Opinião
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17 de outubro de 2020
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14:28

A (re)eleição de Jacinda: Nova Zelândia dá o sinal para um outro mundo possível (por Antônio João Lima)

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Sul 21
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A (re)eleição de Jacinda: Nova Zelândia dá o sinal para um outro mundo possível (por Antônio João Lima)
A (re)eleição de Jacinda: Nova Zelândia dá o sinal para um outro mundo possível (por Antônio João Lima)
Jacinda Ardern, primeira ministra da Nova Zelândia. (Reprodução/Youtube)

Antônio João Lima (*)

Jacinda Ardern acaba de ser aclamada novamente Primeira-Ministra da Nova Zelândia, com crescente apoio popular. Com 98% dos votos apurados até aqui, já traz ao seu partido, Labour NZ, o maior da esquerda local, seu melhor resultado em mais de 50 anos. Analistas afirmam: “a Nova Zelândia moveu-se fortemente para a esquerda”.

No ano de 2017, Jacinda surgiu como uma novidade inesperada, sendo lançada candidata pelo Labour (Partido Trabalhista) apenas 7 semanas antes do pleito. Eleita então Primeira-Ministra, liderou a nação ao longo dos últimos anos, tendo enfrentado pelo menos 3 das maiores crises da história daquele país. E agora, acaba de ser reconfirmada para um novo mandato, tendo seu partido conquistado sozinho 49% das vagas do parlamento (crescimento de 12% em relação a 2017). Em aliança com os Verdes e o partido Maori, seu governo teria agora 75 cadeiras contra 45 da oposição. Assim, seu perfil de liderança, as ideias de seu partido (e de seus aliados), e o engajamento que provocaram em seus cidadãos (e ao redor do mundo), apontam uma luz interessante, mostrando que sim, estamos vivos e vivas, e há ainda alternativas reais ao neoliberalismo e esperança à esquerda frente ao ressurgimento da extrema-direita mundial.

Para se compreender o fenômeno que isto representa, é importante ao menos um breve resgate da história recente desta nova líder mundial. Quando Jacinda foi escolhida Premiê da Nova Zelândia pela primeira vez, o Partido Nacional (NZ National Party – maior partido da direita Neozelandesa) vinha de 3 mandatos seguidos governando o país e com todos os prognósticos de conquistar seu 4º mandato consecutivo. Em 11 de Setembro de 2017 (12 dias antes das eleições daquele ano) apareciam ainda com 47.3% da preferência do eleitorado. Hoje, o National alcançou menos de 27% deles, seu pior resultado em pelo menos 20 anos. Em 2017, eles chegaram às eleições com 59 cadeiras no parlamento, e terminam a eleição de 2020 com 24 vagas a menos.

Em verdade, na última pesquisa antes da escolha de Jacinda como candidata do Labour em 2017, Andrew Little, o então candidato trabalhista aparecia com apenas 7.1% de apoio. Mesmo com tão poucos dias para a eleição, o trabalho de base já consolidado do partido e seus aliados, a rejeição às políticas do Partido Nacional e o perfil de Jacinda fizeram com que ela, surpreendentemente, terminasse a disputa liderando um inesperado novo governo de coalizão oposicionista. Já naqueles dias, se começava a falar no surgimento da então chamada “Jacindamania” na Nova Zelândia.

Para formar aquele novo governo, Jacinda liderou um acordo entre 3 partidos então de oposição (seu partido Trabalhista, os Verdes e um partido de centro chamado NZ First), baseado em um conjunto de políticas consensuadas entre eles pós eleições, e tornadas públicas, como medida de transparência. É impossível não considerar aqui seu perfil particular nesta construção, posto que ela pessoalmente defendeu, coordenou e ajustou as arestas para construir este acordo até então inédito na história de seus partidos. A partir daí, seu governo conquistou maioria no parlamento e conseguiu implementar um conjunto de políticas que tinham como foco principal atacar aspectos de desigualdades e desequilíbrios que haviam crescido no país em anos anteriores, e preparar a nação para desafios futuros importantes, como as mudanças climáticas, além de um ajuste nas contas públicas, que lhes permitiu ampliar orçamentos em áreas sociais fundamentais e responder, como poucos no mundo, ao “tsunami” global da pandemia do novo Coronavírus.

Assim, Jacinda conseguiu liderar um governo que se manteve estável ao longo de todo mandato e foi capaz de avançar em importantes políticas de inclusão. Por exemplo, alcançando os maiores investimentos em transporte público e ciclovias da história do país, assim como o maior investimento da história na prevenção e resposta a violência doméstica e sexual; removeu a interrupção da gravidez da legislação criminal, passando a tratá-las como tema de saúde pública; estendeu a licença maternidade/paternidade de 18 para 26 meses; alterou a legislação para que pudesse ter uma cobrança de impostos mais justa sobre as empresas multinacionais; tornou a educação superior novamente gratuita para estudantes neozelandeses; retomou os investimentos em aulas noturnas e educação de jovens, adultos e comunitária; alcançou a quase todas as escolas públicas do país um fundo de até NZD 400 mil para recuperação física, a maior injeção em mais de 25 anos; ofereceu o maior crescimento da história em políticas de suporte à inclusão de pessoas com deficiências; ampliou em 50% a cota anual de refugiados no país, a maior ampliação da história de um governo, ao mesmo tempo em que fez o maior investimento da história do país em saúde mental.

Além disso, alcançou o menor índice de desemprego da história do país em 2019, elevou o salário mínimo em 20% e em 4.4% a renda média dos trabalhadores; ampliou a força policial do país, tornando-a a maior e mais diversa da história da nação; reduziu a dívida pública, alcançando um superávit sustentável e crescimento do PIB acima da média da OCDE; apresentou o maior crescimento no orçamento do Departamento de Conservação Ambiental em quase 20 anos; construiu um consenso histórico com os agricultores, implementando uma nova precificação para emissões de carbono; e lançou o projeto para a plantação de 1 bilhão de novas árvores no país, tendo plantando já quase 250 milhões delas.

Ao mesmo tempo, Jacinda tornou-se referência mundial ao liderar a Nova Zelândia frente a 3 crises inesperadas que teriam abalado qualquer nação. Primeiro, quando em 2019 o país foi surpreendido com o primeiro ataque terrorista de sua história (após a invasão colonial pelos ingleses nos séculos XVIII e XIX). Naquele março de 2019, um australiano de extrema-direita assassinou 51 pessoas de origem árabe que então viviam na Nova Zelândia, deixando outras 40 feridas. E Jacinda reagiu de forma imediata, garantindo que o nome do terrorista e o vídeo que ele gravou ao vivo no momento dos assassinatos fossem banidos de publicação; em seguida restringindo o acesso a armas no país; e, talvez o mais significativo, mostrando firmeza na resposta ao crime, mas reforçando seu foco na solidariedade às famílias e à comunidade atacada, tornando aquele um evento de ainda maior solidariedade e união dentro do país, em particular em relação à comunidade imigrante.

Poucos meses depois ocorre a erupção do vulcão Whakaari, na qual, apesar dos avisos das autoridades públicas sobre o aumento prévio das atividades vulcânicas na ilha, 21 pessoas acabaram mortas. Ali também, Jacinda agiu rapidamente, garantindo ações imediatas de segurança e prestando concreto suporte a todos os envolvidos. Apesar do pouco controle que a situação lhe permitia, a Premiê demonstrou mais uma vez uma serenidade exemplar. Entretanto, mais alguns meses se passaram, e explodia mundialmente a pandemia do novo Coronavírus.

Como já sabemos, sua resposta aqui também se tornou referência mundial. Em poucas palavras, Jacinda soube liderar novamente uma resposta rápida, eficiente, e que teve o poder de unir ainda mais a nação, ao invés de polarizá-la. Hoje, dia 17 de Outubro de 2020, enquanto países como EUA têm mais de 8.2 milhões de infectados e quase 225 mil mortos, e Brasil mais de 5.2 milhões de infectados e mais de 153 mil mortos, a Nova Zelândia perdeu apenas 25 pessoas (exatamente isso!) e teve 1.883 pessoas infectadas pela Covid-19. E que não se justifiquem os números pelo tamanho das populações apenas. Pois a Nova Zelândia tem uma população 42x menor que a Brasileira e 66x menor que a dos EUA, porém, perdeu 6 mil x menos pessoas que o Brasil e 9 mil x menos que os EUA. É indiscutível, portanto, que se trata aqui de uma questão política.

Entretanto, apesar das importantes conquistas ao longo de seu primeiro mandato, e das respostas dadas às inesperadas crises históricas surgidas, a campanha para a reeleição de Jacinda foi baseada em importantes respostas olhando para o futuro. Apenas para destacar algumas linhas, suas principais propostas se baseavam em reerguer o país após o baque da pandemia mundial com um investimento focado na chamada “economia verde” (priorizando a geração de empregos em projetos de proteção ao meio ambiente), inovação tecnológica e políticas de combate às desigualdades sociais e ao aquecimento global.

Reeleita agora, com um resultado histórico, crescendo fortemente ao mesmo tempo em que ainda mais diminuído o suporte à sua oposição, Jacinda e a Nova Zelândia acenam um novo sinal para o mundo. Mostram que a unidade das forças progressistas pode derrotar o domínio da direita. Mostram que é possível mantermos governos estáveis e com crescente apoio popular, mesmo em meio à graves crises. Mostram inclusive que novas referências são possíveis, e mesmo desejáveis, e que as mulheres representam fortemente este aporte novo que a política progressista do século XXI exige, inclusive em seu perfil de liderança. Vida longa a Jacinda e seu governo de coalizão Trabalhista/Verde/Maori, vida longa à unidade entre as forças progressistas. Que possamos aprender sempre com as lutas de todos os povos irmãos ao redor do mundo.

(*) Mestre em Sociologia pela UFRGS e Pós-graduado pela SIT/New Zealand ([email protected])

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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