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1 de abril de 2021
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10:32

Extrativismo e resistência no pampa gaúcho: a experiência do Comitê de Combate à megamineração no RS (por Marcelo Soares)

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Sul 21
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Extrativismo e resistência no pampa gaúcho: a experiência do Comitê de Combate à megamineração no RS (por Marcelo Soares)
Extrativismo e resistência no pampa gaúcho: a experiência do Comitê de Combate à megamineração no RS (por Marcelo Soares)
Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul foi criado em 2019. (Reprodução/Facebook)

Marcelo Soares (*)

Foi em um final de tarde de 2019, em uma manifestação pelo Fora Bolsonaro, que encontrei o Heverton Lacerda, vice-presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), uma das mais antigas entidades ambientalistas do Brasil, fundada pelo agrônomo José Lutzenberger. Casualmente tinha ficado de entrar em contato com ele pra conversar sobre uma ideia do Marcos Todt, nosso Diretor de Formação para o Bem Comum da Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal (APCEF/RS), de organizar um movimento para combater o projeto de instalação da Mina Guaíba, aquela que seria a maior mina de carvão a céu aberto do país, em Eldorado do Sul, a apenas 10 km em linha reta de Porto Alegre.

Falei um pouco sobre a ideia e já marcamos uma reunião para daí uns dias junto com o Marcos Todt, sem saber que ela daria origem a uma das maiores articulações já construídas no Rio Grande do Sul para levar adiante uma luta ambiental. Debatemos não só o projeto da Mina Guaíba, mas outros projetos de megamineração previstos para o estado, a partir de uma lei aprovada ainda no Governo Sartori. de constituir um polo carboquímico no Rio Grande do Sul, aproveitando a tão propalada riqueza  do nosso carvão. E chegamos à conclusão de que teríamos que incorporar nesta luta não apenas as entidades ambientais, mas sindicatos, organizações e movimentos sociais que muitas vezes nem debatem ou participam de ações ligadas à proteção ambiental.

Foi na noite de 29 de maio que reunimos na sede da APCEF/RS mais de 40 pessoas, representando 27 entidades e organizações, que decidiram constituir uma articulação para combater o que denominamos megamineração, pois os projetos que estavam em fase de licenciamento ambiental apresentavam uma grande diferença de escala em relação a mineração até então conhecida no Rio Grande do Sul. E foi a diversidade desta reunião que nos deu a certeza de que estávamos no caminho certo, pois estavam presentes entidades ambientalistas como a AGAPAN, o Greenpeace, Amigos da Terra Brasil, Associação dos Amigos do Meio Ambiente de Guaíba (AMA-Guaíba) e o Movimento Preserva Zona Sul, entidades associativas e sindicais como a APCEF/RS, os Sindicatos dos Bancários de Porto Alegre e Santa Maria, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), Centro dos Professores Gaúchos (CPERS), movimentos como o Movimento Sem Terra (MST), o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), grupos de pesquisa acadêmica como o Temas e uma entidade precursora no atual ciclo de lutas contra a mineração no pampa gaúcha, a UPP Camaquã, desde 2016 resistindo à instalação de uma mina de cobre, zinco e chumbo em Caçapava do Sul.

Na reunião já tiramos uma coordenação para esta articulação ainda sem nome, constituída pela AGAPAN, AMA Guaíba, APCEF/RS, MST e MAM, que depois incluiria o Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e a Associação dos Juízes pela Democracia (AJD), e decidimos pela definição de um nome, identidade visual e lançamento de um manifesto do que viria a ser o Comitê, o qual seria lançado em 18 de junho em um Auditório do CPERS superlotado, com mais de 200 pessoas e 50 entidades e organizações (hoje são mais de 120). Veio muita gente de Porto Alegre e região metropolitana, de vários cantos do estado, principalmente de territórios ameaçados por projetos em fase mais adiantada de licenciamento, como o de Caçapava do Sul já mencionado, o de exploração de fosfato em Lavras do Sul, o de titânio em São José do Norte e a Mina Guaíba em Eldorado do Sul. Antigos ambientalistas, sindicalistas estranhos às lutas ambientais, assentados do MST e pecuaristas tradicionais, pesquisadores acadêmicos, lideranças políticas e muitos e muitas estudantes, uma nova geração super a fim de luta, que tem consciência do que estes projetos representavam em termos de destruição e comprometimento do seu próprio futuro. Nos animavam as palavras do Manifesto de lançamento do Comitê:

“Em pleno século XXI, quando se acentua o debate sobre a crise climática e as ameaças à biodiversidade, às comunidades tradicionais, à qualidade de vida, e em suma ao futuro do planeta, transformar o Rio Grande do Sul em uma nova fronteira minerária e em um grande polo carboquímico nos posiciona na contramão da história! Existe uma tendência mundial de diminuição na exploração do carvão, porque a atividade coloca em risco tanto a saúde da nossa gente quanto o meio ambiente, já que o combustível é um dos maiores responsáveis por emissões de CO2, que provoca o efeito estufa.” [1]

Já largamos a mil, reunindo todas as segundas-feiras, sempre no auditório, ou em salas menores do CPERS, recebendo cada vez mais adesões e com tarefas urgentes de mobilização, como a participação na audiência pública sobre a Mina Guaíba em Eldorado do Sul, que sucedia uma audiência esvaziada realizada em Charqueadas, que até hoje questionamos na justiça. Lotamos um ônibus com ativistas do Comitê, que se juntaram na Audiência à população do município, do Assentamento Apolônio de Carvalho, um dos maiores produtores de arroz orgânico do estado, e do loteamento Guaíba City, ambos localizados bem na área onde a COPELMI pretende implantar a mina. Ao contrário das audiências públicas sobre projetos que prometem levar empregos para as cidades atingidas, nesta a maioria da população presente questionava e criticava o projeto. Tivemos não só uma maioria de falas, mas de manifestações de repúdio a uma mina de carvão bem nas margens do rio Jacuí, responsável pelo abastecimento de 86% da água consumida em Porto Alegre, atingindo não só o Assentamento Apolônio de Carvalho e o Guaíba City, mas aldeias indígenas e o Parque Estadual do Delta do Jacuí, uma unidade de conservação de proteção integral criada em 1976, tendo sua área ampliada em 1979, e depois, em 2005, com a criação da Área Estadual Delta do Jacuí, englobando o Parque Estadual Delta do Jacuí, com 22.826 hectares.

Nessa audiência tomamos consciência do tamanho da nossa responsabilidade no enfrentamento deste projeto e dos demais no pampa gaúcho, o que significava organizar o Comitê em diversas Frentes, como a Técnica (que posteriormente seria desdobrada também na Jurídica), a de Mobilização e a de Comunicação. Assim, nossas reuniões das segundas passaram a ser intercaladas, numa reunia-se a Coordenação e as Frentes, e na outra era a tradicional plenária aberta do Comitê. Fomos às ruas e feiras ecológicas com os panfletos e venda de camisetas do Comitê, defendendo principalmente a realização de uma audiência pública em Porto Alegre, convocada pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM), dentro do processo de licenciamento da Mina Guaíba, pelos impactos que a sua instalação traria não apenas para o abastecimento de água, mas pelos próprios efeitos sobre a saúde da população da capital, como já alertou inclusive a Associação de Médicos do Rio Grande do Sul (AMRIGS).

Não conquistamos esta audiência pública oficial em 2019, embora tenhamos marcado forte presença nas audiências públicas chamadas pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Ministério Público do Rio Grande do Sul e pela Assembleia Legislativa do Estado, demonstrando o forte repúdio da população da capital a este projeto. Ao mesmo tempo, fruto dos laudos elaborados pela nossa Frente Técnica conseguimos barrar o avanço do projeto da Mina Guaíba, que teve seu processo de licenciamento suspenso no final de 2019 através de uma ação que denunciava a ausência do componente indígena no EIA-RIMA apresentado pela Copelmi Mineração Ltda. Essa suspensão ainda se encontra em vigor, sendo que a cada dia crescem as manifestações contrárias a este projeto, inclusive de lideranças políticas, como o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, que na campanha eleitoral do ano passado se manifestou contrário à implantação da mina (esperamos que agora no poder mantenha esta posição).

Mas se tivemos êxito na suspensão dos processos de licenciamento da Mina Guaíba, do projeto Caçapava  e do projeto Bom Retiro, em São José do Norte, o projeto Três Estradas, de exploração em fosfato em Lavras do Sul, obteve a licença prévia, pois não houve uma resistência organizada e massiva no município, sendo que na audiência pública os opositores ao projeto mal conseguiram se manifestar, diante do apoio da grande maioria da população residente na sede do município. O próprio Comitê de Combate à Megamineração, por suas dificuldades de organização e estrutura, não conseguiu na época dar o apoio técnico e  de mobilização para os produtores rurais do interior do município que resistem a este projeto, que prevê uma barragem de rejeitos quase duas vezes maior que a de Brumadinho.

Em 2019, entre outras dificuldades de falta de estrutura financeira e material para ampliarmos nossas lutas, tivemos dificuldades para apoiar a mobilização contra os projetos de megamineração no interior do estado, ficando as atividades do Comitê muito restritas ao combate do projeto da Mina Guaíba, sendo que encerramos o ano com a realização de um grande evento no Auditório da Faculdade de Economia da UFRGS,  o lançamento da nossa publicação do painel de especialistas, que reúne artigos de diversos pesquisadores sobre os diferentes aspectos envolvidos no projeto da Mina Guaíba. Essa publicação pode ser acessada no site do Comitê, o rsemrisco.org.br, constituindo-se no coroamento do trabalho realizado em 2019 pela nossa Frente Técnica

Iniciamos 2020 em março com uma grande plenária no auditório do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, onde fizemos uma avaliação das atividades do Comitê até então e traçamos os planos para o ano, principalmente de fortalecimento de nossas ações de rua contra a Mina Guaíba em Porto Alegre e região metropolitana e de uma maior articulação com os movimentos e territórios em luta no interior do estado contra os diferentes projetos de megamineração, principalmente o de Lavras do Sul que estava em fase mais adiantada de licenciamento. Mas veio a pandemia de covid-19 e o Comitê, assim como os demais movimentos sociais, tiveram que se retirar das ruas e encontrar abrigos nas redes sociais e plataformas digitais de reunião. E foi justamente através de uma série de lives na página do Comitê no Facebook que conseguimos debater com representantes dos diferentes territórios em luta, abordando todos os aspectos econômicos, sociais e ambientais que envolvem os quatro projetos em licenciamento mais avançados no estado: Mina Guaíba em Eldorado do Sul e Charqueadas, Caçapava do Sul que atinge toda a região do Rio Camaquã, projeto Três Estradas em Lavras do Sul e Projeto Retiro em São José do Norte.

Pudemos assim acompanhar exemplos bem sucedidos de mobilização nos territórios, como o da região do Rio Camaquã, que agrupou um amplo leque de atores, como pecuaristas tradicionais, pesquisadores acadêmicos, indígenas, quilombolas e ciganos.  A mobilização centrada na defesa do rio, um dos menos poluídos no estado, demonstrou-se correta, até pelo lado afetivo, assim como a defesa do modo de vida tradicional do pampa contra mais uma ameaça de destruição, pois o bioma já enfrenta os avanços da soja e da silvicultura. Em São José do Norte também tivemos uma forte mobilização da comunidade, principalmente de pescadores, que através de muita luta conseguiu incluir no plano diretor do município a proibição de atividades de mineração, o que se constitui ainda hoje no centro da batalha jurídica contra o projeto de exploração de titânio. Já em Lavras do Sul apenas em 2020 os proprietários de áreas a serem atingidas pelo projeto Três Estradas conseguiram se articular com outras entidades e movimentos, principalmente com o Comitê, para tentarem reverter a licença prévia já concedida para a implantação do projeto. Nesse sentido foi decisiva a participação do Comitê em uma reunião com o Ministério Público Federal, que solicitou a reversão desta licença.

Outra porta aberta pelas plataformas digitais foram as parcerias para seminários e cursos promovidos por Universidades e Institutos, como o curso de verão  “Direitos da natureza, extrativismo e emergência climática”, promovido pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e Instituto Preservar, com participação do Comitê, e outro Seminário que estamos organizando em conjunto com a Fiocruz e o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) para os próximos meses. Tem sido decisivas para essas participações justamente aquele que foi o objetivo proposto para a formação do Comitê e que logramos atingir: a diversidade de olhares e trajetórias de diferentes atores políticos, como entidades ambientalistas, pesquisadores acadêmicos, sindicatos, movimentos sociais, etc.

2021 iniciou como uma continuidade do ano passado, não apenas pela presença ainda mais forte da pandemia de covid-19, mas pela dificuldade que ela impõe para reuniões e manifestações presenciais. Isso cria uma grande dificuldade para nossa resistência e combate à megamineração, mas também ao desmonte das políticas e estruturas de proteção ambiental que o Governo Federal e o Governo Estadual vem fazendo, com incentivos à mineração e facilitação dos licenciamentos ambientais. Sintomático do empenho do atual Governador em transformar o estado em uma nova fronteira minerária no país é o fato dele colocar como Secretário do Meio Ambiente o Secretário de Minas e Energia do governo anterior, com a Secretaria do Meio Ambiente incorporando a de Minas e Energia, ficando a Secretaria responsável pelo licenciamento dos projetos através da FEPAM, com um departamento de mineração justamente para estimular os projetos que outra área da Secretaria irá licenciar. Hoje esse secretário, Artur Lemos, é o Chefe da Casa Civil do Governo e o Secretário do Meio Ambiente é o deputado Luiz Henrique Viana, não por acaso um velho amigo do Governador.

Seguimos atentos no combate a esse projeto de desenvolvimento que tem como base o extrativismo mais predatório, inclusive da exploração de carvão, um dos grandes vilões na emissão de gases de feito estufa. E principalmente seguimos conscientes que as lutas que virão exigirão articulações mais amplas como a constituída pelo Comitê, que rompa com a visão da economia verde e identifique o capitalismo como o grande promotor da destruição da natureza e da própria ameaça à vida humana devido ao colapso climático do planeta.

[1] – Manifesto do Comitê de Combate à Megamineração no RS. Site: rsemrisco.org.br

(*) Sociólogo, membro da Coordenação do Comitê de Combate à Megamineração no RS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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