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7 de maio de 2021
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13:29

Não eram ovos, eram cadáveres (por Alessandra Nahra)

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Não eram ovos, eram cadáveres (por Alessandra Nahra)
Não eram ovos, eram cadáveres (por Alessandra Nahra)
“No pacto colonial, a gente finge que não vê os cadáveres embaixo dos nossos pés” (Unsplash)

Alessandra Nahra (*)

Todos os dias nós, a classe média branca, renovamos os votos com o pacto colonial 

Ontem era o “dia do índio”, e Geni Nunes fez um post falando sobre como brancos podem ser aliados na luta antirracista: não como salvadores, mas como traidores do pacto colonial. Eu nunca tinha chamado assim, mas essa é uma boa definição para o meu horizonte de ação pessoal: eu quero trair o pacto colonial — que é absolutamente nocivo não apenas para a maior parte da população deste país mas para a Terra (ou seja, para todas nós). E o que é o pacto colonial?

Eu tava ali dando uma choradinha (tenho conseguido chorar, agora), depois de ler um texto sobre o desmonte do país (eu sei que deveria me abster, mas não consigo ainda totalmente; tudo que temos feito nesses últimos anos é escrever textos indignados e ler e se emputecer sobre o lido; interessante que no começo a gente se enviava os textos, com esperança, “olha, essa pessoa está falando isso, algo vai ser feito” — agora nem isso mais; os respeitáveis articulistas escrevem, denunciam, há anos, nada acontece, a gente nem compartilha mais textos indignados porque pra quê?). Enfim, estava ali eu dando uma choradinha e pensei “como a gente deixou que isso acontecesse?”. Isso, no caso do choro e do texto, era o governo genocida e ecocida, o trem da morte que por onde passa só deixa destruição, que começou a ser gestado no impeachment da Dilma e foi consolidado no poder na eleição de 2018.

Mas péra: começou no impeachment da Dilma, eu disse? Nossa permissividade trágica começou muito antes.

Como a gente deixou que o país fosse erguido em cima da destruição da Mata Atlântica, e depois da Amazônia, do Cerrado? Como a gente deixou que o país fosse construído em cima de corpos indígenas e africanos sequestrados e forçados ao trabalho escravo? Como a gente permitiu que se criasse um país em cima de montanhas destroçadas pela mineração, em cima de terras esgotadas pela monocultura de açúcar e todas as monoculturas que a ela seguiram? Como a gente deixou que isso acontecesse?

A gente deixou porque há cinco séculos tem sido conveniente pra nós, a classe média branca, os descendentes dos invasores europeus. A classe média branca com seus carros do ano e financiamentos de 30; nós, a gente que se associa à elite sempre. Contra camponeses, quilombolas, indígenas — esse povo que demanda as terras que os ricos grilaram (e nós queremos ser ricos); contra trabalhadores, sem-teto, favelados — esse povo pobre como temos pavor de ser. É nos cadáveres deles que temos pisado, séculos a fio, para garantir a continuidade dos nossos privilégios. Entre os cadáveres e nossos pés botamos um tapete bem grosso, cópia chinesa de um persa. Acontece que o tapete vendido baratinho graças ao sangue da Terra e trabalho semi-escravo começou a ficar puído e agora se vislumbra, aqui e ali, que o que pensávamos serem ovos na verdade são cadáveres [1].

A gente tem sangue nas mãos. A manutenção dos nossos privilégios acontece às custas dos povos explorados, escravizados, violentados. Esse é o pacto colonial da branquitude no Brasil.

O pacto colonial, como eu entendo, é o que fez com que a gente chegasse até aqui, nesse governo genocida e ecocida. Esse pacto colonial é renovado a cada dia, há mais de 500 anos. Quem renova ele somos nós, a classe média. Porque nos é conveniente. A classe média quer que continue a existir pobre no país. Caso contrário, quem vai fazer o trabalho sujo que a gente não quer fazer? Por isso, desde sempre a burguesia se aliou às elites. Porque nos era conveniente. No pacto colonial, a gente finge que não vê os cadáveres embaixo dos nossos pés, para poder continuar tudo a mesma coisa.

Acontece que, em tempos de crise, como agora, a classe média vai sendo aos poucos excluída das benesses do pacto colonial. Ainda que conservando os privilégios da branquitude (ou seja, mesmo no perrengue, melhor que muitos), vamos empobrecendo, perdendo empregos, não conseguindo pagar aluguel. Que dirá viajar pra Disney.

Mas enfim, tá lá a classe média empobrecendo e a quem a gente se alia, de novo? Às elites. A gente se acha mais parecido com o banqueiro do que com a diarista. A gente quer de volta nossas benesses. Nem no perrengue a gente se solidariza com quem deveria ser nossos aliados. Nem no perrengue a gente topa trair o pacto colonial. Porque pra isso precisa primeiro reconhecer e depois abrir mão dos privilégios que vem, para as pessoas brancas, com o pacto colonial. A gente, classe média branca, todos os dias renova os votos com o pacto colonial nesse brazilzão, pra que tudo siga igual, fingindo que não vemos que são cadáveres isso em que pisamos há 500 e tantos anos.

Nota

[1] Referência ao texto Enquanto a gente não se vir como opressor, a opressão não acaba, de outubro de 2018, em que eu dizia que a classe média apavorada pisava em caixas de ovos “tentando não quebrar a frágil estrutura que sustenta seus empregos, sua vida bonita, apê e carro na garagem”.

(*) Alessandra vive na Guarda do Embaú, em Santa Catarina, com o cachorro Heitor e os cinco gatos. É mestranda em Nutrição em Saúde Pública na USP. Escreve sobre agroecologia e sistemas alimentares e dá oficinas de horta caseira, compostagem doméstica e alimentação política. Em 2017 viajou pela América Latina em busca de projetos de permacultura e agricultura urbana, e em 2020 publicou O Chão que me Fez, relatando a viagem. Está lançando seu segundo livro, Todos os cachorros que eu abandonei, através de uma campanha de financiamento coletivo. Segue no Instagram @alenahra para ver os bichos, as plantas, as pedras; os bióticos e abióticos tudo.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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