Opinião
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27 de janeiro de 2021
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12:44

Constituição violada: a inconstitucionalidade da priorização de empresas na vacinação contra a covid-19 (por Sandro Ari Andrade de Miranda)

Por
Luís Gomes
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Constituição violada: a inconstitucionalidade da priorização de empresas na vacinação contra a covid-19 (por Sandro Ari Andrade de Miranda)
Constituição violada: a inconstitucionalidade da priorização de empresas na vacinação contra a covid-19 (por Sandro Ari Andrade de Miranda)
Aeronaves do governo do Estado transportam para municípios do interior, nesta segunda-feira (25/1), carregamento de vacinas da Oxford/AstraZeneca contra a covid-19 | Foto: Felipe Dalla Valle/ Palácio Piratini

Sandro Ari Andrade de Miranda (*)

Historicamente, desde o advento da Revolução Francesa, a sociedade dividiu com um certo rigor as suas esferas de atuação entre o público e o privado. Com o tempo e o crescimento da sociedade civil organizada, considerou-se a existência de uma faixa intermediária, pública não estatal, que é representada pelos grupos de pressão, ONGs, associações de bairro, que alargam a política e permitem a construção de iniciativas de interesse público, como a proteção do meio ambiente, a proteção do consumidor e o combate ao racismo. Como se observa, esta atuação tem como foco exclusivo a defesa do interesse público, do bem coletivo e a efetivação de um ideal de cidadania. Assim, não se confunde, de nenhuma forma, com a iniciativa privada.

Na década de 1990, amparados na ideologia no neoliberalismo, alguns movimentos privados tentaram usurpar o terceiro setor e submetê-lo ao interesse do mundo empresarial corporativo. Era comum a apresentação de propostas nas quais escolas, creches e outros órgãos administrativos deveriam buscar maior autonomia (do Estado) e financiamento na iniciativa privada. O objetivo destes movimentos, na prática, era reduzir a carga tributária das empresas, transformar serviços públicos em bens privados consumíveis, dependentes destas empresas, desobrigando o Estado, por exemplo, da responsabilidade institucional de garantir o acesso universal à saúde e à educação. Em síntese, funcionar como uma ponte para garantir o interesse econômico e promocional de alguns empresários. Como esperado, o resultado deste processo foi um desastre, somente superado com retomada da ação do Estado, especialmente depois da segunda metade do primeiro mandato do governo Lula.

No entanto, apesar do modelo de intervenção falsamente “solidária” de parceria entre empresas e governo ter fracassado, esta política ficou latente na sociedade e retorna periodicamente nos discursos como uma proposta de “auxílio” questionável não apenas moralmente, mas juridicamente.

É neste ambiente que se encontra o projeto capitaneado por alguns grandes conglomerados empresariais para adquirir vacinas da AstraZeneca/Oxford e “doar 50% para o Governo Federal”. Os outros 50% seriam utilizados pelas próprias empresas para atender a demanda dos seus funcionários, mantendo, assim, o funcionamento contínuo destas empresas. Ocorre que estas vacinas, de acordo com o contrato firmado entre o Laboratório Fabricante e a Fiocruz, em número de 100%, e não apenas de 50%, já foram reservadas para atender ao próprio Estado. Logo, há uma manobra criminosa na iniciativa empresarial que pretender desviar o foco de um bem que é público (vacinas) para atender um interesse que é privado (vacinação prioritárias dos seus funcionários). Não há nada de bondoso, razoável ou aceitável nesta medida, mas uma tentativa clara de violar o direito dos cidadãos, cidadãs e profissionais que realmente necessitam na vacina em razão de colocarem a sua vida em risco para que todos sejam tratados (profissionais de saúde) ou por possuírem menor resistência imunológica (idosos, portadores de comorbidades autoimunes etc.).

Assim, além de imoral, a proposta em questão também inconstitucional. O art. 5º da Constituição Federal de 1988 diz que todos são iguais perante a Lei, mas nos princípios fundantes da Carta da República está expresso que cabe ao Estado enfrentar as desigualdades materiais, criando medidas para suprir as diferenças. Isto ocorre porque a nossa norma fundamental não adota o princípio da igualdade formal, mas da igualdade material, da equidade aristotélica, no qual cabe ao Estado equiparar os diferentes para que ambos sejam tratados igualmente, com justiça social. O mesmo art. 5º também reconhece o direito à vida de todos os brasileiros e brasileiras, que se sobrepõe a qualquer interesse meramente econômico.

Dentro de uma hierarquia normativa, com devida vênia à livre iniciativa, a vida e a igualdade possuem prioridade, jamais o lucro. Logo, como não existem vacinas para todos e todas, cabe ao Estado nacional (e não apenas ao governo) definir quem tem prioridade e sempre, repito, sempre, deve prevalecer o interesse público, ou seja, os direitos fundamentais daquelas pessoas que estão expostas ao maior risco. Portanto, caso o governo autorize a proposta do segmento empresarial, não estaria violando apenas normas morais, nem acatando uma tentativa espúria de levar vantagem se utilizado do poder econômico, mas ofendendo a Ordem Constitucional, o que pode ser considerado como crime de responsabilidade.

(*) Advogado, doutorando em Sociologia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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