Opinião
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7 de outubro de 2020
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19:16

Da Escola Cidadã à gestão por resultados: a rede municipal de educação de Porto Alegre em perspectiva

Por
Sul 21
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Da Escola Cidadã à gestão por resultados: a rede municipal de educação de Porto Alegre em perspectiva
Da Escola Cidadã à gestão por resultados: a rede municipal de educação de Porto Alegre em perspectiva
Manifestação em defesa da escola pública municipal de Porto Alegre, realizada em 2017. Foto: Maia Rubim/Sul21

Juliana Hass Massena, Mateus Saraiva e Guilene Salerno (*)

Da Escola Cidadã à gestão por resultados: do outro mundo possível a busca por resultados improváveis, a rede municipal de educação de Porto Alegre em perspectiva

Porto Alegre já foi referência de um outro mundo possível. A capital do Estado do Rio Grande do Sul, quando governada por uma coligação de partidos de esquerda com liderança do Partido dos Trabalhadores, de 1989 a 2004, tinha – em seus fundamentos e práticas – uma base para a construção de uma democracia participativa materializada na relação entre o Orçamento Participativo e a Escola Cidadã. Foi no âmbito do Orçamento Participativo que muitas comunidades apontaram a educação como prioridade; foi assim que se construiu a Escola Cidadã, implicada numa concepção de escola com função social voltada para a democratização da sociedade: universalização da matrícula; estratégias diferenciadas na organização do currículo; aproximação do conhecimento da comunidade com o conhecimento historicamente sistematizado; progressão continuada apoiada por laboratório de aprendizagem; gestão democrática, com eleições diretas para direção, fortalecimento dos segmentos escolares, por meio dos conselhos escolares, e o Congresso Municipal de Educação como fórum máximo de deliberação dos princípios norteadores das ações das Escolas da Rede Pública Municipal. Tais ações consideravam a premissa da educação como direito público e subjetivo, de todos/as e cada um/a, dever do estado, condição para o exercício da cidadania.

Havia contradições, mas nenhuma delas foi suficientemente potente para o apagamento dos marcos políticos de outrora. Até hoje, a Lei do Orçamento Participativo e o Caderno 9, este último referente à proposta pedagógica das escolas, são políticas que normatizam e/ou mediam as relações com as comunidades. Sem propor uma alternativa, de 2005 para cá, a tônica dos que assumiram o executivo tem sido o esvaziamento dos espaços de participação e de construção. A política educacional proposta para rede municipal de educação de Porto Alegre (RME/POA), nos diversos governos, não fez uma oposição clara à Escola Cidadã, mas a cada ação houve o investimento – muitas vezes velado – na precarização das condições de trabalho docente e da infraestrutura das instituições, comprometendo a qualidade do processo educativo. Nos últimos anos observamos: a) uma estagnação no número de escolas municipais de Educação Infantil, com aumento de mais de 80% de instituições conveniadas; b) um processo de privatização da oferta educacional, através de parcerias entre a organização da sociedade civil com administração pública por meio dos termos de colaboração e fomento; c) a queda significativa do número de professoras nos anos de 2017 e 2018, bem como a criação de contratos temporários para professoras do Ensino Fundamental; d) um investimento insuficiente para garantia das condições de trabalho das profissionais e de aprendizagem dos estudantes; e) um processo de desestruturação da gestão democrática, f) e, a extinção da hora de planejamento das professoras. Avaliamos que tal conjuntura tem impactado negativamente na qualidade da educação.

Sem fazer uma disputa declarada da concepção, até 2020 a política de precarização trazia um outro projeto latente, mas sem uma proposta de reescrita dos marcos da política de participação na escola. Porém, isso mudou em outubro de 2019, quando o Executivo Municipal protocolou um projeto de lei que foi aprovado e sancionado em janeiro de 2020, cujo objeto era a eleição direta para diretoras. A Lei n.º 12.659/2020 revogou a Lei n.º 7.365/1993, que determinava paridade entre os segmentos, e colocou Porto Alegre no mapa das cidades que utilizam a gestão por resultados em suas política educacionais. Dentre as mudanças presentes na nova regulamentação em relação à anterior, trataremos aqui de dois pontos que podem ter adesão por, teoricamente, simbolizarem um aprofundamento do poder da participação da comunidade: a vinculação do mandato ao desempenho dos estudantes no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e o aumento do peso do voto dos pais no pleito.

Um ponto para a reflexão é em relação ao uso do resultado da avaliação como punição. A comunidade escolar poderá abreviar o mandato das diretoras das escolas de Ensino Fundamental nas quais a média geral de proficiência do Ideb não for pelo menos 2% maior que na avaliação anterior ou cujo resultado não for igual ou superior a sete. Essa ideia de responsabilização como punição é problema por dois motivos: primeiro, pela insegurança que causa na profissional; segundo, não considera outras metas estabelecidas pelo coletivo de uma escola. O Ideb é divulgado em ano de eleição das prefeituras, importante considerar o uso persecutório que pode ser realizado a partir desses resultados criando instabilidade para o trabalho das profissionais da educação. Além disso, o índice é apenas um dos resultados que mede a qualidade da escola. O projeto político-pedagógico não pode ser reduzido às duas variáveis que o compõem – aproveitamento em provas de português e matemática e fluxo – sob pena de, por essa concepção de qualidade limitada – não valorizar as comunidades escolares que têm projetos de iniciação científica e de expressão nas mais variadas possibilidades artísticas, por exemplo. Ademais, ao impor esta métrica para manutenção do cargo de direção, a nova Lei sugere que essa responsabilidade é exclusivamente da escola e, ao isentar a rede, invisibiliza questões que envolvem as condições da oferta educacional, as condições de trabalho docente e as condições de vida das profissionais e estudantes.

Quanto ao resultado das eleições, a proporcionalidade do voto dos pais em relação aos demais segmentos da comunidade aumenta. Pela lei anterior, havia paridade, agora, pela regra geral, o peso dos votos das profissionais da educação é de 35%, dos pais 50% e dos estudantes 15%. Nas escolas sem alunos aptos ao voto ou com número de pais ou responsáveis inferior ao de professoras e funcionárias, a distribuição passa a ser de 55% para os primeiros e de 45% para as profissionais. Hipoteticamente, teríamos uma maior participação das famílias. No entanto, vale a pergunta: decisão em relação a que? Afinal, em outubro de 2019, a Smed propunha a ampliação da decisão de pais em eleição de diretoras de escolas, em setembro de 2020, afirma que não são os pais que decidem quando as aulas voltam. Postura emblemática de uma participação condicionada que não serve à construção do projeto da escola e só tem validade ao perseguir profissionais da educação, servidoras públicas qualificadas técnica e politicamente.

Para além da nova Lei, em 31 de agosto de 2020 foi publicado no Diário Oficial de Porto Alegre o Edital n.º 7/2020 de processo seletivo para gestoras de escolas municipais da rede, com ausência de eleições. As vagas disponíveis eram para sete escolas de Educação Infantil; tais instituições optaram por não realizar eleições diretas em 2019 e, com a vacância do cargo, a Administradora passou a ter prerrogativa de indicação. Fizeram parte da etapa do processo seletivo carta de apresentação, análise do currículo e entrevista. Dada a arquitetura das políticas que têm sido pensadas para a gestão das escolas da RME/POA, nos questionamos: as diretoras estarão comprometidas com o projeto político-pedagógico construído pela comunidade ou com as metas estabelecidas pela Administradora? As vozes dos sujeitos da escola podem, mais uma vez, ser silenciadas.

Por isso, saudamos o posicionamento da Manuela D’Ávila, assim como os planos de governos da candidata do PC do B e de Fernanda Melchionna na eleição em 2020, que propõem uma visão de planejamento além do Ideb e de resgate de valores participativos na RME/POA. Aos projetos que hoje estão no poder (e a prefeitura de Porto Alegre não tem sido diferente) as vozes só servem se em uníssono e avalizando decisões realizadas em gabinetes. Com o foco da ação das diretoras nas provas de avaliação de desempenho e nas metas estabelecidas pelo sistema, bem como a perspectiva de concorrência entre as instituições perante a validação dos pais e/ou responsáveis dos estudantes, há a sinalização da instituição de uma carreira de gestão que vem de encontro à construção histórica da participação na Escola Cidadã. Em xeque a educação como política pública democrática, com responsabilização – sem poder decisório – das escolas.

(*) Juliana Hass Massena: Licenciada em Pedagogia (UFRGS). Mestra em Educação (UFRGS). Doutoranda em Educação (UFRGS). E-mail: [email protected].

Mateus Saraiva: Licenciado em História (UFRGS). Bacharel em Políticas Públicas (UFRGS). Mestre em Educação (UFRGS). Doutorando em Educação (UFRGS). E-mail: [email protected].

Guilene Salerno: Graduada em Psicologia (PUCRS). Licenciada em Psicologia (UFRGS). Mestra em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Doutora em Educação (UFRGS). E-mail [email protected].

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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