Opinião
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5 de janeiro de 2021
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17:19

Dois anos do governo Bolsonaro: quem são os comparsas e cúmplices do presidente (por Christian Velloso Kuhn)

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Sul 21
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Dois anos do governo Bolsonaro: quem são os comparsas e cúmplices do presidente (por Christian Velloso Kuhn)
Dois anos do governo Bolsonaro: quem são os comparsas e cúmplices do presidente (por Christian Velloso Kuhn)
Jair Bolsonaro. (Reprodução/TV Brasil)

Christian Velloso Kuhn (*)

A Ciência Econômica se constituiu ao longo de sua história numa ciência plural, abarcando uma série de correntes de pensamento. Dentre elas, há a Economia Institucional, que como seu próprio nome remete, trata da importância das instituições para a compreensão dos fenômenos econômicos. O termo instituição recebe, mesmo dentro dessa corrente, diferentes acepções. Thorstein Veblen, um dos primeiros expoentes da Economia Institucional, definia como hábitos mentais, que por sua vez seriam “métodos habituais de dar continuação ao modo de vida da comunidade em contato com o ambiente material no qual ela vive” (VEBLEN, 1988 [1899], p. 89) [i]. Douglass North, de outra vertente dessa corrente, estabelece instituições como “as regras do jogo em uma sociedade” (NORTH, 2018, p. 13)[ii], ou ainda, “restrições humanamente concebidas que estruturam as interações políticas, econômicas e sociais. Elas consistem tanto em restrições informais (sanções, tabus, costumes, tradições, e códigos de conduta), quanto em restrições formais (constituições, leis, direitos de propriedade). (NORTH, 1991, p. 97)[iii]. Outro importante economista dessa corrente conceitua instituições como “sistemas de regras sociais estabelecidas e prevalecentes que estruturam as interações sociais. Linguagem, dinheiro, lei, sistema de pesos e medidas, maneiras à mesa, firmas (e outras organizações) são, portanto, todos instituições”. (HODGSON, 2006, p. 2)[iv].

Diante de um conceito tão amplo, podemos considerar o sistema democrático como uma instituição, bem como todas as organizações criadas para ampará-lo e alicerçá-lo. Nesse sentido, talvez nenhum presidente eleito pelo povo tenha atacado e testado tanto os limites da democracia e das instituições brasileiras (sistemas, leis, constituição, regras, organizações, etc.) quanto Bolsonaro o fez nesses seus dois anos de mandato.

A grande maioria dos atos insanos, que revelam uma figura tão deplorável e vil como Bolsonaro, é por demais conhecida por todos. Uma fração considerável desses atos serviu para embasamento de 59 pedidos de impeachment protocolados na Câmara de Deputados desde o primeiro mês de seu mandato até o final do ano passado. Nenhum deles foi apreciado e analisado pelo atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que esteve à frente da presidência da instituição durante igual período.

Resta saber como um ser tão ignóbil, inepto e inculto sobreviveu a cerca de 2,5 pedidos de impeachment protocolados por mês nos seus dois anos de mandato. Ninguém consegue tal feito sozinho, e por isso é crucial que se aponte quem são os comparsas e cúmplices do presidente, garantindo seus diversos crimes de responsabilidade serem cometidos impunemente por todo esse período. É mais do que na hora de dar nomes aos bois.

Começando pelos comparsas, pode-se mencionar todos aqueles que o apoiaram nas eleições e que compuseram a base aliada de seu governo no executivo e no legislativo. Assim, além dos atuais ministros, e senadores e deputados do Centrão, cabe mencionar ex-aliados arrependidos ou não, tais como os deputados Alexandre Frotta (PSDB-RJ) e Joice Hasselmann (PSL-SP), que hoje fazem denúncias ao governo na CPI das Fake News, assim como os ex-ministros Sergio Moro e Luiz Mandetta (DEM-RJ) ou os governadores de SP e RJ, João Dória (PSDB) e Wilson Witzel (PSC). Os três primeiros, inclusive, a grande mídia e instituições de pesquisa seguidamente citam como candidatos de “centro” para a presidência do país nas próximas eleições de 2022.

Também não convém deixar de fazer menção entre os comparsas algumas categorias e movimentos que ajudaram a conduzir Bolsonaro à presidência do país. Nesse particular, ressalte-se a relevância dos militares, dos grandes latifundiários, de necroempresários de segundo escalão dos setores industrial, comercial e de serviços, dos líderes evangélicos, dos armamentistas, dos milicianos, dos lavajatistas, dos rentistas neoliberais do mercado financeiro, dos olavistas e negacionistas e de todo e qualquer categoria representada pelo atual governo. Sem eles, nosso execrável líder jamais teria alcançado e se mantido em tal almejado posto.

Por sua vez, entre os cúmplices, a lista é grande. Começa por um dos principais responsáveis, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que não só simplesmente não apreciou nenhum dos quase 60 pedidos de impeachment do presidente, como em entrevista para o programa Roda Viva em 03/08/2020, ainda afirmou que não enxergava nenhum crime cometido por Bolsonaro, ou base legal das ações protocoladas. Essa sua alegação praticamente legitimou o presidente da República e seus atos, inclusive os criminosos. Imaginando que cada um desses pedidos deve conter centenas de páginas, ou Maia é algum expert em leitura dinâmica, ou não leu adequadamente nenhuma dessas ações. A mais verossímil e provável das alternativas, para nosso azar, é a segunda. Os subterfúgios usados por Maia para barrar essas dezenas de pedidos são dos mais variados, desde a popularidade do presidente, a falta de apoio dentro do Congresso e até o foco no combate à pandemia. Há quem especule que o motivo implícito da recusa de Maia em dar andamento a um processo de impeachment seja o temor de requerer conter um suposto movimento com participação de militares, milicianos e armamentistas, propenso a defender Bolsonaro com o uso da força e coerção. Em se tratando de Bolsonaro e seus comparsas, essa hipótese não pode ser descartada. Contudo, isso não exime Maia de sua responsabilidade, a despeito desse tempo na condução da presidência da Câmara ter servido de contrapeso às iniciativas autoritárias de Bolsonaro a romper com nossa estrutura democrática e demais instituições.

A complacência do Senado, sob a presidência de Davi Alcolumbre (DEM-AP) e dos ministros do STF também os tornam cúmplices da impunidade de Bolsonaro. Ainda que sejam instâncias que dependam da tramitação do pedido na Câmara, meramente cumprem sua função protocolar de contrapeso ao executivo e se desconhece qualquer iniciativa desses poderes de consultar ou pressionar a presidência da Câmara sobre este assunto.

Considerada o quarto poder, a grande mídia igualmente tem sua cumplicidade. Se até as eleições, alguns veículos de comunicação lhe deram espaço para se apresentar como um candidato anti-establishment e conferir certa popularidade, foram condescendentes com os fortes sinais de autoritarismo que mostrava durante a campanha para viabilizar sua eleição, visando atender seus interesses escusos com a aprovação da agenda liberal de Guedes. Mesmo com os ataques sofridos por seus profissionais e veículos de imprensa, a grande mídia pouco fez para alertar os riscos à democracia com Bolsonaro no poder. Um caso exemplar foi o editorial do Estadão no segundo turno de 2018 entre Haddad (PT) e Bolsonaro (PSL), intitulado “Uma Escolha Muito Difícil”.

A menção a instituições dos poderes legislativo e judiciário e da mídia decorre da sua atuação no último processo de impeachment ocorrido no país. A presidente Dilma não contou em 2016 com a mesma complacência e passividade por parte dessas instituições, havendo uma clara articulação para tirá-la do poder, mesmo tendo supostamente cometido um crime de responsabilidade muito inferior aos tantos acusados nos quase 60 pedidos de impeachment protocolados contra Bolsonaro. Sem falar que tanto o presidente da Câmara da época, Eduardo Cunha, como o vice-presidente Michel Temer, principais atores na articulação do processo de impeachment da presidente, pararam ambos atrás das grades anos depois.

Ademais, não vimos qualquer iniciativa de projeto de lei visando corrigir as brechas legais e constitucionais por quais o presidente aproveita para adotar sua estratégia de diversionismo e omissão à violência, ao desmatamento e, mais recentemente, ao combate à pandemia da COVID-19, com quase 200 mil mortos (equivalente à perda da vida de 1 a cada 1.000 habitantes) e próximo de 8 milhões de contaminados (cerca de 4 contagiados a cada 100 residentes). Isso sem citar as tantas situações constrangedoras que nos fazem duvidar das condições mentais para Bolsonaro persistir no cargo. Logo, todas as lideranças e membros das instituições citadas até aqui merecem serem denunciadas pela sua prevaricação quanto ao tratamento leniente dispensado ao presidente.

Por esse motivo, não devem ser poupados os membros da oposição ao governo. Desde a campanha, cometeram erros estratégicos ao subestimarem Bolsonaro, inclusive com certos partidos chegando ao ponto de expressarem sua preferência por concorrer com ele no segundo turno de 2018, e foram duramente derrotados. Muito vem se discutindo a necessidade de uma frente ampla para enfrentar Bolsonaro em 2022, mas a alienação, a miopia e a fogueira de vaidades de algumas lideranças se constituem em importante óbice para consolidar e viabilizar esse movimento. Alguns partidos de esquerda até recentemente acenaram com uma aliança que ingenuamente denominaram de “frente ampla”. Para se compor e fazer jus como tal, requer a ampliação e aceitação de setores de centro e quiçá da direita, como foram por exemplo o movimento da Diretas Já em 1984, a Assembleia Constituinte de 1988 ou o processo de impeachment de Collor em 1992. Sem uma união que transcenda os partidos da esquerda, não há o que se chamar de frente ampla, no máximo uma “frente amiga”, como bem denominou a professora Rosana Pinheiro-Machado numa de suas manifestações nas redes sociais.

Também era de se esperar que principalmente os membros dos partidos de esquerda enxergassem as lacunas que nossas leis e constituição não abarcam os atos de Bolsonaro, e propusessem projetos de lei para aperfeiçoá-las. Sua atuação tímida justifica o seu enquadramento entre os cúmplices do presidente se sustentar no seu cargo até o momento.

Assim como os partidos políticos se concentraram em pedidos de impeachment e notas de repúdio, o mesmo pode ser dito da movimentação de setores importantes da sociedade civil. Diferentemente de sua movimentação que culminou no processo enfrentado pela presidente Dilma, paradoxalmente, instituições como federações e associações de classe e conselhos federais responsáveis por categorias profissionais pouco fizeram para impor limites e pressionar pela saída do atual presidente.

Essa letargia comum às lideranças das diversas instituições supramencionadas, em suma, explica a pouca representatividade dos interesses daqueles que não toleram mais o estado calamitoso que se encontra a presidência da República sob a tutela de Bolsonaro. Parece que as Jornadas de Junho de 2013 pouco ensinaram aos líderes dessas instituições. Mantido esse cenário de crise sanitária, econômica, social e institucional, não será surpresa eclodir outra movimentação semelhante assim que a vacinação contra o coronavírus permitir que a população tome as ruas novamente. Talvez seja esse o receio de Bolsonaro e que explique sua postura lamentável de atrasar a aprovação e compra de vacinas contra o coronavírus. A melhor vacina contra Bolsonaro será o povo unido exigindo um basta à sua permanência na presidência da República. Quem sabe assim, as instituições voltem a atuarem ativamente na defesa dos cidadãos brasileiros.

Nós, brasileiros, temos nos mostrado ao longo de nossa história um povo tímido na busca dos seus direitos e cobrança de nossos representantes, salvo alguns marcos históricos. Mas isso não passa de hábitos mentais, que podem ser modificados e aperfeiçoados. As regras do jogo já foram executadas e até subvertidas, com o uso de algumas instituições supramencionadas, para impedir o mandato de dois presidentes legitimamente eleitos nos últimos 18 anos. Agora, está em jogo a democracia e a sobrevivência de nossa população, dois temas muito caros para ficarmos de braços cruzados aguardando por mais dois anos.

[i] VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Nova Cultural, 1988[1899].

[ii] NORTH, Douglass. Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico. São Paulo: Três Estrelas, 2018.

[iii] NORTH, Douglass. Institutions. The Journal of Economic Perspectives (1986-1998), v. 5, n. 1, 1991.

[iv] HODGSON, Geoffrey. What are Institutions? Journal of Economic Issues, v. 40, n. 1, mar. 2006.

(*) Professor e Economista. Doutor em Economia do Desenvolvimento na UFRGS; integrante do Instituto PROFECOM

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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