. Ou seja, a busca por melhorias no processo de governança empresarial, sobretudo mecanismos de conformidade com normas e leis (compliance), deve ser contínua e ocorrer tanto no setor público como no privado.

Em relação ao problema da agência, não há uma observação ao argumento em si, mas é importante ressaltar que essa perspectiva leva em conta somente o fundamento micro, considerando que único objetivo do acionista (sociedade) é a maximização do lucro. Ou seja, desconsidera toda a dimensão macro, a qual desenvolveremos adiante.

Empresas estatais possuem presença econômica relevante em diversos países. Devido à sua natureza empresarial e estatal, guardam relação tanto com as estruturas de mercado e a estabilidade financeira, quanto com o orçamento público, além da execução de medidas de política econômica. A lógica da propriedade estatal de empresas varia entre países e setores. Normalmente pode-se dizer que compreende uma combinação de interesses sociais, econômicos e estratégicos. Dentre os exemplos destacam-se a política industrial, o desenvolvimento regional, o fornecimento de bens públicos, bem como a existência de monopólios “naturais” (OECD, 2018) [3].

Cabe detalhar um pouco mais sobre esses interesses. Inicia-se pelas justificativas no âmbito microeconômico, das quais podemos elencar três pontos principais:

1) Diferentemente de uma empresa privada, a empresa estatal não possui como único objetivo a maximização do lucro. Conforme mencionado, a sua constituição pode buscar atender diferentes fins, inclusive no sentido de viabilizar as condições necessárias para que a taxa de lucro esperada pelos empresários seja suficiente para estimular novos investimentos por parte do setor privado.

2) Podem cumprir papel importante no sentido de corrigir a existência de falhas nos próprios mercados, por exemplo, a ausência de competição em mercado com estruturas de monopólio natural ou oligopólio, exige uma maior coordenação e atenção aos interesses coletivos. Nas fases iniciais do processo de desenvolvimento econômico, podem cumprir a função de desenvolver, e planejar, mercados até então inexistentes, subsidiando assim o desenvolvimento do setor privado.

3) Prover infraestrutura básica, serviços públicos, com qualidade e preços acessíveis a todos os cidadãos.

Em termos de contribuição para o agregado econômico (aspectos macroeconômicos), as estatais podem atuar principalmente como canal de investimento público, sendo fundamentais para o desenvolvimento de políticas públicas, bem como de medidas contracíclicas. Em setores exportadores, também podem atuar com objetivo de gerar divisas internacionais. Ainda, e talvez o aspecto mais relevante, por não se limitarem a lógica da maximização do valor acionário podem investir em projetos de elevada incerteza, retorno apenas de longo prazo, mas que são essenciais para o desenvolvimento econômico e estratégico para o país. Historicamente no Brasil, as empresas estatais federais respondem por grande parte do investimento público. O trabalho de Orair e Siqueira; (2018) analisa o investimento público no Brasil e as suas relações com o ciclo econômico e o regime fiscal no período recente. De acordo com os autores, a participação das estatais federais no total do investimento do setor público aumentou ao longo dos anos 2000, passando de 30% em 1999 para 47% em 2013, e recuando para 40% em 2015. Os resultados obtidos pelo trabalho “dão subsídios ao uso do investimento público como instrumento de política anticíclica e também indicam que sua retração em conjunturas de crise econômica como em 2015 tem fortes repercussões negativas”.

Sobre os aspectos estratégicos ao país, vale destacar o papel potencial de duas estatais, a Eletrobras e a Ceitec, o motivo dessas escolhas se deve pelo encaminhamento para a privatização da primeira e o processo de liquidação em curso da segunda.

A Eletrobras é uma holding de economia mista, com 31 empresas, a maior empresa de energia elétrica da América Latina e responsável por boa parte da interligação do sistema elétrico nacional. Suas empresas respondem por metade da malha de linha de transmissão e 30 % da geração do país, sendo 50% da geração hidráulica. Se fosse um país, seria o oitavo em capacidade hidráulica do mundo, à frente, por exemplo, de Noruega e Itália. Todas essas características conferem enorme poder de mercado para a Eletrobras. Ademais, esses ativos são considerados estratégicos no atual contexto de transição energética.

No que diz respeito aos resultados da empresa, ela apresenta boa saúde financeira e bons indicadores operacionais, baixo grau de alavancagem medido por uma relação Dívida Líquida / Ebitda = 1,4 vez, um Caixa de R$ 14 bilhões e R$ 30 bilhões de lucros acumulados no Patrimônio Líquido. Para esse ano, tem aprovado a distribuição de R$ 3,8 bilhões na forma de dividendos.

No que tange a Ceitec, os principais pontos já foram elencados no texto de maio, aqui pretendemos apenas reforçar alguns pontos a partir de comentários recebidos. Uma empresa pode ser estratégica para o país de diversas maneiras, volume de receita, de emprego, de divisas que proporcionam, de ganhos tecnológicos e/ou de soberania industrial. A respeito desses últimos dois pontos que o papel da Ceitec é estratégico. Deste modo, não cabe comparação com outros setores que podem gerar mais receita e emprego, mas sem o mesmo potencial inovativo e fundamentais a uma ampla cadeia de produtos e insumos. Ademais, para auxiliar na aceleração do ganho de escala, o governo deveria usufruir da regra na OMC que permite priorizar compras governamentais da produção doméstica. Este é o caso da compra de chips para passaportes, em que a empresa deixou de faturar R$ 15 milhões por ano em decorrência da quebra de acordo que havia sido celebrado junta à Casa da Moeda.

Em uma perspectiva global, observa-se uma participação crescente de empresas estatais no comércio e investimento internacional. Algumas delas estão entre as maiores corporações do mundo e lideram os setores em que atuam. A título de exemplo, das cinco maiores corporações no Ranking da Forbes, três são estatais. A base de dados organizada pelo Instituto Transacional indica uma tendência mundial de reestatização de serviços públicos. São mais de 1.400 casos, na Europa (Alemanha mais de 300), EUA e outros países. A principal justificativa apresentada para a retomada dos serviços pelo poder público são a cobrança de tarifas elevadas e o baixo nível de investimento. Ou seja, uma combinação de motivos micro e macro.

Em estudo recente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) destacou a importância da participação estatal, sobretudo em infraestrutura, apesar de defender que uma participação não controladora proporciona maior eficiência para tais empresas. A esse respeito, se não for especialmente estratégico, em que decisões fundamentais para o desenvolvimento do país envolvam investimentos cujo retorno além de incerto se dá apenas no longo prazo, esse arranjo pode ser uma alternativa. Todavia, para setores estratégicos, como buscamos argumentar ao longo do presente texto, um controle majoritário do Estado torna-se fundamental. A título de ilustração, segundo os dados do próprio relatório do FMI (no qual a fonte é base de dados do Banco Mundial para 137 países), as empresas estatais respondem por 55% dos investimentos em infraestrutura realizados nos países pobres e de renda média.

Na Europa e nos Estados Unidos, observamos que parte importante dos esforços de estímulo à recuperação econômica tem sido direcionada para o planejamento e execução de investimentos (públicos) nos setores de tecnologia e de energia. A elevada incerteza que envolve o processo em curso de transição para uma economia de baixo carbono através de uma maior eletrificação, especialmente no setor de transportes e o advento da “indústria 4.0”, somado aos desafios da grave crise econômica exigem uma enorme coordenação estatal.

Assim, ao mesmo tempo em que observamos a retomada do papel do Estado na formulação e coordenação de planos de recuperação econômica no mundo pós-covid, assistimos com perplexidade a liquidação da Ceitec e a tramitação no Congresso Nacional da privatização da Eletrobras, sem debate algum, por meio de Medida Provisória, em regime de urgência e em meio à pandemia.

Notas

[1] Prebisch, R (1971). Public enterprises: their presente significance and their potential in development”, Economic Bulletin for Latin America, vol. 16, No. 1, New York.

[2] Oreiro J. L. e Ferreira Filho, H. L. (2021). A PEC 32 da Reforma Administrativa: Reformar o Serviço Público para Acabar com o Estado do Bem-Estar Social e Implantar o Estado Neo-Liberal.

[3] OECD (2018), Diretrizes da OCDE sobre Governança Corporativa de Empresas Estatais, Edição 2015, OECD Publishing, Paris. 

(*) Gustavo Teixeira é Diretor do Instituto Ilumina e assessor do Coletivo Nacional dos Eletricitários . Mauricio Andrade Weiss é Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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