Opinião
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3 de novembro de 2020
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12:39

SUS: Quem não quer botar a mão no pote de ouro no final do arco-íris? (por Rafael Bennertz)

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Sul 21
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SUS: Quem não quer botar a mão no pote de ouro no final do arco-íris? (por Rafael Bennertz)
SUS: Quem não quer botar a mão no pote de ouro no final do arco-íris? (por Rafael Bennertz)
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Rafael Bennertz (*)

A notícia mais sinistra dos últimos dias do mês de outubro de 2020 foi de que o presidente Jair Bolsonaro publicou um decreto que visava privatizar o SUS. Se você não ouviu falar sobre isso, você está morando num abrigo nuclear. Se essa notícia não te incomodou, você precisa urgentemente fazer um exame de consciência.

Para ser justo, não era bem isso que dizia o decreto. Ele propunha a condução de estudos, na forma de projetos pilotos, nestes a iniciativa privada seria responsável pela construção, modernização e operação dos postinhos de saúde, atualmente chamados de Unidades Básicas de Saúde (UBS). Respondendo às pressões vindas da sociedade civil e também da câmara, aquele que não deve ser nomeado suspendeu o decreto. A ideia original não partiu dele, nem do Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, mas do Ministro da Economia, Paulo Guedes.

O posto Ipiranga justifica a proposta de incluir as Unidades Básicas de Saúde no Programa de Concessões e Privatizações do governo do desmonte Federal, o pomposamente chamado de Programa de Parcerias para Investimentos (PPI), com o, já desgastado, argumento de que faltam equipamentos e recursos para o custeio dos serviços de saúde destinados à população brasileira.

Os ‘jênios’ querem fazer a gente acreditar que ao invés de fortalecer o SUS, custa menos, e é mais eficiente, pagar, com grana vinda dos impostos, para que hospitais privados ofereçam os serviços à saúde. Isso é estória pra boi dormir.

Primeiro, o SUS foi instituído, com a Lei 9.080/1990, para garantir o acesso à saúde como direito universal, que deve ser garantido pelo Estado por meio de políticas econômicas e sociais capazes de reduzir os riscos de doenças e de assegurar que todos tenham acesso gratuito a ações de promoção, proteção e recuperação da sua saúde. Ou seja, o SUS não se resume à tratamentos de saúde.

Os princípios que estruturam o SUS defendem a lógica de que para uma pessoa ser saudável não basta que ela tenha acesso à tratamentos e à medicalização. A saúde é resultado de um conjunto de fatores que envolvem acesso à saneamento básico, a garantia de que os alimentos consumidos sejam seguros, o acesso de crianças e adultos à programas de imunização, à prevenção de doenças e que à tratamentos englobem, para além da doença, elementos sociais e psicológicos. Me parece que este conjunto de ações cria obstáculos para que as pessoas fiquem doentes e, sem doentes os hospitais e as clínicas privadas não tem clientes, e os planos de saúde privados também seriam desnecessários.

Na verdade, o SUS é um plano de saúde muito mais completo do que os planos comercializados, porque ele é financiado com os impostos que já pagamos e é planejado para atender situações de baixa, média e de alta complexidade, além da prevenção. Na prática isso acontece nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), nas Unidades de Pronto Atendimento (UPA), nos Hospitais do, ou conveniados ao, SUS e através da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), respetivamente.

Muitos vão dizer que o atendimento pelo SUS é demorado e que os recursos, instalações são extremamente precários. Isso é uma meia verdade – eu acho que é uma meia mentira. Para começo de conversa, é preciso levar em consideração que nem todos os atendimentos têm o mesmo tipo de urgência, por isso precisam buscar o atendimento em instancias distintas.

São poucas as pessoas, principalmente aquelas que não usam o SUS com frequência, que sabem que antes de ir para o pronto socorro do hospital, é preciso passar pelas UBSs. Claro, isso não vale se você levou um tiro, se está tendo uma parada cardíaca, se precisa fazer tratamento oncológico, se está sofrendo um Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou se está em alguma outra situação que demanda tratamento especializado. Se for um pé quebrado, vai pra UPA, se for um mal-estar, se precisar de atendimento odontológico, se estiver procurando um clínico-geral, se quiser parar de fumar, se precisar fazer alguma vacina, se quiser pegar preservativos (masculino ou feminino), anticoncepcionais ou alguns outros medicamentos é só passar na UBS que você vai ter acesso gratuito a tudo isso e mais um pouco. Obviamente, qualquer brasileira ou brasileiro sabe que as condições de atuação das unidades do SUS estão longe de serem ideais.

Você pode discordar, mas eu estou convencido de que essa situação foi muito afetada por um conjunto de práticas que prejudicam o SUS. Na minha interpretação, a principal prática de enfraquecimento do SUS, está atrelada ao favorecimento dos planos de saúde privada e aprovação da emenda constitucional do ‘teto de gastos’.

Até 2015 as campanhas eleitorais podiam ser financiadas por empresas privadas. Por meio deste mecanismo as empresas do setor da saúde privada fizeram alguns investimentos.

Quando uma empresa patrocina algum evento ou apoia algum esportista ela pede para que a sua logo esteja em destaque, para fazer propaganda. Quando uma empresa financiava a campanha de um político ela não pedia para que ele fazer propaganda dela, mas ela também estava fazendo um investimento e, provavelmente, esperava algum tipo de retorno.

“Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, planos de saúde doaram R$ 12 milhões para campanhas de 157 candidatos, filiados a 19 partidos diferentes, nas eleições de 2010.”

Muito provavelmente, os políticos que recebiam apoio financeiro dos planos de saúde e de suas mantenedoras se sentem motivados a trocar o patrocínio recebido pelo apoio nas casas legislativas ou nas instâncias executivas, seja pela apresentação de leis que favoreçam os patrocinadores ou seja por meio da votação do orçamento público de modo que enfraqueça o SUS.

Exemplos desse tipo de ação podem ser encontrados na relutância dos planos de saúde em pagar as multas que devem aos cofres públicos quando enviam algum de seus pacientes para o SUS. Em 2017 o STF obrigou os planos de saúde a pagarem cinco bilhões em dívidas com a União.

O pagamento dessas dívidas tem sido alvo de disputas há muito tempo. Em maio de 2015 a Presidenta Dilma Rousseff vetou a medida provisória 267/13, que havia sido aprovada pelo Senado e que concedia perdão de R$2 bilhões de dívidas que os planos de saúde tinham com o Governo Federal. “As multas perdoadas variam de R$ 5.000 a R$ 1 milhão […] e referem-se ao não cumprimento dos contratos com os clientes”. O valor destas multas deveria ser repassado ao Fundo Nacional de Saúde, que repassariam aos municípios e estados. Claro que esse dinheiro não resolve o problema da saúde no país, mas hoje serviria para fortalecer as respostas à Covid-19 no país.

Essa anistia aos planos de saúde foi incluída ao projeto de lei 627/2013, que até então tratava apenas da tributação dos lucros obtidos por empresas brasileiras no exterior, pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB). A anistia aos planos, no entanto, não parece ser a única ameaça ao fortalecimento do SUS.

Ricardo Barros, o atual líder do Governo na Câmara dos Deputados, por exemplo, protagonizou uma polêmica ao afirmar em 2016, quando era Ministro da Saúde do Governo Temer, que era preciso reduzir o tamanho do SUS. A polêmica o fez recuar, mas vale lembrar que ele já recebeu apoio dos planos de saúde para as suas candidaturas políticas. Já no início de 2019, Luiz Henrique Mandetta jogou ao ar a ideia de acabar com a universalidade do SUS.

O favorecimento ao setor da saúde privada é ainda evidente quando olhamos que “o Brasil mantém, ao longo do tempo, o financiamento de saúde predominantemente no sistema privado de saúde”. Uma maneira pela qual isso acontece é pela dedução das despesas com saúde no imposto de renda (IR). Como consequência temos uma situação, conforme dados de 2017, na qual dois terços do valor que as famílias gastam com saúde vai para a iniciativa privada.

O mais grave obstáculo à melhoria do SUS, no entanto, foi a aprovação da Emenda Constitucional número 95, de 2016, conhecida como “Teto de gastos”, que causou uma redução no montante de recursos destinados ao SUS. Apesar de 60% da população rejeitar a emenda constitucional do teto de gastos foi aprovada, em dois turnos de votação na câmara dos deputados federais e uma votação no senado.

No primeiro turno, apenas dois partidos tiveram 100% dos seus deputados votando contra, foram o Psol, o PCdoB; com exceção de uma abstenção todos os deputados do PT também foram contra. No segundo turno, permaneceu quase inalterada, o único deputado do Partido da Mulher Brasileira (PMB) presente na votação também votou contra a reforma. No Senado, a todos os senadores do PT e o único senador do PCdoB também votaram contra.

Essas não foram as primeiras e não serão as últimas ameaças ao SUS. Enquanto a saúde for vista como uma mercadoria a ser comercializada e instrumento de acúmulo de capital privado, haverá iniciativas para enfraquecer o SUS.

Mas qual o problema? São vários, e preciso resumir. Primeiro, é preciso deixar de ser ingênuo e entender que a iniciativa privada vai, por objetivo intrínseco à sua natureza, vender tratamentos, não curas, muito menos atuar na prevenção.

Num país que tem batido recordes na liberação de novos agrotóxicos (475 em 2019 e 150 até maio de 2020), o acesso a saúde de qualidade é indispensável, até mesmo do ponto de vista econômico e geopolítico. Para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual o Brasil quer fazer parte, a promoção da saúde e prevenção de doenças demanda abordagens conduzidas por sistemas públicos fortes, pois

“O enfrentamento das desigualdades e o encorajamento para o crescimento inclusivo são chaves para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Nós analisamos a dupla relação entre saúde e renda. Ao promover cuidados curativos efetivos e prevenindo doenças, os sistemas de saúde tornam as pessoas mais produtivas em todos os estágios da vida. Crianças e adolescentes saudáveis vão melhor na escola. Adultos em boa saúde tem menores chances de faltar ao trabalho, são mais produtivos no trabalho e são menos propensos a estarem desempregados.”

Mas o mito disse que não vai privatizar o sistema de saúde, ele só quer fazer estudos pilotos. Pois é, se ele não quisesse privatizar ele nem iria solicitar a realização de estudos técnicos, até porque estes projetos pilotos são a porta de entrada para drogas mais fortes. A tendência é o aprofundamento das desigualdades de acesso à saúde. Quem tiver recursos financeiros vai ter acesso à saúde (curativa) de qualidade, que não tiver grana tá no sal. Assim como a educação, a saúde é um nicho de mercado que tem garantia de demanda contínua e inesgotável. Quem não quer botar a mão no pote de ouro que está no final do arco-íris?

(*) Sociólogo e Doutor em Política Científica e Tecnológica (Unicamp)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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